Aquela era outra vida. Uma vida alheia para qual eu me transportava. Nas shakespearianas palavas de Helena, era minha e não minha. Uma estranha fusão de sentidos, um amálgama de realidades na qual o outro me guia e eu o transformo. Não altero as palavras, mas complemento as lacunas que foram propositalmente lá deixadas para que fossem dinamicamente preenchidas com a experiência de cada um. Onde uns veem Capitu como a dama injustiçada, outros a veem como aproveitadora da inocência alheia. Não há sentido literal além do que as palavras reverberam, mas são os vazios que ressoam e completam a experiência. A genialidade do escritor negro não está no que ele escreveu, mas no que ele não escreveu e como não escreveu. Quando o leitor e o escritor encontram-se em sintonia, as histórias contadas vão além das palavras, das frases, das sentenças e aprofundam-se em um oceano de sentimentos, experiências, memórias.
O que a pesquisadora da linguagem Maryanne Wolf descreve como sendo um processo de leitura profunda utiliza diversos mecanismos e circuitos cerebrais para tornar as palavras lidas algo que sobrepuja o simples entendimento fonético e literal do texto. É um processo que vale-se do conhecimento pessoal de fundo para transformar o que é lido e extrair do texto seu real e amplo significado. Todo escrito tem, no mínimo, dois sentidos. O pensamento crítico e a empatia são frutos do processo de leitura profunda: o primeiro se desenvolve conforme nosso cérebro amadurece os mecanismos de correlação entre memórias que armazenam fatos, ideias e consequências, tornando-os mais imediatos enquanto lemos e tentamos compreender o que está escrito; o segundo, vem da união de experiências entre o leitor, o autor e o texto.
A leitura de um texto literário é um processo de auto-descobrimento ao viver em realidades diferentes, tornar-se pessoas diferentes. É a chance de sermos quem jamais seremos ou estarmos em lugares inalcançáveis e inóspitos. É compartilhar o embrulho, como versa Drummond, que todos carregamos, mas lidamos de formas distintas. Não basta ao escritor dizer tudo que o leitor precisa ouvir, mas instigar a criatividade para que, no fervilhar da curiosidade e imaginação, ele compreenda profundamente e com seus próprios sentimentos o que lá se disserta.
A tristeza da quarentena é um chamado solitário na névoa para a experiência da leitura. Com uma redução no entretenimento, a socrática vida de contemplação clama por sua vez. Nas páginas dos livros, uma luneta estende-se para que possamos ver a realidade por uma ótica diferenciada. Ou ainda, que possamos escapar da realidade e nos transportarmos a um mundo que vive outros dilemas, outros desafios. Que possamos nos fortalecer com as experiências que não vivemos e trazer as lágrimas, o sangue, o sorriso alheio e fictício para transformar a vida real. Um auto-exílio que novamente nos remete ao poeta mineiro, a saudade do passado é a mesma, mas tudo parece diferente.
Chegando aos cem mil mortos pelo vírus no Brasil, a leitura é minha válvula de escape. São grandes autores que atravessam os continentes e as gerações, que viajam no espaço até minha casa. Em uma era de restrições de mobilidade, as palavras ainda têm livre circulação e as ideias rompem as barreiras sanitárias sem qualquer risco de contaminação. Na verdade, me contaminam com suas ironias, alegrias, perversões e inocência; me fazem seguir em frente. Me fazem entender a barbárie do presente, colocar em perspectiva com as chacinas do passado e agradecer por prospectarem um futuro melhor. Como no jardim de Frances Burnett, ajudam-me a florescer as ideias, por mais doloroso que possa ser adentrar esse terreno. Sem cuidado, mata-se: empatia, criticidade, pessoas.
Tentando traçar meu (e nosso) caminho, Drummond novamente provoca: "Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos?". E se todos nós vivêssemos?