quinta-feira, 23 de junho de 2016

Uma jornada de consciência


A energia é distribuída de forma desigual em nosso corpo, como dizem as tradições budistas. Permanecer calado em um momento no qual é desnecessário abrirmos a boca evita uma perda indevida do nosso qi, que poderá muito bem ser direcionado para outras partes da existência. Calar-se é um exercício de autocontrole e disciplina. Repetições de mantras, orações e salmos são estratégias de concentração e foco, adotadas por diversos povos ao redor do globo com um objetivo em comum, a reflexão e a autoconhecimento. A meditação hinduísta e o rosário católico, por exemplo, firmam um paralelo que fazem transcender aqueles que os tornam rotina de vida. Não necessariamente uma transcendência em fé, para um plano superior metafísico, mas para um novo estado de consciência, impulsionado pelos próprios desejos depositados em nossas preces. Para um cristão comum, o diálogo com Deus é um hábito, desnecessário a rigor: o Altíssimo de tudo sabe, tudo vê, não precisa ser informado de nada; necessário, no entanto, para o que o próprio orador, muitas vezes perdido no turbilhão de sentimentos, direcione e coloque ordem nos seus desejos e necessidades.

O silêncio, em inúmeros casos, é a atitude menos danosa dentro de uma vida social pacífica. Ter a coragem de se aventurar por dentro de si próprio pode significar uma viagem para além do seu orgulho, um teste de humildade. Ajoelhar-se perante seus problemas, ponderar atos e emoções, refletir sobre falar ou não falar, magoar ou não magoar, relevar ou perdoar. Perdoar a nós mesmos é o primeiro degrau na árdua escalada de perdoar o próximo. Nas brilhantes palavras de Leandro Karnal, o perdão está em reconhecer que o outro erra, assim como eu também o faço, nos tornando igualmente humanos.

O autocontrole necessário para uma meditação limpa, no entanto, não é para muitos. Em um presente que nunca estamos desconectados, em que a internet une os quatro cantos do mundo, é cada vez um trabalho mais árduo nos conectarmos somente a nós mesmos. Exige esforço, cansa mais do que descansa. É abrirmos mão do tempo que tanto sentimos falta, na correria do cotidiano, para ficarmos em um momento improdutivo, lançando mão de uma lógica mais empreendedora. Mas vale a observação: a autogestão, como chamam, pode ser o treinamento que falta para muitos que buscam relações sempre amigáveis com os demais seres sociais que o cercam.

Em interpretação livre, é necessário encontrarmos sentido em nós mesmos antes de contestarmos os outros. Um segundo olhando ao espelho pode ser mais revelador do que uma hora observando pela janela.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O vazio das pessoas grandes


"As pessoas grandes são muito esquisitas", já indagava, meio confuso, o pequeno príncipe viajante. Mal sabia ele ser o início de uma das mais famosas e complexas aventuras que já nos foi relatada, pelas precisas palavras de Antoine de Saint-Exupéry, nos levando a uma jornada por inóspitos planetinhas e um desafiador universo de metáforas. Mais de 75 anos após a primeira publicação oficial, o livro mais vendido de 2015 ensina uma nova lição a cada nova leitura, principalmente quando apreciado em diferentes fases da vida.

"O Pequeno Príncipe" conta a história de nós mesmos, as pessoas grandes. Na figura do inocente e solitário principezinho, constrói-se uma narrativa simples nos diálogos, simples no simbolismo, mas um tapa na cara daqueles que, acostumados a enxergar apenas o mundo que os olhos os permitem ver, esquecem de usar o coração para entender suas próprias esquisitices. Cada personagem interage com o menino representando diferentes carências da existência humana, como muito bem descrito por Schopenhauer, originadas da falta de um "objeto" que nos satisfaz. A futilidade escancarada pelo viajante está exatamente em nossos desejos vazios e sem o sentido, na perspectiva virginal de uma pessoa pequena.

Ao trombarmos com o Rei que nada governa, Exupéry nos convida a viajarmos pela ilusão do poder e a necessidade de controlarmos tudo e todos ao nosso redor. O empresário ironiza nossa fixação doentia em possuir e enriquecer, ao ponto que o acendedor de lampiões nos convida a rir da mania que temos de burocratizar até as coisas mais simples de nosso cotidiano. Para uma criança leitora, os diálogos engraçados e lúdicos divertem; para as pessoas grandes, são um belo de um puxão de orelha. No que o tempo nos transformou, afinal? Qual preço pagamos pela maturidade?

O famoso diálogo com a raposa é um dos trechos mais impactantes de toda a obra. A personagem, necessitada de atenção, nos revela a cerne do que perdemos em nossa metamorfose da idade. Deixamos a sociedade nos rotular, fechados em um cabresto que nos permite ver apenas superficialmente, sem perspectivas. O que realmente importa exige esforço para ser visto. Devemos nos livrar dos vícios, dos sestros que a vida adulta nos impõe. O essencial só pode ser enxergado com o coração, é invisível aos olhos, não está na superfície. É intenso, mas exige esforço para ser desvelado. A raposa nos leva a diversas outras reflexões como a unicidade da amizade e a difícil tarefa de mantê-la eterna.

Cada capítulo, cada diálogo vale a pena ser lido. Para cada linha, dez entrelinhas diferentes para cada leitor. O que torna o livro grandioso é sua capacidade de se transformar a cada leitura, sem mudar uma única palavra de seu texto. Assim como a raposa, o autor nos ensina a entender sua obra: o que está escrito é um convite, a verdadeira história acontece dentro da nossa imaginação.