terça-feira, 2 de junho de 2020

Em declínio - Diário da Quarentena


Quando costumava ler as epopeias gregas, acreditava que a jornada do herói tinha seu ápice em grandes desafios, como Hidras de múltiplas cabeças ou labirintos indecifráveis. Acreditava que devíamos ser plenos na coragem, encarando os desafios como guerreiros, sem nos esconder ou fugir do confronto. Jamais imaginaria, no entanto, que as sagas desse início de década se resumiriam a idas à padaria, ao supermercado, à farmácia. O elmo dos guerreiros helênicos seria substituído por uma máscara de pano. A fúria divina dos velhos contos seria agora representada por uma ameaça invisível. A tragédia moderna tem pouca relação com os teatros clássicos de outrora, mas o sentimento de fobia que ela nos trás é certamente mais real. Está acontecendo agora, a ameaça existe e é tangível. Ah, se eu possuísse as asas de Ícaro para que pudesse voar para longe dessa pseudo-realidade pandêmica. Foi ao abrir minha geladeira pela manhã que o pavor se instaurou, como Hércules ao abrir as portas do mundo inferior, em seu último trabalho. Não era Hades nem Cérbero que lá se encontrava, mas o vazio. O vazio nas prateleiras significava que seria necessário sair, enfrentar o mundo externo, abandonar as trincheiras.

Buscar as maçãs douradas de Hera poderia ser uma tarefa mais simples do que abastecer os mantimentos que me faltavam. Cada dia que passava rumávamos ao fim da pandemia, mas um fim doloroso. Como um Tratado de Versalhes à brasileira, as dúbias lideranças fingiam que o problema estava se resolvendo, flexibilizando o isolamento imposto, enquanto o povo se esforçava para crer na narrativa, tentando retornar a uma vida social normal. Enquanto isso o vírus, aquele ser indiferente à política humana, se beneficiava, sem a necessidade de qualquer tipo de articulação ou concessão. Sabemos onde um acordo de paz mal feito nos conduziu no passado. 

De qualquer forma, tive que sair. Equipei-me e escolhi o horário mais conveniente. Eram alguns quilômetros de caminhada que decidi encarar a pé, não arriscaria um táxi. Era um clima de fobia social já instaurado em mim que vinha à tona nas decisões mais simples. Queria evitar o contato, ser eficiente e prático nas minhas ações, uma tarefa por vez. Mas o trajeto foi doloroso. Foram dois quilômetros de inquietação e inconformidade. O comércio voltando precocemente às atividade estava lotado, apinhado de potenciais vítimas de uma nefasta necropolítica que faria Euristeu parecer um pai atencioso. Era o declínio da quarentena. Não um declínio no número de casos ou de taxas de mortalidade, mas um declínio moral, um egoísmo social, uma ignorância confusa com pitadas de sadismo.

O que diria Adorno se visse a cena que presenciei, não sei dizer, mas em algum grau se sentiria decepcionado. Aquele poderia ser o resultado de uma educação que deixou de questionar as bases da barbárie, uma falha estrutural da auto-reflexão crítica. Não era puramente ignorância inocente, mas uma negligência deliberada. A civilidade, segundo o que Freud evidenciou, é a causa principal das incivilidades. O mal-estar da cultura tangencia uma civilidade que não conhece e não respeita seus espaços sociais, objetificando os outros e menosprezando o seu papel como agente crítico no espaço público. Essa é uma das bases estruturantes de genocídios globais, como o holocausto e seus perversos campos de concentração. Adorno e seus pares, que lutaram para ver uma educação que questionasse e nos distanciasse da barbárie, se remexeriam no túmulo ao ver o que meus olhos não poderiam mais desver. Era triste e apavorante.

Chocado demais para absorver mais detalhes daquela cena, mantive minha rota e me abasteci dos suprimentos necessários para mais algumas semanas de isolamento. No caminho de volta, decidi evitar passar novamente pelo comércio. Algo tinha mexido comigo, como se meu lado freiriano tivesse se esvaído completamente. Não via salvação para aqueles que negavam enxergar a trave em seus olhos. Mas sentia pena, também. Talvez o principal motivo para desviar minha rota de regresso tenha sido evitar as lágrimas que provavelmente viriam. Retornei pela avenida, mais movimentada de carros, porém com menos agitação de pedestres. Entrei em casa, encostei minhas compras e desabei.

Ao final da missão, os heróis clássicos costumavam receber honra e liberdade. As vezes tesouros divinos ou a possibilidade de permanecerem vivos, além do clássico coração da princesa. O final da jornada costumava ser a glória. No meu caso, o que encontrei foi a desolação. O meu declínio de compostura soterrou-me sob o peso da quarentena, do isolamento, do distanciamento. Sozinho naquele cômodo, algumas horas se passaram até que me erguesse e voltasse ao mundo real. Com o filósofo alemão na cabeça, muni-me da frieza como a principal arma e abri mão de parte da minha sensibilidade e solidariedade. Era triste, mas necessário. 

Contei cada grama dos mantimentos que comprei naquela tarde. Olhando o calendário, calculei quando seria preciso sair de novo. Até lá, esperava um mundo melhor, uma esperança de Ulisses retornando de Troia. Que superpoderes me fossem dados para que eu pudesse realizar a próxima missão. Nem que o poder seja, simplesmente, o de não me importar.

Ou, talvez, o poder de não sentir medo.

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