domingo, 19 de julho de 2020

Travessia - Diário da Quarentena


Aquela era outra vida. Uma vida alheia para qual eu me transportava. Nas shakespearianas palavas de Helena, era minha e não minha. Uma estranha fusão de sentidos, um amálgama de realidades na qual o outro me guia e eu o transformo. Não altero as palavras, mas complemento as lacunas que foram propositalmente lá deixadas para que fossem dinamicamente preenchidas com a experiência de cada um. Onde uns veem Capitu como a dama injustiçada, outros a veem como aproveitadora da inocência alheia. Não há sentido literal além do que as palavras reverberam, mas são os vazios que ressoam e completam a experiência. A genialidade do escritor negro não está no que ele escreveu, mas no que ele não escreveu e como não escreveu. Quando o leitor e o escritor encontram-se em sintonia, as histórias contadas vão além das palavras, das frases, das sentenças e aprofundam-se em um oceano de sentimentos, experiências, memórias.

O que a pesquisadora da linguagem Maryanne Wolf descreve como sendo um processo de leitura profunda utiliza diversos mecanismos e circuitos cerebrais para tornar as palavras lidas algo que sobrepuja o simples entendimento fonético e literal do texto. É um processo que vale-se do conhecimento pessoal de fundo para transformar o que é lido e extrair do texto seu real e amplo significado. Todo escrito tem, no mínimo, dois sentidos. O pensamento crítico e a empatia são frutos do processo de leitura profunda: o primeiro se desenvolve conforme nosso cérebro amadurece os mecanismos de correlação entre memórias que armazenam fatos, ideias e consequências, tornando-os mais imediatos enquanto lemos e tentamos compreender o que está escrito; o segundo, vem da união de experiências entre o leitor, o autor e o texto.

A leitura de um texto literário é um processo de auto-descobrimento ao viver em realidades diferentes, tornar-se pessoas diferentes. É a chance de sermos quem jamais seremos ou estarmos em lugares inalcançáveis e inóspitos. É compartilhar o embrulho, como versa Drummond, que todos carregamos, mas lidamos de formas distintas. Não basta ao escritor dizer tudo que o leitor precisa ouvir, mas instigar a criatividade para que, no fervilhar da curiosidade e imaginação, ele compreenda profundamente e com seus próprios sentimentos o que lá se disserta. 

A tristeza da quarentena é um chamado solitário na névoa para a experiência da leitura. Com uma redução no entretenimento, a socrática vida de contemplação clama por sua vez. Nas páginas dos livros, uma luneta estende-se para que possamos ver a realidade por uma ótica diferenciada. Ou ainda, que possamos escapar da realidade e nos transportarmos a um mundo que vive outros dilemas, outros desafios. Que possamos nos fortalecer com as experiências que não vivemos e trazer as lágrimas, o sangue, o sorriso alheio e fictício para transformar a vida real. Um auto-exílio que novamente nos remete ao poeta mineiro, a saudade do passado é a mesma, mas tudo parece diferente. 

Chegando aos cem mil mortos pelo vírus no Brasil, a leitura é minha válvula de escape. São grandes autores que atravessam os continentes e as gerações, que viajam no espaço até minha casa. Em uma era de restrições de mobilidade, as palavras ainda têm livre circulação e as ideias rompem as barreiras sanitárias sem qualquer risco de contaminação. Na verdade, me contaminam com suas ironias, alegrias, perversões e inocência; me fazem seguir em frente. Me fazem entender a barbárie do presente, colocar em perspectiva com as chacinas do passado e agradecer por prospectarem um futuro melhor. Como no jardim de Frances Burnett, ajudam-me a florescer as ideias, por mais doloroso que possa ser adentrar esse terreno. Sem cuidado, mata-se: empatia, criticidade, pessoas.

Tentando traçar meu (e nosso) caminho, Drummond novamente provoca: "Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos?". E se todos nós vivêssemos?

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Cartas - Diário da Quarentena


A carta havia chegado há algumas horas. Foi o próprio tio que a entregou. Na expressão marcada do velho, era difícil dizer que lá haviam boas notícias e no primeiro olhar já ficou claro o porquê. A mensagem recebida estava selada com o brasão no exército nacional. Aquela não era a primeira carta que chegava na casa com esse selo. Na verdade, ele era sempre predecessor de mudanças brutais na vida daquela família.

Seu pai, no auge da idade, recebeu a primeira, em uma tarde de inverno, quando seu tio era apenas um garoto. A avó, que recebeu a carta, olhava-a com curiosidade enquanto lia a mensagem de convocação às forças nacionais de pacificação das colônias. Ele se uniria ao batalhão ordinário de operações que seria encarregado de conter atos de rebeldia na África Central. Ele, operário como todos os homens da sua família, não teve escolha se não acatar o pedido da nação. Na época, com dois filhos pequenos, a pensão que sua família receberia seria o triplo do que ganhava na fábrica e seria um alívio necessário às dificuldades que pareciam se instaurar naquela casa. O plano era simples: seis meses de operação de pacificação, estabilização do território e retorno para casa. Estaria de volta antes do Natal, condecorado pelo exército e com uma possível carreira militar pela frente.

Poucas cartas foram trocadas durante aquele período. Os seis meses viraram vinte e as batalhas pareciam longe de terminar. O dinheiro foi bem vindo e a família conseguiu melhorar sua condição de vida, podendo reformar seu casebre e alocar confortavelmente todos os que ainda moravam ali. Mas não foi a reforma que abalou as fundações daquela residência, mas uma segunda carta, igualzinha à primeira. A diferença principal era seu conteúdo, um comunicado de desaparecimento. Houve um ataque das forças rebeldes e seu pai não havia sido visto desde então. As mensagens pararam de chegar e o silêncio se instaurou. Seu pai nunca mais foi avistado, as tropas nacionais restauraram a estabilidade na região ao custo de centenas de vidas militares e milhares de vidas de civis. Eternamente desaparecido, o exército nunca o considerou como morto, então não havia entrado para as estatísticas. Tinha sumido da história, apenas mais um que lutara pelo progresso do seu país, batalhara para manter uma região que jamais o beneficiaria e desparecera como um pária.

Para aquela família, no entanto o impacto foi estonteante. Perdia-se a grande referência de duas gerações. A avó enlutou-se por anos a fio até que ela mesmo se fora. O tio tivera que trabalhar o dobro e a mãe, criar duas crianças sob a sombra da tragédia. A perda jamais foi superada sob aquele teto. Foram anos para suturar-se a ferida que aquelas cartas haviam trazido, algo nunca esquecido por sua mãe. Quando estava no crepúsculo dos seus dias, viveu o suficiente para ver uma guerra continental se instaurando, mas não tanto para que visse a terceira carta chegar ao casebre. 

Aquela era endereçada ao seu irmão e continha termos que, mesmo nunca tendo lido a que seu pai outrora recebera, acreditava ter as mesmas palavras lá escritas. Era uma convocação para servir na grande guerra. Novamente, era a esperança de uma vida melhor que entregava a contrapartida. E ele foi. Deixou para para trás o que restou da sua família e partiu para as trincheiras. Dessa vez, sentia o drama do seu irmão como sua mãe o fez com seu pai. A ansiedade pelas cartas, o temor pelas novas táticas de guerra e tecnologias, as notícias de rebeliões em países vizinhos e cidades próximas. A instabilidade caótica que a terceira carta trouxe fora uma facada no peito, sobre uma ferida prévia que sequer havia se fechada completamente. 

As cartas do irmão eram assustadas, a rotina das trincheiras era insalubre e chocante. Não havia recursos o suficiente para todos e o estresse era permanente. Em algumas, relatava sobre a carnificina das batalhas e o sofrimento de ver seus amigos de expedição caírem mortos ao seu lado. Em outra, descrevia seu primeiro disparo, seu primeiro alvo inimigo, seu primeiro abate. Alguns meses depois, chegara o relato de sua primeira lesão incapacitante: havia perdido um olho pelos estilhaços de uma explosão. Para aqueles que ficaram na cidade, era a impotência que reinava. Foram meses de solidão e ansiedade, uniformes voltando para suas famílias sem os soldados. Aqueles que voltavam, eram totalmente diferentes dos que partiam, fisicamente e mentalmente. No casebre, seu tio tentava manter a esperança e a paz no meio da chacina. Garantia que aquela guerra manteria a paz e a estabilidade da nação, que poderiam manter seus empregos e seus costumes se saíssem vencedores, que teriam mais dinheiro do que o país jamais teve. Essas eram as promessas de sempre, prosperidade e estabilidade, promessas contrastantes a uma realidade instável e decadente.

Foi em uma manhã cinza que a luz voltou a se acender. Uma carta do seu irmão indicava seu retorno nas próximas semanas, porém a um alto curto. Tinha se incapacitado permanentemente, perdido um perna, e não poderia continuar a servir seu país em batalha. A mistura de dor e contentamento era estranha e a neblina adensou-se no casebre. Felicidade e angústia, alegria e incerteza. Mas o retorno esperado do seu irmão era a única notícia boa que ouvira naqueles tempos. 

Circulava a notícia de um outro inimigo nas linhas de frente. Um inimigo silencioso como a escuridão, que chegava sorrateiro e arrasava os batalhões. Um inimigo que não atacava só nas trincheiras, mas invadia cidades e incapacitava desde os mais pobres até os aristocratas. A gripe matava de ambos os lados, não fazia distinção das cores da bandeira ou dos gritos de ordem. Chegava, acamava e eliminava. Esse era um terror cotidiano que batia na porta ao lado, com notícias de vizinhos e comerciantes locais com a praga. No meio das novas notícias, tentava-se arrumar o casebre e avisar aos amigos sobre o retorno do soldado aleijado.

É dito que os ciclos são repetições de padrões e que conhecê-los pode ser uma forma de evitá-los no futuro. O que não se diz é que, embora elementos similares se repitam, cada um que vivencia um ciclo é diferente do outro. As experiências, as reações e até mesmo as consequências são diferentes. Naquele dia, a carta selada que o tio havia lhe entregado trazia uma familiar repetição da dor, mas com novos elementos. O irmão morrera de gripe, seu corpo havia sido incinerado junto com outras vítimas fatais da doença, ao lado do camburão que o traria para casa. Os olhos fixos à carta faziam parte de uma expressão já conhecida naquele casebre. Era o ciclo se fechando novamente, mas os diferentes detalhes mudavam tudo. O que perdurava era a dor, eterna e companheira dor.

Diferentemente do pai, o irmão entrara nos registros. Em algum lugar nas trincheiras, um oficial escrevia seu nome em uma linha de um dos cadernos oficiais de baixas. O caderno foi guardado em uma caixa-arquivo para ser enviado ao quartel central, onde seria depositado e talvez nunca mais lido. Nas páginas frias, ele seria mais um, apenas mais um.