O que aconteceria se, subitamente, a espécie humana desaparecesse da face da Terra? O que de fato perpetuar-se-ia existindo no nosso planeta mãe? As milhões de toneladas de plástico que lançamos por ano nos oceanos e os grandes centros de concreto continuariam sendo uma realidade palpável para os seres que continuassem vivendo. Nossas fazendas e pecuária seriam remodeladas com o fim dos agrotóxicos e intervenção das colheitadeiras em suas vastas extensões pelo globo. Algumas bactérias talvez voltassem a prosperar, outras espécies domésticas talvez não tivessem a mesma sorte. Mas o que seriam das culturas, das religiões? Grandes organizações como a Apple e a Microsoft ainda existiriam? Qual seria o destino das identidades nacionais, das organizações políticas, do capitalismo, do socialismo? Esses questionamentos podem ser o passo inicial para uma discussão sobre o que é factualmente, fisicamente real e o que existe apenas em um imaginário coletivo humano, fruto das ficções imaginativas de uma sociedade de primatas que convive unida a alguns milhares de anos.
Especialistas na história do desenvolvimento da espécie humana comumente atribuem a capacidade de construir narrativas como o principal elemento na evolução da espécie e que garantiu o grande sucesso que os Homo sapiens obtiveram desde o seu surgimento, nas savanas da África central. Essas narrativas poderiam ser das mais simples, que garantiriam a sobrevivência do indivíduo (como associar um arbusto se movendo com um possível predador na espreita e, com essa narrativa em mente, se preparar com antecipação aos movimento da criatura) ou das mais complexas, que manteriam a coesão social (como o poder sobrenatural para alguns membros da tribo, proporcionando a capacidade de comandar e ditar as regras de um agrupamento humano). Essas características moldam a forma com que o ser humano convive em sociedade e é marcante em nossa espécie até os dias atuais. Grandes empresas, Estados, nações e religiões compartilham do mesmo ventre da Ficção Científica, teorias conspiratórias e hipóteses acadêmicas: são construções narrativas que as pessoas criam diariamente como tentativas de explicar e organizar ideias e, indiretamente, os agrupamentos humanos no qual elas se encontram.
Um exemplo característico é o dinheiro. Moedas como o Dólar, Euro e Real apresentam valores relativos entre si, que caracteriza, entre outros, o poder de compra de cada possuidor e visa regulamentar o comércio internacional. No entanto o dinheiro em si não possui valor. Não é como uma fruta, com seu potencial calórico que é parte da sua estrutura física, ou uma pedra, cujo peso e forma existem, quer você queira ou não; o dinheiro possui aquele valor única e exclusivamente porque criamos uma narrativa em comum que atribui a ele determinado poder de troca e, como sociedade, todos adotamos essa narrativa como verdadeira. De forma similar podemos expandir esse raciocínio para os esportes, para as nações (afinal, o que é a crença nacionalista se não a adoção de uma narrativa que delimita ficcionalmente as pátrias) e também para os regulamentos e legislações.
De fato, as narrativas são mais influentes para os humanos da modernidade do que, digamos, os "fatos reais". Pessoas e sociedades humanas adotam para si diversas narrativas que convivem em harmonia, nem sempre de forma lógica, há de se destacar. Posso ser cristão e cientista, ambientalista e nacionalista, posso ser de direita e democrata. Ou todos esses juntos! Narrativas comuns garantem que as sociedades se mantenham coesas, como a crença em um líder ou em uma divindade, e também podem ser (e são) utilizadas para extorquir e manipular uma quantidade igualmente grande de pessoas. Tudo depende dos elementos narrativos que as compõe.
Discute-se que vivemos na era da pós-verdade, onde as narrativas têm maior poder do que os fatos em si em sua forma bruta. No entanto, uma vertente do pensamento aponta que essa era sempre existiu, desde a Revolução Cognitiva, portanto nunca houve uma época na qual essa tal verdade era regra, na qual ela guiava a sociedade humana. O que há hoje é uma overdose de Narrativas, exigindo dos indivíduos uma análise muito mais criteriosa dos seus elementos do que nunca antes. Talvez, como alguns afirmam, além das capacidades evolutivas desenvolvidas ao longo da existência da nossa espécie. Um grande debate se levanta, uma vez que temos consciência da volatilidade e fragilidade das bases narrativas que sustentam nossa sociedade e nossos indivíduos: como evitar que não sejamos sufocados por essa infinitude de narrativas? Ou ainda, como filtrá-las sem destruir as sociedades humanas como as conhecemos?
O fato é que a as rachaduras estão aparentes e as bases narrativas que nos guiaram na virada do século estão próximas a ruir, seja pelos avanços da tecnologia (computação e biomedicina) quanto pela fragilidade das estruturas de poder nas quais éramos imersos. Quais Narrativas, portanto, nos guiarão pelos próximos cinquenta anos?