Alex é um garoto delinquente, líder de sua própria gangue de nadsats, em uma Inglaterra de um futuro próximo tomada por uma onda de ultraviolência e medo. Esse é o universo que Anthony Burgess introduz nos primeiros capítulos de sua obra-prima, Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, no original). Lançado a mais de meio século atrás, em 1962, o escrito de Burgess sobre seu mundo distópico é uma das mais aclamadas obras do gênero, com diversas adaptações em filmes, teatro e seriados. O narrador e personagem principal da trama, o nadsat (adolescente, na linguagem criada por Burgess) Alex, de apenas quinze anos, vive em um mundo em que a violência impera. O narrador e seus druguis envolvem-se em todo o tipo de ato brutal e impiedoso que nós, como leitores, temos detalhadamente descritos por uma perspectiva de um narrador que participa ativamente de tais bestialidades. Apenas na primeira das três partes do romance é possível presenciar cenas de evisceração em brigas de rua, assalto a lojas, estupros violentos, roubos a domicílios e homicídio. Nosso narrador, como era de se esperar, é pego pelos miliquitas (polícia, nas gírias nadsat) e passa um tempo na prisão. Uma das cenas mais marcantes do livro inglês, eternizado nas telas de cinema por Kubrick, é o tratamento recebido pelo garoto para “curar” seus impulsos violentos.
Forçado a assistir cenas de violência extrema (como as que ele costumava praticar com sua gangue), Alex recebe doses de químicos responsáveis por causar mal-estar simultaneamente às imagens transmitidas. A ideia era clara: associar o seu estado físico deplorável, causado por tais drogas, com a violência, fazendo com que seus impulsos hostis não despertassem o prazer que costumava sentir no passado. As autoridades presentes no romance tinham um plano para erradicar a violência e Alex era a cobaia: “curando” os bandidos, estupradores e ladrões, o crime se extinguiria. Nesse ponto, meus caros, que Anthony Burgess levanta uma das maiores reflexões de sua obra, um debate presente até os dias atuais: a violência como um problema moral ou social.
Não é preciso nos mexermos muito para encontrarmos exemplares humanos que creem que a violência em si de é de origem moral, assim como pensa o governo de Laranja Mecânica. Soluções autoritárias como castração química para estupradores ou pena de morte partem do pressuposto que o crime só existe devido aos desvios de conduta daqueles que os cometem. O que de certa forma é razoável de se concluir. Afinal, se não existissem criminosos, quais crimes temeríamos? Por isso soluções simples como extermínio ou correção permanente são tão atrativas àqueles que vislumbram apenas a superfície da problemática, principalmente quando sofrem com essa violência, vítimas assoladas pelo medo, como as classes mais abastadas do romance de Burgess (conseguem traçar um paralelo com nosso presente?).
A aplicação da técnica foi um sucesso, Alex não suportava mais qualquer ato que o fazia pensar em agressividade, inclusive autodefesa. Tinham extraído essa parte de sua natureza orgânica, agora programada para fazer o bem. Fora da prisão, dois anos depois da sua entrada, o narrador tenta retomar sua vida, sem receber nenhum apoio do Estado para que o faça. Estava solto novamente, dentro da mesma sociedade que o criara. O resultado não poderia ser outro: desamparado por uma família ausente e incapaz de se proteger de seus antigos inimigos, Alex torna-se um ninguém, socialmente marginalizado, sendo agora sua vez de sofrer nas mãos de uma polícia ostensiva e despreparada, colegas com quem tinha inimizades e sem saber o rumo que tomaria sua vida. Tenta, inclusive, a solução final, saltando de um prédio alto, sem sucesso. O ciclo se fecha e o autor retorna ao questionamento original: qual a real origem da violência?
O mergulho profundo sob a problemática apresenta a violência como resultado de uma sociedade endemicamente violenta. O prazer de Alex em cometer atrocidades vai além da pura satisfação pessoal e moral, mas fruto de um contexto que permeia o cotidiano do narrador. A reeducação moral não é o suficiente, como Burgess destaca, pois além de não resolver o problema da origem da violência (outros “Alexes” mais jovens estão florescendo desse perverso jardim), cria-se outra complicação social em relação àqueles que forçosamente tiveram suas vontades extraídas e deixados à deriva. Um estuprador castrado ainda tem a cabeça de um estuprador, mesmo tendo seu corpo alterado a força, e assumirá um papel social como tal. Um bandido morto pelo Estado pode deixar uma família desamparada, possível semente de uma nova geração de violência. O que o autor inglês nos apresenta é a transcendência, além da máscara do medo e da solução simples. E além de tudo, que a violência urbana trata-se de seres humanos maltratando seres humanos. O que leva uns a serem vítimas e outros, os réus? Basta matar uma dúzia de formigas para exterminarmos o formigueiro?
Forçado a assistir cenas de violência extrema (como as que ele costumava praticar com sua gangue), Alex recebe doses de químicos responsáveis por causar mal-estar simultaneamente às imagens transmitidas. A ideia era clara: associar o seu estado físico deplorável, causado por tais drogas, com a violência, fazendo com que seus impulsos hostis não despertassem o prazer que costumava sentir no passado. As autoridades presentes no romance tinham um plano para erradicar a violência e Alex era a cobaia: “curando” os bandidos, estupradores e ladrões, o crime se extinguiria. Nesse ponto, meus caros, que Anthony Burgess levanta uma das maiores reflexões de sua obra, um debate presente até os dias atuais: a violência como um problema moral ou social.
Não é preciso nos mexermos muito para encontrarmos exemplares humanos que creem que a violência em si de é de origem moral, assim como pensa o governo de Laranja Mecânica. Soluções autoritárias como castração química para estupradores ou pena de morte partem do pressuposto que o crime só existe devido aos desvios de conduta daqueles que os cometem. O que de certa forma é razoável de se concluir. Afinal, se não existissem criminosos, quais crimes temeríamos? Por isso soluções simples como extermínio ou correção permanente são tão atrativas àqueles que vislumbram apenas a superfície da problemática, principalmente quando sofrem com essa violência, vítimas assoladas pelo medo, como as classes mais abastadas do romance de Burgess (conseguem traçar um paralelo com nosso presente?).
A aplicação da técnica foi um sucesso, Alex não suportava mais qualquer ato que o fazia pensar em agressividade, inclusive autodefesa. Tinham extraído essa parte de sua natureza orgânica, agora programada para fazer o bem. Fora da prisão, dois anos depois da sua entrada, o narrador tenta retomar sua vida, sem receber nenhum apoio do Estado para que o faça. Estava solto novamente, dentro da mesma sociedade que o criara. O resultado não poderia ser outro: desamparado por uma família ausente e incapaz de se proteger de seus antigos inimigos, Alex torna-se um ninguém, socialmente marginalizado, sendo agora sua vez de sofrer nas mãos de uma polícia ostensiva e despreparada, colegas com quem tinha inimizades e sem saber o rumo que tomaria sua vida. Tenta, inclusive, a solução final, saltando de um prédio alto, sem sucesso. O ciclo se fecha e o autor retorna ao questionamento original: qual a real origem da violência?
O mergulho profundo sob a problemática apresenta a violência como resultado de uma sociedade endemicamente violenta. O prazer de Alex em cometer atrocidades vai além da pura satisfação pessoal e moral, mas fruto de um contexto que permeia o cotidiano do narrador. A reeducação moral não é o suficiente, como Burgess destaca, pois além de não resolver o problema da origem da violência (outros “Alexes” mais jovens estão florescendo desse perverso jardim), cria-se outra complicação social em relação àqueles que forçosamente tiveram suas vontades extraídas e deixados à deriva. Um estuprador castrado ainda tem a cabeça de um estuprador, mesmo tendo seu corpo alterado a força, e assumirá um papel social como tal. Um bandido morto pelo Estado pode deixar uma família desamparada, possível semente de uma nova geração de violência. O que o autor inglês nos apresenta é a transcendência, além da máscara do medo e da solução simples. E além de tudo, que a violência urbana trata-se de seres humanos maltratando seres humanos. O que leva uns a serem vítimas e outros, os réus? Basta matar uma dúzia de formigas para exterminarmos o formigueiro?
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Sugiro fortemente a leitura integral do texto de Burgess. O autor ainda discute temas como autoritarismo, violência policial, uso da linguagem, entre outros. Mesmo sendo uma obra impactante no primeiro contato (inclusive pela linguagem nadsat usada pelo narrador o tempo todo, criada pelo autor inglês), a leitura da obra é rica em temas de grande relevância para os dias atuais e vale cada esforço despendido em sua compreensão. Suas adaptações, em especial a de Stanley Kubrick de 1971 para o cinema, também apresentam ótimas perspectivas para acalorar esse debate.