Contraditório e romanesco foi o ano de 2020. Um ano que colocou o viver sobre uma nova perspectiva. O viver e o conviver. O efeito estupefacente da pandemia expôs as entranhas do sistema social sobre o qual o mundo boia, sobre o qual a frágil e vulnerável raça humana tem empilhado os maiores feitos ao longo dos séculos. A morte, o caos e a solidão mudam a forma das pessoas verem sua própria existência; mudam a forma das pessoas encararem a realidade que a cercam; mudam a forma de prospectarmos e olharmos adiante. A morte coloca tudo em perspectiva. Ela nos custa tudo, custa a vida. Para muitos, foi o que definiu o início da nova década.
No entanto, existe uma palavra melhor para definir o ano pandêmico: o estro dos grandes poetas, o "não querer mais que o bem querer". 2020 pôs o amor à prova, em escala global. O que foi posto em cheque não foi o amor poético e romantizado, aquele amor dos casais apaixonados e dos mestres da Academia de Atenas. A humanidade teve que encarar o amor real e pragmático, aquele que traduz-se em atos concretos, a ponta de lança das relações humanas. O amor que colocamos à prova foi o amor cristão original, o amor de caridade e entrega, a fraternidade em sua essência mais pura, o sacrifício pessoal na cruz para a salvação dos outros. É fazer valer, como sociedade, o artigo terceiro da declaração dos direitos humanos.
As escolhas se apresentavam na frente de cada um, amar ou não amar, a cada dia. O ato de isolar-se para proteger; o ato de privar-se do prazer para que se fosse permitido aos outros viver; o ato de abrir mão da alegria instantânea para que ela fosse compartilhada no futuro. Doação do imediatismo, doação do próprio ego. Essa foi a essência do amor pragmático de 2020. Muitos tiveram êxito, muitos fracassaram. De qualquer forma, ele transforma. Transformou as amizades, separou quem ama de fato e quem se ama de fato. Transformou as relações pessoais, valorizando o caloroso dentro do frio isolamento. Transformou a caridade: não se faz por alguém, se faz por todos. 2020 mostrou, acima de tudo, se estamos preparados ou não para amar.
Na pandemia, vemos nós próprios nos outros. É mais um poder do amor, nas palavras do poeta lusófono: um claro espelho, onde no outro vereis a vossa alma. Uma mistura de sentimentos que só faz sentido quando vivido e partilhado coletivamente. Passamos e estamos passando juntos pela avalanche, por mais que existam gigantes rolando pedras pela encosta para tentar nos derrubar. Aos poucos que ainda optam por amar, que 2021 traga o sino da esperança ao campanário do carneiro. De 2020, fica a saudade, principalmente daqueles que se foram, literal e figurativamente. Segundo Camões: "Enquanto houver no mundo saudade, quero que sempre seja celebrada".
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