domingo, 12 de maio de 2019

Como proteger o poder do povo?


Dentro da cabine de votação somos apenas um. Não importa sua renda, sua cor, sua idade, sua origem, seu gênero. Na frente da urna sua decisão tem o mesmo valor que a de qualquer outro cidadão, do empresário ao operário. O sufrágio universal garante que o resultado das votações reverbere a vontade da maioria, ao mesmo tempo que a base institucional garante a não supressão de vozes minoritárias. Dessa forma, a sociedade democrática se mantém estável e evoluindo, promovendo um debate saudável e, dentro de suas limitações, permitindo o progresso na qualidade de vida dos seus atores sociais. A democracia garante a pluralidade de ideias e estilos de vida ao mesmo tempo que abre espaço para o debate e o contraste de ideologias. Entre elas há sempre disputas de interesses e, no final, chegam a um ponto comum de equilíbrio, composto por concessões feitas por ambos os lados. As regras explícitas e implícitas do jogo democrático são os remos do estilo de vida ocidental e são nelas que baseiam-se os princípios de direitos humanos universais assinados e adotados pelas principais democracias do planeta. No entanto o que se vê é um esforço multilateral para fragilizar e desestabilizar as frágeis bases sobre as quais a democracia se sustenta, uma briga de poder e hegemonia que resulta em uma polarização cancerígena e destrutiva para aqueles grupos que decidem comprá-la.

As democracias são regidas por regras escritas e também por acordos sociais não escritos. A constituição é a regra básica da democracia e  serve como o carro guia dos valores morais e humanos da sociedade da qual ela é a carta magna. As leis que regem os Estados são os limitantes absolutos do jogo político e que evitaria, em teoria, exageros danosos por parte dos integrantes das diversas cúpulas institucionais. Porém, vale destacar que são as regras não escritas que permitem de fato a saúde do sistema democrático. Partidos políticos, organizações sociais, veículos midiáticos e grupos empresariais são importantes peças no tabuleiro democrático e que apresentam papeis que nem sempre são determinados pela constituição. Os partidos políticos possuem líderes bem articulados que concorrem a cargos de alta patente eleitoral; a mídia denuncia abusos de poder e dá voz a pluralidade de ideias; as organizações sociais e empresariais protegem os interesses de grupos de cidadãos da sociedade civil. Este frágil equilíbrio institucional é determinante para a manutenção do Estado democrático e tudo leva a crer que é muito fácil desbalancear essas relações de influência, com danos expressivos.

As redes sociais, por exemplo, mostram claramente o que um novo agente social é capaz de fazer com os elos democráticos. Desde a sua popularização, Twitter, Facebook, YouTube, Whatsapp etc. são tidos como fontes centrais de disseminação de informações sem qualquer filtro institucional. Não há uma redação jornalística ou um time de repórteres para avaliar a divulgação de quaisquer informações com base no bom senso democrático e os indivíduos munem-se do poder destrutivo de uma mídia desregulada. O resultado é a pós-verdade em uma casca de noz: a quantidade de informações disponíveis torna humanamente impossível a distinção entre os fatos e a ficção e fortalecem narrativas de nicho que transcendem os acordos implícitos das democracias. A ascensão a extrema-direita pelo mundo é um reflexo de como a mídia paralela empodera outsiders com desprezo absoluto pelas instituições estabelecidas e semeiam o caos nas democracias ocidentais.

Outsiders em ascensão flertam com o autoritarismo em diversas escalas e ameaçam a paz democrática ao desdenharem o establishment sem um projeto robusto de fortalecimento dessas instituições. O autoritarismo se inicia com a negação da política dita tradicional, utilizando até os limites da constituição para atropelar os adversários, com golpes de poder totalmente embasados em premissas legais mas que ferem os acordos democráticos não escritos. O outro passo é sua expansão dos ataques ao judiciário e tentativa de tomar as rédeas das instituições que legitimam absurdos legais. Por fim, tratar seus oponentes ideológicos como inimigos mortais que devem ser eliminados, construindo uma rede de calúnia e destruição de reputações a qualquer custo, envenenando o poço e atacando pessoalmente aqueles cujas opiniões são minimamente divergentes.

Esse flerte pode ser visto em países como o Brasil, EUA, França entre outras democracias que desenham caminhos muito similares aos traçados por Venezuela, Turquia, Hungria, Russia etc. A destruição das bases democráticas de forma gradual é a principal forma com que elas morrem, não mais com golpes de estado ou intervenções militares sangrentas. A grande dúvida é como proteger esses regimes de caírem em desgraça. O primeiro passo pode ser a identificação por todos os agentes sociais e políticos de que essa ruína está em andamento, evitando que figuras autoritárias prosperem no caos. O fortalecimento do coletivismo e empatia devem ser mecanismos incentivados pelos grandes influenciadores de massa assim como a busca pela verdade e contorno do obscurantismo. No entanto, as grandes bolhas sociais virtuais podem ser a principal barreira dessas ações de contingência.

O pensamento crítico está fora de moda e os extremos parecem cada vez mais distantes. Em um oceano de informações as democracias naufragam e são muitos os falsos capitães assumindo o leme de encontro ao iceberg. É dever de todos os tripulantes tomar o controle e evitar a tragédia ou apenas tocaremos os melancólicos violinos enquanto os privilegiados se salvam e todos os outros se afogam.