sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O paradigma da existência


"Desculpe pelo inconveniente". Como um atendente de telemarketing mal-humorado de uma operadora telefônica, fingindo que se importa com o cliente que ligou para reclamar do corte de seu pacote de dados de internet, essa é a mensagem que Douglas Adams descreve como a Mensagem Final de Deus para Sua Criação. Um inconveniente, a fonte de todas as inconveniências, sem o qual não existiria nada que pudesse achar as outras coisas igualmente inconvenientes ou ainda mais inconvenientes do que ele próprio. Ou ela. A vida: a fonte de todos os problemas da Humanidade.

Problemas esses que se tornam problemas de fato pela irritante mania dos humanos de problematizarem situações que por si só não deveriam passar de acidentes existenciais não-problemáticos do universo, dentro do espaço infinitesimal correspondente a esse planetinha azul e branco que não tivemos o desprazer de nunca termos conhecido. Está claro, por exemplo, que não haveriam tantas guerras se as pessoas parassem de simplesmente seguir livros escritos a milhares de anos por diversos descendentes de primatas distintos (mesmo sendo da mesma raça) e começassem a observar mais atentamente o semelhante sendo esbofeteado do outro lado da rua, do tipo "Ah, poderia ser eu, não é?". É claro, também, que não haveriam tantos computadores quebrados e muitos reais desperdiçados se não existissem telas azuis em seus monitores, fato que, também por uma invenção humana, pode significar a perda de muitas horas de trabalho e paciência. Escavadeiras estão entre os outros possíveis exemplos, mas aí seria aprofundar muito o debate.

Resumindo, a vida é o maior dos inconvenientes. Porém, como não existe alternativa possível para resolver os empecilhos causados por ela, nos basta aceitá-la e acatar o pedido de desculpas da forma menos dolorosa possível, nem que isso inclua insônia, altas doses de Prozac e algumas sessões de terapia oriental com o mestre Xian Gu. Mesmo as formas de vida mais evoluídas do planeta, como os golfinhos e as formigas, não conseguem encontrar uma solução fácil para esquivarem-se da vida, seja enterrando seus companheiros ou mesmo piruetando por aí. Pelo menos as formigas não seguem rituais ultrapassados nem usam computadores, mas têm seus próprios problemas, como a melhor forma de carregar uma bala de Halls até a rainha ou ainda como construir um formigueiro deslumbrante, sem que nenhum idiota enfie seu sapato Louis Vuitton nele e destrua o trabalho de meses, como uma tela azul no mundo das formigas. Elas também são muito mais altruístas com seus colegas de espécie, diga-se de passagem, e não entendem de forma alguma o quanto um sapato Louis Vuitton do colega pode ser mais bonito que o seu Prada, mesmo ambos de modelo equivalente, mesmo ambos sendo de muito mal gosto.

Concluindo (isso se for possível concluir essa reflexão, dada a vastidão abrangente do horizonte desvelado por ela), seria de bom grado se os seres autoconscientes do universo conhecido aproveitassem da liberdade com a qual foram castigados a conviver e se desculpassem mais um com os outros, deixando de lado o seu minúsculo banquinho do orgulho, no qual insistem a ficar ajoelhados para não parecerem altos demais (mesmo cabeceando a cintura de um anão), e estendessem a mão às demais formas de vida que sofrem do mesmo destino: viverem até o momento de suas mortes. Quanto menos desagradável for essa trajetória, menos frustrado ficará o Criador e mais desnecessário será seu pedido de desculpas.