quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

As bases das sociedades



O que aconteceria se, subitamente, a espécie humana desaparecesse da face da Terra? O que de fato perpetuar-se-ia existindo no nosso planeta mãe? As milhões de toneladas de plástico que lançamos por ano nos oceanos e os grandes centros de concreto continuariam sendo uma realidade palpável para os seres que continuassem vivendo. Nossas fazendas e pecuária seriam remodeladas com o fim dos agrotóxicos e intervenção das colheitadeiras em suas vastas extensões pelo globo. Algumas bactérias talvez voltassem a prosperar, outras espécies domésticas talvez não tivessem a mesma sorte. Mas o que seriam das culturas, das religiões? Grandes organizações como a Apple e a Microsoft ainda existiriam? Qual seria o destino das identidades nacionais, das organizações políticas, do capitalismo, do socialismo? Esses questionamentos podem ser o passo inicial para uma discussão sobre o que é factualmente, fisicamente real e o que existe apenas em um imaginário coletivo humano, fruto das ficções imaginativas de uma sociedade de primatas que convive unida a alguns milhares de anos.

Especialistas na história do desenvolvimento da espécie humana comumente atribuem a capacidade de construir narrativas como o principal elemento na evolução da espécie e que garantiu o grande sucesso que os Homo sapiens obtiveram desde o seu surgimento, nas savanas da África central. Essas narrativas poderiam ser das mais simples, que garantiriam a sobrevivência do indivíduo (como associar um arbusto se movendo com um possível predador na espreita e, com essa narrativa em mente, se preparar com antecipação aos movimento da criatura) ou das mais complexas, que manteriam a coesão social (como o poder sobrenatural para alguns membros da tribo, proporcionando a capacidade de comandar e ditar as regras de um agrupamento humano). Essas características moldam a forma com que o ser humano convive em sociedade e é marcante em nossa espécie até os dias atuais. Grandes empresas, Estados, nações e religiões compartilham do mesmo ventre da Ficção Científica, teorias conspiratórias e hipóteses acadêmicas: são construções narrativas que as pessoas criam diariamente como tentativas de explicar e organizar ideias e, indiretamente, os agrupamentos humanos no qual elas se encontram.

Um exemplo característico é o dinheiro. Moedas como o Dólar, Euro e Real apresentam valores relativos entre si, que caracteriza, entre outros, o poder de compra de cada possuidor e visa regulamentar o comércio internacional. No entanto o dinheiro em si não possui valor. Não é como uma fruta, com seu potencial calórico que é parte da sua estrutura física, ou uma pedra, cujo peso e forma existem, quer você queira ou não; o dinheiro possui aquele valor única e exclusivamente porque criamos uma narrativa em comum que atribui a ele determinado poder de troca e, como sociedade, todos adotamos essa narrativa como verdadeira. De forma similar podemos expandir esse raciocínio para os esportes, para as nações (afinal, o que é a crença nacionalista se não a adoção de uma narrativa que delimita ficcionalmente as pátrias) e também para os regulamentos e legislações.

De fato, as narrativas são mais influentes para os humanos da modernidade do que, digamos, os "fatos reais". Pessoas e sociedades humanas adotam para si diversas narrativas que convivem em harmonia, nem sempre de forma lógica, há de se destacar. Posso ser cristão e cientista, ambientalista e nacionalista, posso ser de direita e democrata. Ou todos esses juntos! Narrativas comuns garantem que as sociedades se mantenham coesas, como a crença em um líder ou em uma divindade, e também podem ser (e são) utilizadas para extorquir e manipular uma quantidade igualmente grande de pessoas. Tudo depende dos elementos narrativos que as compõe.

Discute-se que vivemos na era da pós-verdade, onde as narrativas têm maior poder do que os fatos em si em sua forma bruta. No entanto, uma vertente do pensamento aponta que essa era sempre existiu, desde a Revolução Cognitiva, portanto nunca houve uma época na qual essa tal verdade era regra, na qual ela guiava a sociedade humana. O que há hoje é uma overdose de Narrativas, exigindo dos indivíduos uma análise muito mais criteriosa dos seus elementos do que nunca antes. Talvez, como alguns afirmam, além das capacidades evolutivas desenvolvidas ao longo da existência da nossa espécie. Um grande debate se levanta, uma vez que temos consciência da volatilidade e fragilidade das bases narrativas que sustentam nossa sociedade e nossos indivíduos: como evitar que não sejamos sufocados por essa infinitude de narrativas? Ou ainda, como filtrá-las sem destruir as sociedades humanas como as conhecemos?

O fato é que a as rachaduras estão aparentes e as bases narrativas que nos guiaram na virada do século estão próximas a ruir, seja pelos avanços da tecnologia (computação e biomedicina) quanto pela fragilidade das estruturas de poder nas quais éramos imersos. Quais Narrativas, portanto, nos guiarão pelos próximos cinquenta anos?

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Oceano


A pontualidade do sino da basílica era sempre incontestável. No exato momento em que os ponteiros se unem aos céus, doze sonoras badaladas reverberam-se sob o sol em seu apogeu e a cidade é alertada que metade do dia já se fora. Toda manhã, a velha freira segue uma rotina meticulosa: inicia-se após seu café matinal, com o cântico de seus salmos diários e preparação do altar para as celebrações do dia. Faltando vinte minutos para as onze, a senhora parte para a preparação da sopa, de acordo com o que manda o cardápio recebido pela pastoral dos desamparados. O preparo é finalizado após uma hora e dez minutos, tempo o suficiente para que ela suba até o campanário e encha a moderna cidade com os gritos do bronze cintilante. A sopa então é servida aos abrigados nos fundos da catedral sendo o próprio desjejum vespertino da senhora que o preparou. Tudo conforme planejado, sempre regrado e seguindo a palavra. Uma vida de privações e fé absoluta.

Ao ouvir o sino ressoando, a jovem olha aflita no relógio para confirmar o que seus ouvidos negam-se a acreditar. Estava atrasada. Estava sempre atrasada. Entrando no táxi, tinha menos de trinta minutos para cruzar a cidade e chegar nas portas do cliente. O negócio era importante para seu futuro e um vacilo qualquer poderia colocar em risco toda a carreira brilhante que a jovem engenheira sempre sonhou. No entanto, o trânsito é o mais cruel algoz dos retardatalhos e a passageira tinha picos de ansiedade a cada novo engarrafamento que aparecia em sua frente. Era o caos, um tornado de acontecimentos. Uma vida de oportunidades e nervos a flor da pele.

A modernidade líquida é um imenso oceano. Uma vastidão de oportunidades e de mistérios, com tempestades avassaladoras e ventos capazes de guiar até os menores dos barcos para alguma direção. No meio da imensidão das águas modernas, a atenção volta-se para tudo e, ao mesmo tempo, perde-se de maneira muito veloz. Enquanto enxergar as margens pode limitar nossas destinos, o horizonte aberto é capaz de angustiar até as mentes mais centradas e determinadas. Afinal, seja na superfície, seja nas profundezas, onde vale a pena pular do barco e ousar a nadar?

Talvez a mente humana não seja capaz de absorver todas as informações que é submetida todos os dias, a todo momento. Litros e litros de dados de fontes variadas inundam o cérebro e dar atenção para cada um deles pode ser uma tarefa além das capacidades de uma pessoa média.  Filtrar toda essa enxurrada poluída é um grande desafio para manutenção da sanidade e o ponto de partida pode ser a compreensão do que está efetivamento sob possível controle e o que será incapaz de ser alterado. Lidar com os atingíveis e dedicar menos esforço cognitivo aos distantes pode garantir um mastro sólido para ser direcionado pelos ventos incertos do futuro. Esse processo, no entanto, apenas pode ser realizado quando lança-se mão do poder humano de escolha. Escolhas e abdicações, os mais dolorosos de uma vida de liberdades. Dádivas e maldições do livre-arbítrio.

As decisões são os lemes, elas guiam, elas levam a um caminho. Uma vida de privações de liberdades pode significar uma existência sem escolhas e, por consequência, livre das frustrações acarretadas por elas; gozar de uma vida de liberdades pode significar um cotidiano atolado em angústias e arrependimentos, pois cada nova escolha é uma renúncia a tudo que um dia poderia ter sido. Escolher quais marés navegar pode nos guiar para o paraíso ou para o abismo enquanto um rio, sem decisões de rota, tem sempre um curso fixo, com nascente e foz. No oceano da modernidade, as escolhas pesam pois elas estão cada vez mais presentes e necessárias.

Ao final da tarde, a freira arruma seu quarto, separa suas novas roupas de cama, reza o rosário e descansa, pensando na vida eterna. No início da madrugada, a jovem desliga o celular, tomas suas cápsulas tarjadas e dorme, pensando no dia de amanhã. Ambos os pares de olhos fechados significam que o dia já se foi, e as experiências vividas jamais serão recuperadas ou revisitadas. São essas experiências as ilhas em que o barco das nossas vidas deseja atracar, portos seguros no oceano; são essas experiências que, no final das contas, fazem com que navegar valha a pena.