segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Curtas I - Diário da Quarentena

 

Óculos com grau

Uma das minhas melhores aquisições recentes foram as lentes com grau para meus óculos escuros. Me permitiram ver com nitidez o azul da alvorada, o degradê do crepúsculo, experiência que me era apenas parcial antes delas. Nada me faz sentir mais pertencente a este mundo do que o raiar da aurora, que, de tempos em tempos, precisa-se tornar presente para recarregar minhas energias. Não só ela, na verdade. Um banho de descarrego no mar; a brisa fresca vinda do horizonte; a paisagem natural das montanhas. Preciso de um pouco de tudo isso. As novas lentes escuras me fizeram ver o que antes eram luzes e contornos borrados. Costumo ficar com elas até a noite cair por completo, observando o pôr do sol da varanda de casa, por de trás dos prédios. Outro dia me questionaram como eu enxergava à noite com elas. Olhei seu rosto com uma expressão de paz, apenas eu entendia. Pena que não conseguiu ler meu olhar, quando lhe dei a resposta.

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Invisibilidade

O livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão me mostrou como somos entregues a um mundo pré-moldado e acabamos nos encaixando e sofrendo com relações materiais e sociais que nos envolvem. Um soco no estômago! Eurídice e muitas mulheres poderiam ter sido, mas não foram, engolidas pelo padrão que esperavam delas, tornando-se invisíveis. Metaforicamente, a invisibilidade pode ser definida como tudo o que não é visto, não por sua inexistência física e translucidez visual, mas aquilo que não se vê simplesmente por não se olhar atentamente. A invisibilidade de Eurídice é, em partes, um auto-engano daqueles que olham e não querem ver. Isso é endêmico. Em uma era de informação rápida e pouco veraz, o filtro individual da invisibilidade nos ofusca o que não queremos saber, o que discorda de nós, o que nos desconforta. O racismo, a misoginia, o antagonismo, a doença, tudo pode se tornar invisível se decidirmos não querer ver. Pior é quando o fazemos de forma coletiva. Eurídice nos faz ver a pessoa que lá está, atrás da capa. Sempre há pessoas lá atrás.

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Ainda há tempo de sorrir

Rubem Alves diz que a beleza não elimina a tragédia, mas a torna mais suportável. Diz, não disse, pois ainda ressoa. A beleza é aquilo que perdura, uma mina de sorrisos. Ao mesmo tempo é a mais particular das percepções. A beleza do canto do bem-te-vi, do horizonte da cidade iluminada a noite, dos cabelos dourados da pessoa amada, do olhar caloroso da mãe. Cada belo detalhe que compõe o todo é como o caleidoscópio, em que a beleza é composta pelos caquinhos que formam os fractais. Quando os belos vitrais se quebram, podemos colher os cacos mais coloridos, fazendo a mais bela imagem no caleidoscópio. E é a nova beleza que nos faz sorrir e nos dá forças para refazer as janelas quebradas.