Do alto da janela de sua mansão, Bruno olhava sem entender o que acontecia do lado de fora. Uma grande cerca o separava de centenas de pessoas, que curiosamente usavam os mesmos pijamas e chapéus listrados. Não era justo, pensava o menino alemão, que ele tinha que ficar sozinho naquela casa, cercado por muitos adultos chatos e estressados enquanto a poucos metros de distância existiam muitas e muitas crianças com quem ele poderia brincar, aproveitar a tarde e jogar futebol. Em outro universo vivia Gui, um menino de classe média brasileiro que recebe a notícia de que sua irmã mais velha sofreu um acidente de carro, tornando-a paraplégica. Lembrando de quando pegou uma bronquite, ficando semanas na cama assim como a irmã, esperava ansiosamente o dia em que ela se curasse e voltasse a andar, podendo brincar com ele novamente. Não entendia, porém, o porque dos adultos evadirem o assunto abruptamente toda vez que ele demonstrava suas esperanças. Esses dois acontecimentos remetem-se a duas ótimas obras de literatura juvenil, O menino do pijama listrado, de John Boyne e Estrelas tortas do brasileiro Walcyr Carrasco. Para os adultos, no entanto, essas obras contam mais do que uma história pelos olhos de uma criança, descrevem, além de muitos outros aspectos, como o filtro do preconceito funciona, como estamos fadados a enxergar o mundo através dele e como ele se constrói ao longo do tempo.
Bruno tinha oito anos, a irmã mais velha, doze. Um dia, entediado e solitário, o alemão busca a irmã querendo respostas. "Eles são judeus, Bruno", responde a irmã, "Nós não gostamos deles". "E nós somos judeus?", o garoto replica, sendo prontamente interrompido pela menina "Não! Não diga isso". "Mas se não somos judeus, o que somos?", novamente questionando sobre as pessoas de pijama listrado isoladas pela cerca. Para essa pergunta, no entanto, a menina não soube o que dizer. Ficamos afônicos quando paramos para pensar no real motivo por agimos de forma estranha com pessoas que nem conhecemos ou acabamos de conhecer. O filtro do preconceito age sem nos darmos conta de sua existência e é esse um dos principais motivos de pessoas preconceituosas não se identificarem como tais. Essa falta de percepção, que Bruno ainda não possuia, está atrelada a dois fenômenos sociais muito similares, que são a estereotipação (normalmente a origem do preconceito em grupos humanos) e a conformidade social (o que o mantém vivo e blindado). O jovem alemão, em sua visão infantil está além dos estereótipos, não entende o que há de diferente entre ele e seu amigo, Shmuel, isolado do outro lado do campo de concentração. Não se conforma com essa segregação, pois não vê sentido no que os adultos fazem, impedindo-os de brincar e se divertirem juntos. A situação é inocente; a mensagem é forte e poderosa. Em que se baseia o preconceito?
Yuval Harari, em seu livro Sapiens, introduz um debate pertinente de como a rotulação e classificação segregadora dos seres e objetos no ambiente em que vivemos desde os primórdios foram necessários para a manutenção do gênero humano no planeta. Em outras palavras a classificação de algo como "Estranho/mantenha a distância" e "Comum/se aproxime" é o modo mais simples que o cérebro dos Sapiens tem em garantir sua autoconservação. Por esse modo, não é exagero dizer que o medo e o preconceito são como dois lados da mesma moeda, provenientes de um mecanismo cognitivo comum. Apesar disso, destaca o autor israelita, os Sapiens conquistaram o mundo por sua adaptação à vida coletiva e capacidade única de unir grandes povos, de acordo com as condições em que viviam em cada época. Um questionamento importante pode ser colocado nesse contexto: o preconceito ainda é um mecanismo necessário para manutenção da nossa vida em sociedade?
Como vencer o preconceito, já que ele ainda é vivo e latente em nosso cotidiano? Gui, um dos narradores do livro Estrelas tortas, nos dá, na simplicidade da visão infantil, um caminho a seguir. Ao voltar para a escola em uma cadeira de rodas, sua irmã Marcella, antes uma das atletas mais queridas entre os estudantes, sofre rejeição instantânea por seus colegas adolescentes. O garoto, por outro lado, não compreende com clareza a reação dos amigos. A irmã mais velha estava doente, deprimida, mas continuava com a mesma personalidade de antes, porque as coisas estavam tão diferentes? O que Gui sentia pela irmã talvez seja a chave para rasgarmos os filtros estereotipadores que se formam ao nosso redor: empatia. A dificuldade (ou o desconforto) de colocar-se na pele alheia, de vestir os óculos dos outros, principalmente dos estranhos, pode ser doloroso, então evitamos a todo custo carregar esse fardo.
Assim como crianças que vão ao parquinho da praça para brincar e se divertir com todos, independentemente das aparências, da classe social ou do gênero, pode uma vida sem preconceitos ser mais leve, divertida e prazerosa. Basta um certo esforço cognitivo, que no começo pode parecer exaustivo, e desassociarmos o medo às aparências. Os livros de Carrasco e Boyne apresentam diversos debates importantes além do recorte aqui destacado, utilizando a narrativa infantil como um ponto de vista distinto, permitindo ver o óbvio muitas vezes entocado em um ponto invisível nas situações do dia a dia. Leituras simples e fluidas, mas que pesam a consciência dos adultos e nos convidam para um interessante experimento de empatia.