sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Oceano


A pontualidade do sino da basílica era sempre incontestável. No exato momento em que os ponteiros se unem aos céus, doze sonoras badaladas reverberam-se sob o sol em seu apogeu e a cidade é alertada que metade do dia já se fora. Toda manhã, a velha freira segue uma rotina meticulosa: inicia-se após seu café matinal, com o cântico de seus salmos diários e preparação do altar para as celebrações do dia. Faltando vinte minutos para as onze, a senhora parte para a preparação da sopa, de acordo com o que manda o cardápio recebido pela pastoral dos desamparados. O preparo é finalizado após uma hora e dez minutos, tempo o suficiente para que ela suba até o campanário e encha a moderna cidade com os gritos do bronze cintilante. A sopa então é servida aos abrigados nos fundos da catedral sendo o próprio desjejum vespertino da senhora que o preparou. Tudo conforme planejado, sempre regrado e seguindo a palavra. Uma vida de privações e fé absoluta.

Ao ouvir o sino ressoando, a jovem olha aflita no relógio para confirmar o que seus ouvidos negam-se a acreditar. Estava atrasada. Estava sempre atrasada. Entrando no táxi, tinha menos de trinta minutos para cruzar a cidade e chegar nas portas do cliente. O negócio era importante para seu futuro e um vacilo qualquer poderia colocar em risco toda a carreira brilhante que a jovem engenheira sempre sonhou. No entanto, o trânsito é o mais cruel algoz dos retardatalhos e a passageira tinha picos de ansiedade a cada novo engarrafamento que aparecia em sua frente. Era o caos, um tornado de acontecimentos. Uma vida de oportunidades e nervos a flor da pele.

A modernidade líquida é um imenso oceano. Uma vastidão de oportunidades e de mistérios, com tempestades avassaladoras e ventos capazes de guiar até os menores dos barcos para alguma direção. No meio da imensidão das águas modernas, a atenção volta-se para tudo e, ao mesmo tempo, perde-se de maneira muito veloz. Enquanto enxergar as margens pode limitar nossas destinos, o horizonte aberto é capaz de angustiar até as mentes mais centradas e determinadas. Afinal, seja na superfície, seja nas profundezas, onde vale a pena pular do barco e ousar a nadar?

Talvez a mente humana não seja capaz de absorver todas as informações que é submetida todos os dias, a todo momento. Litros e litros de dados de fontes variadas inundam o cérebro e dar atenção para cada um deles pode ser uma tarefa além das capacidades de uma pessoa média.  Filtrar toda essa enxurrada poluída é um grande desafio para manutenção da sanidade e o ponto de partida pode ser a compreensão do que está efetivamento sob possível controle e o que será incapaz de ser alterado. Lidar com os atingíveis e dedicar menos esforço cognitivo aos distantes pode garantir um mastro sólido para ser direcionado pelos ventos incertos do futuro. Esse processo, no entanto, apenas pode ser realizado quando lança-se mão do poder humano de escolha. Escolhas e abdicações, os mais dolorosos de uma vida de liberdades. Dádivas e maldições do livre-arbítrio.

As decisões são os lemes, elas guiam, elas levam a um caminho. Uma vida de privações de liberdades pode significar uma existência sem escolhas e, por consequência, livre das frustrações acarretadas por elas; gozar de uma vida de liberdades pode significar um cotidiano atolado em angústias e arrependimentos, pois cada nova escolha é uma renúncia a tudo que um dia poderia ter sido. Escolher quais marés navegar pode nos guiar para o paraíso ou para o abismo enquanto um rio, sem decisões de rota, tem sempre um curso fixo, com nascente e foz. No oceano da modernidade, as escolhas pesam pois elas estão cada vez mais presentes e necessárias.

Ao final da tarde, a freira arruma seu quarto, separa suas novas roupas de cama, reza o rosário e descansa, pensando na vida eterna. No início da madrugada, a jovem desliga o celular, tomas suas cápsulas tarjadas e dorme, pensando no dia de amanhã. Ambos os pares de olhos fechados significam que o dia já se foi, e as experiências vividas jamais serão recuperadas ou revisitadas. São essas experiências as ilhas em que o barco das nossas vidas deseja atracar, portos seguros no oceano; são essas experiências que, no final das contas, fazem com que navegar valha a pena.

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