Segundo Nietzsche, algumas mensagens precisam ser escritas com sangue. Alguns cenários só podem ser retratados com pincéis rubros e úmidos, sobre uma tela manchada. A pura perversidade, fenômeno que Edgar Allan Poe descreve como um paradoxo da natureza humana, o agir pelo agir para um sádico deleite pessoal, essa precisa ser registrada como o filósofo alemão espera que façamos. Não há inocência na perversidade, é a moralidade oculta sob a névoa, o prazer de libertar-se e infligir o sofrimento e a dor. O paradoxo de Poe baseia-se em um sadismo intrínseco a todos nós, em que somos todos perversos em algum grau, mas a convivência nos força a controlar e condenar a perversidade como forma de satisfação individual. No entanto, o prazer move e, uma vez naturalizada, somos capazes da mais pura perversidade sem qualquer consciência moral e social que nos impeça de agir. A hipocrisia é a escora desse paradoxo, como o escritor inglês nos leva a avaliar, e não há imunidade contra ela. Quando menos esperamos, criamos um contexto, partejamos a hipocrisia e a perversidade apresenta-se para o regojizo coletivo.
Durante o carnaval, os principais aristocratas italianos vestiam suas máscaras e iam para as festas de rua. Trajando as pomposas ou mais discretas máscaras, os nobres protegiam suas identidades dos olhares invasivos e garantiam momentos de libertação dos protocolos sociais que os limitavam do prazer pelo prazer. Era a devassidão em sua essência, o anticatólica ocasião de deixar-se levar pelos impulsos da carne e pecar como nunca, no país berço da religião romana. Nesses bailes de máscaras, a perversão dos valores sociais vigentes era o que imperava, o anonimato era o passe livre. O pacto do carnaval era velado, todos sabiam o que se passava, todos sabiam das imoralidades e quebras de decoro que escondiam-se por baixo das fantasias. No entanto, a festa continuava ano após ano, semeando a mais pura hipocrisia entre aqueles que diziam-se inquisidores morais. Nas palavras de Rubem Alves, ser é perceber; não se vê e não se fala, não é.
As máscaras que na Itália ocultavam os olhos, hoje cobrem o nariz e a boca. É um bloqueio para a contaminação em massa do vírus que nos assola. Útil quando prudentemente empregada. Não obstante, é possível traçar um paralelo social que atravessa o velho mundo e chega às ruas das cidades brasileiras. O contrato social dos mascarados, como ouso chamar, enterra a frágil auto-quarentena em que tentávamos viver. Os números são os arautos da hipocrisia: as mortes pelo coronavírus não cessam, a pandemia não se apresenta sob controle e sabe-se que o isolamento e o distanciamento são nossas mais efetivas armas de combate para evitar a chacina. Mas os novos mascarados saem às ruas. Os foliões enchem os bares, aglomeram-se em churrascos, fazem festas e deleitam-se com o calor da convivência. Lotam shoppings, ruas, igrejas. O pacto velado repete-se — todos sabem, todos ignoram. Esse, porém, é mais perverso do que os dos aristocratas italianos, pois é um passe livre para que a morte chegue onde dificilmente chegaria e ceife a vida de inocentes pelo prazer e curtição alheia. Novamente, ser é perceber.
Faço meus os pequenos olhos de Drummond, incapazes de ver a realidade do "mundo que se esvai em sujo e sangue". A pandemia extrai de cada um de nós o suco da perversidade e da falta de empatia, escancarando os egoístas explícitos e revelando os egoístas vexados. O sangue com o qual se conta essa história é abundante e diverso, somando mais de uma centena de milhar de tinteiros. Não hei de sujar minhas mãos para que esse relato seja em vão. Serão lembrados todos, os que se foram e os que permitiram que fossem. Assim como no carnaval, após as festas vem a ressaca. O que Poe não deixa de destacar é que a perversidade deixa marcas profundas e dolorosas, tanto nos que sofrem, quanto nos que dela desfrutam. Marcas psicológicas individuais, marcas na convivência coletiva, marcas nas relações entre as pessoas. A quarta-feira de cinzas nos aguarda.