sábado, 9 de novembro de 2019

Um segundo


Certa tarde, caminhava a passos largos em uma calçada da cidade. Munido de pernas curtas, precisava acelerar o passo para chegar a faixa de pedestre e cruzar a avenida com o sinal ainda verde. Dobrei a velocidade e olhei fixamente para meu ponto de destino do outro lado do asfalto esburacado. Nos meus ouvidos, o pancadão acelerava para acima de cento e cinquenta batimentos por minuto e os meus movimentos de passos acompanhavam a aceleração da música. Era chegada a hora. Meus pés sentiram a sutil elevação do relevo da sarjeta e o próximo contato com o chão me colocaria dentro da maior zona de risco da minha caminhada, a rua. Mas apenas se eu completasse aquele passo. Milésimos de segundo antes, meus neurônios disparam o sentimento repentino de variação de pressão sob a minha coxa esquerda, algo que a pressionava parecia não estar mais lá. Cesso meu movimento, olho para trás e vejo minhas chaves de casa a dois passos de distância; dois passos onde já havia pisado dentro daquela dezena de segundos. Inverto meu corpo, rotacionando meu tronco e alcanço o chaveiro, em um movimento de um segundo e meio. Volto a minha direção original, recupero meu foco e avanço um dos dois passos perdidos. E eis que o segundo passo não se concretiza.

Na esquina, um velho caminhoneiro para à luz vermelha do semáforo. Sua mente vagava quilômetros de distância de onde jazia seu corpo, pensando na família em sua cidade natal. A filha mandara uma mensagem de áudio assustada naquela manhã, com medo do parto que viria na noite seguinte. A gravidez era de risco e o velho motorista sabia que poderia estar próximo de perder a filha e a neta de uma única vez. Distraído, pois, o caminhoneiro sentiu a vibração do seu celular do banco do passageiro. Esticou a mão em busca do dispositivo e o alcançou em alguns décimos de segundos. Um toque na tela e a mensagem aparecera: um spam de uma loja de artesanato, avisando da nova feira da cidade que venderia adoráveis sousplat especialmente para enfeitar a ceia de Natal. Foram dois segundos de decepção e alívio; dois segundos que o semáforo trocara para a luz verde e o caminhão ainda não tinha se movido. A buzina dos carros que o precediam foi como um tiro de carabina, trazendo o velho senhor de volta ao seu caminhão e forçando-o a acelerar o máximo que era possível. Cruzou a esquina em alta velocidade, tentando recuperar os preciosos segundos que perdera em sua solitária preocupação. Em nenhum momento reparara no que poderia haver a sua frente.

Em um hospital no estado vizinho, um bebê nascia. A mãe segurava a criança recém-nascida nos braços enquanto ouvia os seus gritos de dor do primeiro contato com o mundo. O mundo não era para os fracos, isso é um fato, e tanto a mãe quanto a filha sabiam disso como ninguém. As duas trocando olhares era um milagre da medicina moderna e era quase esperado que uma das duas não conseguisse chegar nesse momento. O corpo médico do hospital tinha sido certeiro na cirurgia, e o risco já era muito remoto para as duas vidas que andaram na corda bamba minutos atrás. A felicidade era imensa naquela sala, transbordava e irradiava toda a maternidade. Os enfermeiros comemoravam como em uma final de campeonato, tinham desafiado e vencido a morte, por questões de detalhes e decisões bem tomadas. A mãos do experiente obstetra tremiam como nunca antes, e lágrimas escorriam por suas bochechas, um pouco na margem da ética profissional. A mãe queria mostrar ao mundo que estavam bem e que aquela família estava renascida. Sacou o celular e pediu uma foto. Mandaria para seus amigos, seu marido e, especialmente, ao seu pai que estaria a quilômetros de distância aguardando a notícia. Seria sua felicidade. Com a bateria no vermelho, tirou fotos com o bebê, com os médicos e enfermeiros e gravou um vídeo com os primeiros choros da criança. A tecnologia tem dessas, guarda e compartilha momentos, mas só enquanto a bateria mantêm os aparelhos ligados. E, a um clique de distância de enviar a mensagem ao seu pai, a tela apaga. Teria que esperar algumas horas para comunicá-lo, pelo menos até chegar no quarto onde estava seu carregador. Não haveria problema em esperar para avisá-lo, ela estava bem e a criança já dormira em seu leito. O que poderia acontecer de diferente se a mensagem chegasse agora ou em algumas horas? 

Foi por questão de milímetros e milissegundos. Um caminhão passava em alta velocidade na minha frente. Eu não o vira, assim como ele mesmo não tinha o feito comigo. Meu coração acelerava e o vento quase me fez cair. Foi por um triz. Um detalhe. Um passo. Atravessei a rua com cautela, após o semáforo fechar novamente. Chegaria em casa e abraçaria minha mãe. Chegaria em casa e beijaria meu pai. Bastaria um segundo para que tudo fosse diferente. Um segundo para que o meu mundo se transformasse. Recuperei a calma e prossegui. Prossegui. E assim prossigo.