sábado, 7 de janeiro de 2023

Isso não é uma crônica

Há tempos que não desengaveto um lápis e um papel para escrever. Não que me falte lápis ou papel. Ou assunto. Ou paciência. Certo, talvez falte um tanto de paciência. Mas aqui estou, para retornar ao meu antro de escritor amador. Amador não só porque eu amo escrever (o que não necessariamente seja sempre verdade), mas talvez porque o amadorismo me isente de parte da responsabilidade com as palavras que disparo. Afinal, o atirador de facas deveria ser mais responsável do que o engolidor de espadas. Mas, enfim, mesmo sem papel ou caneta, agora totalmente digital e sem atritos, volto a afiar minhas ideias.

Já digo que isso não é uma crônica. O que me coloca em uma posição de não-cronista, muito mais confortável. Isso porque, sendo um não-cronista, eu posso relatar não-fatos, elaborar não-ideias, ser um não-narrador de uma não-história. E que leveza é o não ser! Lembro que a não muito tempo tínhamos um não-presidente, líder de um não-governo. Claro que não durou muito, o povo é carente. É gostoso, é ebriante, é acalentador escutar um sim!

Eu poderia, sim, me colocar na posição de cronista, mas isso me daria muito trabalho. Imagine, saber que um leitor desavisado estaria esperando algo de mim e dos meus parágrafos? Não tenho essa intenção! Receba essa não-crônica como um presente. Curiosamente, há algumas semanas, encontraram um presente rosa na frente de uma agência bancária na região. Logo chamaram a guarda municipal, que não quis se comprometer em analisar o pacote misterioso. Chamaram a polícia, então, que não quis se comprometer. Chamaram os bombeiros, por sua vez, que não quiseram se comprometer. Nisso vieram o departamento de trânsito, a TV, as rádios, os curiosos, os medrosos. Todos assumindo a não-responsabilidade por aquela caixa super assustadora. Tudo só se resolveu cinco horas depois, quando o esquadrão antibombas chegou da capital e identificou o pacote como um enfeite de Natal que caiu da parede de uma loja nas redondezas e foi deixado na infeliz posição da calçada por um transeunte noturno.

Se eu fosse um cronista, afinal, poderia dizer que a diferença entre um presente e uma bomba é apenas uma questão geográfica e, talvez, social. Ou poderia afirmar que são os presentes mais inesperados que podem virar nosso dia de cabeça pra baixo. Ou ainda dar uma lição de moral sobre a importância de ter amizades com os colegas lojistas das redondezas. Mas não vou fazer nada disso. Como eu disse, esse texto é um presente. E, assim como a maior parte dos presentes que ganhamos sem querer, altas são as chances de não servirem para nada e acabarem esquecidos em uma gaveta empoeirada.

De qualquer forma, é bom estar de volta, imerso novamente nesse processo criativo de transformar divagações e epifanias em algo minimamente legível e coeso. Talvez em breve eu escreva uma crônica de fato, com um começo sem graça, um desenvolvimento não muito inovador e um final óbvio e insosso. Por enquanto, fiquemos com essa, um ode ao não ser, que acaba definindo muito sobre nós. Enfim, uma certeza temos: mesmo sendo essa uma não-crônica, você, leitor, permanece leitor. E se existe algum valor nessas palavras, é porque, acima de tudo, você as concedeu esse mérito. Como um punhado de areia, uma vez lançado ao ar, perdemos o controle do seu destino. Pode voar pra bem longe e perdermos de vista. Ou pode voltar diretamente na nossa cara.

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