quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Muita informação, pouco cérebro


Não é novidade que nossa vida deixou de ser particular há um tempo. Propagandas personalizadas enquanto navegamos na rede, sugestões de onde passar o sábado a noite ou as férias de verão são apenas alguns exemplos sutis de como nosso cotidiano é constantemente monitorado, uma versão orwelliana de não-ficção. Em 2013, Edward Snowden apenas escancarou uma verdade indigesta, que insistíamos em esquivar: podemos ter nossa vida totalmente mapeada apenas com nosso uso corriqueiro da Internet. Foi nesse mesmo ano, no entanto, que a cidade americana de Boston sofreu um dos maiores atentados terroristas de sua história, com a explosão de duas bombas durante a tradicional maratona. Essa sequência de acontecimentos revela uma realidade que apequena o Grande Irmão que nos observa. Geramos toneladas virtuais de bytes de informação a cada milissegundo em todo o planeta, mas não chegamos nem perto de processar todos esses dados e extrair alguma informação relevante de todos eles.

Essa avalanche de dados que geramos todo dia, em nossos mais de 5 bilhões de dispositivos móveis, é conhecida como Big Data e é o mais novo desafio na era contemporânea da computação. A grande dificuldade no processamento do Big Data reflete uma das características da sociedade informatizada pós-moderna que resume-se na rápida obsolescência e perda de relevância de tudo que geramos. Os dados digitais são o exemplo mais ilustrativo desse processo. Do que adianta a mim como empresa saber se meus clientes pretendiam comprar meus produtos em 2011? Quem gostaria de receber sugestões de onde comer no almoço as cinco horas da tarde? Do que importa a NSA (agência de segurança estadunidense) identificar o plano do atentado de Boston nas redes dois meses após o incidente? No processamento do Big Data o importante é o agora, análise imediata de informação. Coletar e armazenar esses dados é etapa mais simples do processo. Entender o que eles significam em conjunto, em grande escala é um obstáculo que nem os gênios da ficção científica puderam prever.

Para entendermos na prática a dificuldade em realizar a interpretação do Big Data, podemos usar uma ferramenta gratuita do Google que registra as tendências de busca em sua plataforma ao longo dos anos, o Google Trends. Comparando as tendências para os termos “Lula”, “Geraldo Alckmin” e “Tiririca” encontramos picos de nos anos de 2006, 2008, 2010, 2014, por exemplo. Nos últimos anos, por outro lado, esses termos aparecem em alta por diversos momentos aleatórios. A análise desses dados é trivial para um humano brasileiro e politizado. Os pontos principais de citações e buscas na internet relacionados aos nomes dessas personalidades deve-se ao fato de que esses anos são datas eleitorais e esses indivíduos, políticos. Além disso, o turbilhão político de instabilidade que o país vive atualmente é refletido no padrão de buscas do Trends, observando os dados dos últimos anos. Parece simples, mas ensinar um software a realizar essa análise sem intermédio humano, cruzar todas as informações relevantes (e descartar as relações inúteis) transcende o limite da simplicidade, é extremamente complexo de ser realizado, especialmente em tempo real. Finalmente, é necessária uma análise das conclusões obtidas. Mais buscas recentes de nomes de políticos significa necessariamente que o brasileiro tem se tornado mais engajado politicamente? Dado o histórico dos anos eleitorais, o brasileiro só se interessa por política em períodos de eleição? Nossos algoritmos antropólogos ainda estão distantes de chegarem a esse socrático grau de interpretação.

O que a CIA pôde nos mostrar em 2013 (e continua demonstrando, se olharmos atentamente) é que, mesmo com acesso aos maiores bancos de dados do planeta, a maior parte dessa informação não passa de pulsos elétricos em transistores dentro de um computador. Assim como um livro para um analfabeto, as informações estão lá, esperando para serem lidas. Como um jogador de truco que consegue ver todas as cartas do oponente e mesmo assim perde várias partidas, a informação bruta pouco interessa sem que seja conectada e aplicada de forma adequada ao contexto a que pertence. O Big Data apresenta um horizonte praticamente infinito de novas descobertas quanto ao comportamento do gênero humano, podendo mudar profundamente as sociedades modernas. Imagine viver em um mundo cujas suas experiências cotidianas são adequadas aos seus gostos pessoais, em tempo real? A matéria prima existe, flutua sobre nossas cabeças, basta uma fábrica bem equipada para transformá-la em um produto. Ou nos transformar nesse produto.

                       ---- Publicado originalmente pelo autor em <http://penseegratis.org/>

terça-feira, 12 de setembro de 2017

A Terra é plana!


Sentado sobre a areia da praia, voltado para o oceano que se abre na minha frente, consigo avistar o horizonte, uma linha reta se estende por todo o meu campo de visão, demarcando os limites entre o céu e o mar. Uma visão semelhante do mundo tinha Aristóteles e Pitágoras, mirando o Mediterrâneo, por volta dos 300 a.C. A sensação é óbvia: estamos sobre um tablado, um piso de comprimento infinito, exceto por algumas montanhas ou ilhas no caminho. Nosso sistema sensorial age, nosso cérebro processa a perspectiva captada por nossos olhos e tira sua primeira conclusão, a terra é plana! Porém, meu caro leitor, você pode ficar surpreendido como sua mente é falha e amadora, principalmente para questões não triviais, e como um pouco de esforço cognitivo pode alterar a visão que temos do mundo e das situações cotidianas. Nesse caso vamos conversar sobre o planeta e, assim como os Gregos antigos, superar o impulso involuntário de planificar nosso globo mãe.

    → Por que a terra é plana?

Basicamente o cérebro humano é o mesmo desde a Idade da Pedra. De lá para cá pouco se alterou na biologia do órgão comandante da nossa espécie, desde nossos tempos de caçadores e coletores primitivos. Reagimos rapidamente aos estímulos provenientes de eventos externos sem muita reflexão sobre o que está realmente acontecendo. A seleção natural fez sua parte: os Sapiens que agiam dessa forma sobreviveram aos ataques de leões na savana e passaram seus genes adiante, enquanto os pobres retardatários viraram alimento dos felinos e sua falta de reflexos morreu com eles. Nossos ancestrais detectavam com facilidade movimentos nos arredores, seja uma pedra prestes a cair de um penhasco ou o local no gramado onde o coelho saltador pousaria após o pulo, pronto para ser apanhado. Em outras palavras, a física newtoniana era de entendimento imediato da nossa espécie primitiva. Felizmente herdamos essa capacidade, o que nos permite dirigir um carro em alta velocidade ou andar de bicicleta sem dificuldades, por exemplo. Mas nossa compreensão da macrofísica e da nanofísica, dos grandes corpos celestes ao núcleo dos átomos, é pouco intuitiva e exige esforço cognitivo, capacidade de abstração e grandes doses diárias de matemática.

Em um país onde o conhecimento de matemática aplicada não excede 4% da população, fica clara a tendência de aparecimento dos terraplanistas. Eratóstenes mediu o raio do planeta experimentalmente a 2200 anos em um experimento simples (vale uma pesquisa no YouTube, não?), mas que transcendia o ceticismo. Estações do ano, passagem dos dias, fazes da lua, por exemplo, são observadas/sentidas a todo instante pelos seres sencientes do planeta azul. No entanto, a compreensão básica das leis da inércia [3], formação dos astros e gravitação deve ser compreendida com base em experimentos realizados e replicados por milhares de cientistas ao longo dos anos e em modelos matemáticos muito bem definidos. Entendido, não sentido.

    → Por que dizem que a Terra é redonda?

Não é necessário nada além de uma leitura do primeiro módulo de mecânica clássica para concluir que a terra plana viola alguns dos princípios básicos da física Newtoniana (momentos de inércia e efeito giroscópico são boas leituras). Aristóteles e seus contemporâneos já tinham como certa a ideia da esfericidade do planeta, conceito que expandiu-se durante o período helenístico e perdurou até a modernidade (pesquisas contemporâneas destacam que mesmo durante a Alta Idade Média, na eclosão da revolução científica, quando os heliocentristas eram perseguidos pela Igreja, os intelectuais da época admitiam que o formato grego do planeta fazia sentido). É em um contexto de pós-verdade que tentaram passar um rolo compressor sobre a Terra.

Nossas ideias e visões do mundo são formadas com base em nossas emoções e sentimentos. Ratificá-las ou refutá-las é um trabalho cognitivo posterior e deve ser realizado de forma consciente. No momento da modernidade em que vivemos (em especial com a ascensão das redes sociais e da internet) juntar-se a um grupo de indivíduos com ideias semelhantes as suas é algo realizado automaticamente por algoritmos internos das grandes redes, tornando plausível a validação de ideias absurdas. É dentro dessas bolhas que a terra plana e outras teorias conspiratórias ganham força: unindo a pós-verdade e indivíduos pouco dotados de conhecimento científico de qualidade, em ambiente enviesado para confirmação das ideias e falta de confronto de opiniões.

    →  Faça você mesmo!

É dito aos ventos que a internet não criou os idiotas, mas uniu e deu voz a eles. Porém nenhuma hipótese deve ser descartada antes de ser testada. Por isso proponho um desafio aos terraplanistas: formule um novo modelo ao nosso adorado planeta Terra. Sobre esse novo modelo, aplique os conceitos da Física conhecidos e expanda o conhecimento da humanidade sobre o nosso lar. Francis Bacon já dizia que conhecimento é poder. Enquanto os recursos naturais e as vidas humanas são limitadas, o conhecimento pode expandir-se infindavelmente. Cientistas não temem a dúvida, por mais indigesta que ela pareça, por ser fundamental para a expansão do saber científico. A certeza, na maior parte dos casos, é uma limitação. Por isso, meu caro conspiracionista, não é a mim que você deve se dirigir e tentar convencer, mas toda a humanidade e a comunidade científica. Alguns fizeram isso, como Galileu, e mudaram o mundo. Quem garante que você não pode fazer o mesmo?

                       ---- Publicado originalmente pelo autor em <http://penseegratis.org/>