terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Aquele que corta a terra

Naquela hora do dia, quando as sombras eram longas, certa era a companhia das três mulheres. A terra-mãe, ó bela e dourada Oxum, me fizera imortal e cuidara de mim com ternura, para que desse vida aos seus filhos e filhas, durante décadas, séculos. Meus cantos ecoam através das árvores, atraindo as caças e os caçadores, amigos e inimigos, que de mim retiram sua energia vital. A verdade, grande mãe, é que a imortalidade é a resignação do tempo. Passo, mas continuo; nasço e morro no mesmo instante, vendo por mim transitarem as mais belas criaturas mortais, zombando com a intensidade de uma alma passageira. Intenso sou quando Oxumaré me visita, mas não com o fervor da vida fugaz, não com a pujança daqueles que sabem que se vão. A muriçoca busca em minhas fronteiras onde despojar seus ovos. Sabe que são apenas poucos seus dias nos ares e logo retornará à terra, aos braços de Aiê, mas deve completar sua missão e deixar sobre os ares seus descendentes. Serão eles sua eternidade, uma eternidade que eventualmente se acaba, mas nas gerações se perpetua. Intenso é seu movimentar, na impetuosa busca pela continuidade.  Eu, no entanto, sempre estive e sempre estarei lá; passo, mas continuo. Se não es tu, donzela dourada, para acompanhar-me na imortalidade, seria solitário em uma dança contínua e enfadonha, cortando a terra com a mesma lâmina d'agua em todos os nascimentos do sol e da lua. Não tenho ovos nem descendentes, mas de mim depende toda a progenitura dessa terra, a minha missão é estar e partilhar. 

No entanto, minha bela Oxum, mulheres como aquelas faziam-me sentir a vida além das minhas raias. Na alvorada, cada uma trazia consigo um jarro de barro. Aproximavam-se de mim com respeito, curvavam-se de joelhos e enchiam o jarro com a fresca água da manhã. A algidez do meu toque aliviava as dores das mãos das senhoras, que pareciam ter semelhante idade. A musculatura de cada dedo relaxava ao me sentirem, penetrando suavemente sobre as feridas nas articulações e na palma de suas mãos. A vibração dos seus corpos reduzia-se, e a calma das margens os inundava. A experiência da perpetuidade, você compreende, deu-me a perspectiva do sofrimento, apenas as mais vividas criaturas conseguem o compreender. Aquelas mãos são de pessoas que sofrem. Os cortes que diariamente lavo não alimentam suas crias, sua boca. São cortes da exploração. Enquanto aquelas mulheres possuem dezenas, dezenas não possuem uma esfoladela que seja. Mas o meu toque matutino é o alívio às dores da labuta. Retornam com os jarros cheios, adentram a trilha que as reconduz de onde vieram. 

Voltam a mim quando as sombras são curtas, agora com o cesto de panos coloridos. Concordamos, donzela dourada, que as cores são os mais claros sinais de cisão entre as pessoas. As vibrantes cores daquelas roupas contrastavam com as desbotadas e surradas vestes das lavadeiras, que redobravam a delicadeza das mãos calejadas ao esfregar suavemente os tecidos. Claramente não é a delicadeza da mãe ao amamentar um bebê, ou do toque carinhoso à pessoa amada. Era uma delicadeza do medo, não natural. Um rasgo nos panos poderia ser retribuído com um às costas, o que claramente temiam as senhoras. Nesse momento, porém, não era incomum que adentrassem de corpo cheio às minhas águas, banhando-se de forma quase ilegal, fora dos olhos daqueles a quem serviam. Ah, mas como era revigorante, com eram quentes e arredondadas aquelas formas, energia pulsante adentrando a placidez das margens rasas. O sol as dourava e eu as sentia. Compartilhávamos naquele momento a plenitude, a eternidade de um segundo, momento em que toda a onipresença do tempo resumia-se ao contato entre dois filhos da terra-mãe, mesclando a calmaria ao padecimento. Sentia, de forma quase imediata, o raro sorriso dos seus rostos; as lágrimas, por outro lado bem mais comuns, eram uma frequente adição as minhas várzeas.

Naquele outro dia, no entanto, não vieram. No seguinte, vieram duas. Tocaram-me como de costume, ao encher o vaso, e eu senti a frieza das outrora peles escaldantes. A frieza da perda, minha nobre Oxum, sinto em todos os seres vivos. Sinto no lobo que perdeu a ninhada ao caçador, ou no pássaro que lesionou as asas e perdeu os ares, ou ainda no girassol que perdeu sua primeira pétala após seus dias ensolarados. Mas as perdas humanas eram distintas. Algumas não lhe eram perdidas, eram-lhe tiradas. Das trivialidades mortais como comer ou dormir, à totalidade da vida. Eram ceifadas pelos seus iguais. Essas eram perdas mais gélidas, rompiam-se os elos da espécie, a unidade de ser. Nos conectamos naquela manhã, e nos comunicamos. Poucos são os que ainda me compreendem, as vozes das águas apenas ressoam naqueles que param e ouvem com todos os seus sentidos. Mas, por mais fantástico que pareça, elas me ouviram, e eu as ouvi. Não choro, mas absorvo as lágrimas com pesar. Nos abraçamos, eu, as mulheres e a mata, enquanto os jarros vazios padeciam ao nosso lado. 

Das minhas nascentes á foz, grande mãe, as criaturas pulsam de formas distintas. Mas a morte, essa pulsa apenas nos que estão vivos. Talvez um dia eu saiba o que é o fim, talvez aqueles a qual sirvo me matem de forma vagarosa, até não sobrar um único fio de água sobre meu o leito. Até lá, mantenho a experiência das mulheres, que continuaram sendo três pelos longos anos seguintes que as duas senhoras me visitaram diariamente. Pode ser esse sentido do fim, um afluente. Desaguamos nossa vida nos outros e, na seca, nos eternizamos nas águas que fluíram de nós ao manancial.