quarta-feira, 5 de junho de 2019

Hipocrisia e duplipensamento



É provável que a hipocrisia tenha acompanhado as vidas humanas desde que as relações sociais começaram a se estabelecer entre os primeiros hominídeos da nossa espécie. O ato de se comunicar, seja ele por escrito, falado, por gestos ou mímicas, trata-se de um mecanismo de transferência de narrativas entre indivíduos, uma forma de passar determinada sequência de informações codificadas para um interlocutor capaz de compreender seu significado. A comunicação abre espaço não apenas para o relato de fatos e descrições da vida e do universo concreto ao redor, mas de realidades subjetivas metafísicas e estruturas narrativas não fundadas em objetos, criaturas ou situações que foram de alguma forma captados do mundo externo pelos sentidos humanos. A capacidade imaginativa e de síntese do irreal na forma de mecanismos de comunicação pode ter sido um dos principais impulsionadores da vida em sociedade. É dessa base que surgiram as religiões, estruturas hierárquicas e mecanismos de ordem social, como moedas de troca e sistemas de numeração. No entanto, a comunicação pode ter múltiplas funções além de um vetor de transferência de dados, sendo, desde os primórdios, uma das principais formas de entretenimento de aglomerados humanos. Contos reais ou fantásticos provenientes das primeiras civilizações mostram como a capacidade de criar desenvolveu-se ao longo da história, seja para relatar uma caçada a um grande predador na savana ou espalhar notícias falsas para destruir a reputação de um profissional renomado. A mentira nos segue e nos molda, nem sempre de forma consciente, nem sempre partindo de nós mesmos. Quando nos expressamos em desacordo com as nossas crenças, quando aconselhamos algo que não faríamos de forma empática, quando moralizamos situações em que nossa moral não se enquadra utilizamos a mentira como um véu: tentamos cobrir a realidade utilizando os deslimites que os artifícios de comunicação nos permitem desfrutar. 

Quando George Orwell descreve os princípios básicos do Partido autoritário do Grande Irmão, na obra 1984, ele centraliza como um instrumento chave de controle social o chamado "duplipensamento". Em suma, segundo as premissas do Partido, o duplipensamento é aceitar sem identificar contradições lógicas duas lógicas de pensamento essencialmente contraditórias. Receber informações que parecem estar em completo desacordo lógico e acatar ambas como verdades plausíveis. O duplipensamento é uma das bases de controle social do partido pois permite que absurdos transpassem as barreiras lógicas e possam ser justificados com qualquer malabarismo falacioso. O contraste básico entre o duplipensamento e a hipocrisia mostra-se no caráter consciente da oposição de ideias: o crer e o agir do hipócrita são claramente antagônicos enquanto no duplipensamento o agir é dualista e aquele que o pratica não identifica incoerência em tais atos. O duplipensamento é poderoso pelo seu caráter de aceitação passiva do contraditório, sem padecer na cova do hipócrita. Duplipensar é aceitar, por exemplo que a soma de duas unidades são dois e, ao mesmo tempo, a soma de duas duplas são cinco. De forma mais sutil, duplipensamos em muitos momentos do cotidiano, quando abrimos mão da análise lógica e crítica para caminhos mais fáceis de compreensão do mundo. Um cristão que milita favorável a pena de morte pode ser hipócrita a ponto de não ser de fato um cristão ou pode usar de forma inconsciente o duplipensamento, realmente crendo nas duas vertentes, convivendo com a lógica contraditória inerente a elas. 

Não é preciso divagar para entender o quanto a Londres do Grande Irmão se mostra nos dias atuais, em um sítio constante à democracia e na ascensão do obscurantismo de massa. Utilizando a confirmação como viés predominante em narrativas recheadas de teorias de conspirações globais, o duplipensamento aflora. Quando a lógica cai para planos inferiores, a hipocrisia perde espaço por se tratar de algo mais facilmente refutável, pois nela o que é dito levianamente não existe nem mesmo na realidade paralela daqueles que os proferem. No entanto, pessoas com duplipensamento são fundadas sobre a rocha da certeza, da absoluta certeza de que não há problema de tratar como lógica a anti-lógica. Assim como dois mais dois são cinco, o caminho para a democracia plena é a repressão, o caminho para se libertar é a se submeter, o caminho para o amor eterno é o ódio ao diferente e o caminho para o conhecimento é a negação ao conhecimento. Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão.

Numquam obliviscar, Ignorância é Força.