domingo, 23 de agosto de 2020

Mascarados - Diário da Quarentena

 

Segundo Nietzsche, algumas mensagens precisam ser escritas com sangue. Alguns cenários só podem ser retratados com pincéis rubros e úmidos, sobre uma tela manchada. A pura perversidade, fenômeno que Edgar Allan Poe descreve como um paradoxo da natureza humana, o agir pelo agir para um sádico deleite pessoal, essa precisa ser registrada como o filósofo alemão espera que façamos. Não há inocência na perversidade, é a moralidade oculta sob a névoa, o prazer de libertar-se e infligir o sofrimento e a dor. O paradoxo de Poe baseia-se em um sadismo intrínseco a todos nós, em que somos todos perversos em algum grau, mas a convivência nos força a controlar e condenar a perversidade como forma de satisfação individual. No entanto, o prazer move e, uma vez naturalizada, somos capazes da mais pura perversidade sem qualquer consciência moral e social que nos impeça de agir. A hipocrisia é a escora desse paradoxo, como o escritor inglês nos leva a avaliar, e não há imunidade contra ela. Quando menos esperamos, criamos um contexto, partejamos a hipocrisia e a perversidade apresenta-se para o regojizo coletivo.

Durante o carnaval, os principais aristocratas italianos vestiam suas máscaras e iam para as festas de rua. Trajando as pomposas ou mais discretas máscaras, os nobres protegiam suas identidades dos olhares invasivos e garantiam momentos de libertação dos protocolos sociais que os limitavam do prazer pelo prazer. Era a devassidão em sua essência, o anticatólica ocasião de deixar-se levar pelos impulsos da carne e pecar como nunca, no país berço da religião romana. Nesses bailes de máscaras, a perversão dos valores sociais vigentes era o que imperava, o anonimato era o passe livre. O pacto do carnaval era velado, todos sabiam o que se passava, todos sabiam das imoralidades e quebras de decoro que escondiam-se por baixo das fantasias. No entanto, a festa continuava ano após ano, semeando a mais pura hipocrisia entre aqueles que diziam-se inquisidores morais. Nas palavras de Rubem Alves, ser é perceber; não se vê e não se fala, não é.

As máscaras que na Itália ocultavam os olhos, hoje cobrem o nariz e a boca. É um bloqueio para a contaminação em massa do vírus que nos assola. Útil quando prudentemente empregada. Não obstante, é possível traçar um paralelo social que atravessa o velho mundo e chega às ruas das cidades brasileiras. O contrato social dos mascarados, como ouso chamar, enterra a frágil auto-quarentena em que tentávamos viver. Os números são os arautos da hipocrisia: as mortes pelo coronavírus não cessam, a pandemia não se apresenta sob controle e sabe-se que o isolamento e o distanciamento são nossas mais efetivas armas de combate para evitar a chacina. Mas os novos mascarados saem às ruas. Os foliões enchem os bares, aglomeram-se em churrascos, fazem festas e deleitam-se com o calor da convivência. Lotam shoppings, ruas, igrejas. O pacto velado repete-se — todos sabem, todos ignoram. Esse, porém, é mais perverso do que os dos aristocratas italianos, pois é um passe livre para que a morte chegue onde dificilmente chegaria e ceife a vida de inocentes pelo prazer e curtição alheia. Novamente, ser é perceber.

Faço meus os pequenos olhos de Drummond, incapazes de ver a realidade do "mundo que se esvai em sujo e sangue". A pandemia extrai de cada um de nós o suco da perversidade e da falta de empatia, escancarando os egoístas explícitos e revelando os egoístas vexados. O sangue com o qual se conta essa história é abundante e diverso, somando mais de uma centena de milhar de tinteiros. Não hei de sujar minhas mãos para que esse relato seja em vão. Serão lembrados todos, os que se foram e os que permitiram que fossem. Assim como no carnaval, após as festas vem a ressaca. O que Poe não deixa de destacar é que a perversidade deixa marcas profundas e dolorosas, tanto nos que sofrem, quanto nos que dela desfrutam. Marcas psicológicas individuais, marcas na convivência coletiva, marcas nas relações entre as pessoas. A quarta-feira de cinzas nos aguarda.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O Rei Corona - Diário da Quarentena

Era tarde da noite quando aqueles dois homens cruzaram o Jardim Burle Marx, num tortuoso e descompassado caminhar alcoólico. A dessoante conversa entre os dois era praticamente inaudível entre os estridentes grunhidos, soluços e prantinas que a bebida — ou talvez os pensamentos soturnos e impudicos que afloravam com o álcool — fazia com que se misturassem à tentativa infeliz de comunicação. Para quem olhava de fora, a cena, que parecia um comum e triste um fim de noite no centro da capital federal, era cômica e vexatória, mesmo que, para os dois compadres, estivessem plenos de suas ações e entendiam-se como em uma comunicação morcegal particular.

Alguns minutos antes, tinham se alcoolizado em um bar clandestino nas vizinhanças da praça; clandestino pois não deveria estar aberto e recebendo seus leais e ébrios clientes. No entanto, a cidade, fechada para evitar a praga que se espalhava, contava com garagens semicerradas as quais, em seus interiores fechados, pouco ventilados e cheios de calor e contato humano, mantinham a vida boêmia dos trabalhadores urbanos ativa como se nenhuma doença mortal estivesse na porta ao lado. Não apenas se espalhava, mas causava danos irreversíveis àqueles que ousavam enfrentá-la ou minimizá-la. Aos que a subestimava, era a visita de Azrael em espírito que os aguardava para conduzi-los ao necrótico fadário. No entanto, os corajosos companheiros nada temiam sob seus farrapados uniformes laborais, apenas querendo descarregar a rotina sobre doses repetidas de cachaça e vodca baratas. As sirenes que colaram à porta foi o sinal de debandada e os sons das borrachas estralando sobre a carne proletária fizeram com que os homens tomassem seu caminho forçado rumo à noite clara do planalto. 

Abraçavam-se para se afastarem das trêmulas luzes coloridas da viatura na máxima velocidade que seus ébrios pés os permitiam, entrando em alamedas e vielas mal cuidadas, perdendo-se no escuro da noite brasiliense. Cessando-se, pois, a sirene distante, ficaram ao sereno os homens ao tentarem se recompor da fuga cinematográfica que imaginavam em suas mentes confusas e enérgicas. Em um daqueles estreitos caminhos de concreto, uma luz emanava de uma porta de enrolar semiaberta, chamando os dois companheiros como o canto da Iara a iludidos e sonolentos pescadores. O primeiro homem, o mais magro e atlético da dupla, esgueirou-se sob a porta e a abriu pelo lado de dentro, espaçando-a suficientemente para que seu baixo e atarracado companheiro pudesse se juntar a ele. O recinto era pequeno e mal iluminado, o que nada assustava os dois homens, que, com a visão levemente turva, não identificavam o fim do aposento e continuavam, a passos curtos e atrapalhados, seu caminho pelo sinistro cômodo. Vazio até então, uma escada íngreme descia até um porão, de onde emanava um forte cheiro de aguardente e atraía os alcoolizados companheiros como besouros à luz branca. No entanto, não estavam sozinhos naquele ambiente. 

À meia luz, um estranho grupo de pessoas sentava-se em uma mesa redonda, em um cenário mórbido, cercado de fuzis e outras armas de fogo. Ao lado da mesa, bandeiras nacionais manchadas de sangue espalhavam-se aos montes, cobrindo enormes e empilhados tonéis de cachaça de segunda linha. Crucifixos boiavam em poças que vazavam dos recipientes, além de dezenas de outros que pendiam de diversas formas diferentes entre os presentes, muitas vezes quebrados ou desfigurados. Sobre o homem ao centro da mesa, o crucifixo era invertido, apontando para a cabeça do sujeito, cujas órbitas afundavam-se em seu crânio, dando um ar caveirístico ao capitão da mesa, somado ao queixo marcantemente pontudo e peles escorridas sobre sua face. Claramente era o que ordenava e parecia tudo o que sabia fazer, esbravejando ao ares daquele porão apertado frases ininteligíveis, que fizeram os dois visitantes torcerem o nariz em estranheza. Ao avistá-los, o presidente da mesa gargalhou e pediu que se aproximassem, o que fizeram sem hesitação, visto ao insaciável desejo alcoólico da dupla.

Notaram, mas não se atentaram, a estranheza dos demais membros daquela reunião bizarra. O capitão presidente apresentou-se e os demais integrantes da reunião: — Sou o Rei Corona I, minha palavra é a lei, tá ok? Esse é a família real Corona e seus nobres servos —. A direita do Rei Corona, um sujeito rechonchudo com rosto incrivelmente redondo curvou-se ao ser apresentado como Príncipe Corona 02. Sua boca incrivelmente pequena causou estranheza aos dois convidados, que já embebedavam-se da cachaça servida em fálicas mamadeiras, servidas pelo sujeito apresentado como Príncipe Corona 01. Esse apresentava um rosto com aspecto excessivamente alaranjado, como uma cenoura bronzeada e sentava-se ao lado do último dos príncipes, o Príncipe Corona 03, cuja cisura militar contrastava com sua enorme e desfigurante testa, que ocupava dois terços de seu rosto. Além desses, o Rei apresentou os outros três membros da mesa como sendo o Duque Ipiranga, um velho com expressão de buldogue e com pelos grisalhos cobrindo grande parde de seu corpo; e as duas únicas mulheres da mesa como a Rainha Corona, uma jovem arrebitada e dissimulada que tossia sem parar e, finalmente, a Marquesa Elsa, baixinha e atrofiada, com enormes olhos e rugas profundas, adornada com dezenas de crucifixos e símbolos cristãos.

Além das doses excessivas de álcool, os presentes ofereceram cápsulas de algum tipo de droga, que, ao clamor caloroso do Rei, os dois homens ingeriram, sem bem ao certo saberem o porquê — e sem nenhum efeito posterior.  Com a palavra e em meio aos soluços, o mais alto dos convidados questionou ao rei algo que o incomodava: — Afinal, o senhor é Rei do quê? — Constrangido, o Rei ergueu-lhe a voz: — Entra na minha sala, interrompe minha reunião de salvação do país e ainda questiona meus domínios? Eu mando em tudo isso daqui, tá ok? Do europeu inverno do norte à riqueza do sul. Dos gados do oeste aos gados engravatados do leste —. Não convencido, o segundo homem dispara: — Certo, manda em tudo e não tem uma bebida de qualidade pra oferecer? —. O tom de deboche e afronta do convidado fez com que o Rei iniciasse um esbravejamento, enquanto aplaudido por todos na mesa (por exceção da impassível Rainha), e causando ainda mais gargalhadas dos amigos bêbados.

— Isso é uma afronta ao meu poder! Sou eu quem mando nessa p****! — O Rei, em sua ira, encarou com seus olhos afundados olhos o baixinho bêbado que, em um momento de epifania alcoólica, notou uma estranha semelhança: — Você não é rei coisa nenhuma! É o criador de emas do jardim da esplanada, não é rei nem de sua própria cadeira! Hahahaha!! —. O assombro do comentário percorreu todos os presentes: "Blasfêmia! Blasfêmia!" gritava a Marquesa; "Comunista, fuzila, fuzila!", vociferavam os Príncipes; "Privatiza, privatiza!", bravejava o Duque (a Rainha permanecia em silêncio e sem expressão). Em meio às risadas dos dois intrusos, o Rei sacou um revólver e, sem a menor destreza com o artefato, disparou e tentou atingir os recém-sentenciados inimigos da nação. Com o susto, os homens jogaram-se contra as barricas que se equilibravam ao redor da mesa, dando início a uma confusão generalizada. Tambores de cachaça caindo sobre a mesa, estourando e inundando o ambiente; diversos fuzis disparando com os impactos das barricas sobre eles; Príncipes tentando agarrar os bêbados que corriam desesperadamente para as escadas, nadando no álcool e nos comprimidos que nele boiavam.

Correndo ofegantes em direção a rua e deixando o portão para trás, os bêbados desabaram na calçada, conforme os gritos de agonia das disformes criaturas da reunião deixaram de ser ouvidas. Aliviados e gargalhando, os companheiros adormeceram sobre a sarjeta, desprovidos de qualquer senso de localização. O único som que ouviam, além dos pássaros noturnos do planalto é a própria tosse, que parecia estar começando a se apresentar.


—— Esse conto é uma releitura do conto alegórico "O Rei Peste", de Edgar Allan Poe