segunda-feira, 25 de maio de 2020

Meu inimigo - Diário da Quarentena


A lógica do inimigo é um dos alicerces de muitos grupos sociais que visam uma universalização das suas ideias. O jogo do maniqueísmo inicialmente categoriza os indivíduos e instituições em grupos antagônicos: o bem, representado pelo grupo no qual eu sou o membro característico; e o mal, representado pelos outros que divergem de mim em algum grau. O dualismo é uma forma primitiva do ser humano pensar e se relacionar com o mundo, uma forma simples e rápida de evitar ser devorado por um predador desconhecido. O que diverge do meu padrão de bom, é mal, consequentemente. A lógica do inimigo, no entanto, é ainda mais poderosa. Trata-se de atribuir ao mal uma face, um nome. É a síntese em ação. Ao resumir um grupo em uma personalidade, a semiótica atinge seu pico de fidelização, pois é fácil de lidar com um problema muito bem conhecido e definido. O mesmo vale para o grupo bom, tendo o herói como seu expoente, aquele que me representa. Não há fascista que resista aos encantos de uma história tão perfeitamente amarrada e alinhada com seus desejos sádicos e messiânicos. Para finalizar, é necessário desumanizar, atribuir ao outro as características mais baixas para que se possa justificar a barbárie e a eliminação.

Em tempos de quarentena, no entanto, os nós se desmancham e a dicotômica lógica de guerra permanente entra em crise. Como o psicanalista Gabriel Tupinambá sabiamente destaca, o coronavírus é um elemento de ruptura dessa lógica, um inimigo comum a todos, cujo surto é uma causalidade natural, sem alguém para ser diretamente responsabilizado. Sem um nome, a batalha contra o inimigo invisível que causa a Covid-19 torna-se estranha para aqueles que se alimentam do conflito permanente. A ciência é a principal arma e o conhecimento vai se construindo aos poucos, com muitos erros e mudanças de paradigma no caminho. A lógica do inimigo entra em parafuso e os alicerces sentem o terremoto. Não é mais possível sustentar-se somente na retórica, ações são necessárias se realmente espera-se poupar vidas. No desespero para salvar a narrativa, criam-se os inimigos virtuais, espantalhos recheados de boatos e sustentados pelo medo. Falsas responsabilidades são atribuídas, problemas menores são inflados e rostos são dados aos que querem o meu mal. Enquanto isso, o vírus se propaga.

Quando a caquistocracia se encontra com a necropolítica, os espantalhos ganham tamanho e surgem como um escudo para que os grupos neo-fascistas se isentem da responsabilidade e cumpram sua missão de limpeza social com ajuda do inimigo invisível. A velha lógica liberal é aplicada para que fique nas costas do indivíduo a decisão entre morrer ou viver, seremos unica e exclusivamente responsabilizados pelas nossas escolhas individuais. Simples, fácil de compreender, uma luva para o espantalho da morte. Meus inimigos agora são a China que liberou a praga, as lideranças locais que nos privam de nossas liberdades, a quarentena que congela a economia. Meus heróis são os remédios milagrosos, meu líder político que abre nossos olhos, a mídia alternativa que repassa as informações reais da "pandemia", sem filtros. Com isso a curva sobe, os hospitais lotam, os corpos se empilham, mas a responsabilidade não é mais minha, a culpa não é mais minha. São eles que trazem o inferno. Quando faço arminha com a mão, já diziam os ecos do Twitter, um dedo aponta o adversário e três apontam para mim.

Três meses de quarentena já se passaram e a tsunami brasileira está se formando. Um lamaçal de ódio e angústia somados com ansiedade e medo vem em alta velocidade para arrastar os corpos que se empilham. Enquanto isso a necropolítica se perpetua e os sonhos de Žižek para uma sociedade solidária parecem mais distantes no horizonte. 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Mudanças - Diário da Quarentena


Do melhor estilo kafkiano, um belo dia o mundo despertou dos seus sonhos intranquilos com um vírus mortal e desconhecido se proliferando. O que foi uma novidade súbita para a população em geral, era uma mina terrestre para epidemiologistas chineses, que estudavam a instabilidade viral por conta do consumo de animais silvestres no mercado de Wuhan a muitos anos, com diversos estudos publicados. O que importa é que não estávamos nem perto de ter o preparo necessário para evitar a pandemia e as centenas de milhares de vidas perdidas. As mudanças desencadeadas pelo súbito surto ramificam-se em diversos níveis e os questionamentos surgem e ressurgem sobre como a vida se organizará pós-pandemia.

A primeira indagação é sobre o tempo, o senhor do destino. Por quanto tempo estaremos em uma situação de exceção, isolados e fechados em nossas casas e, principalmente, convivendo com nós mesmos, sem escapes? Por quanto tempo continuaremos correndo o risco de nos infectarmos e colocarmos em perigo aqueles que amamos? Por quanto tempo seremos cobrados pela nossa negligência? Segundo Bento Santiago, para aqueles que têm promessa a pagar na Páscoa, a quaresma é curta. Talvez as dívidas que acumulamos por anos estão, enfim, sendo cobradas, com altos juros. Nosso extrato está no vermelho e não há crédito de carbono que compense a devastação que continuamos a causar. Nas palavras de ambientalistas brasileiros, destruir habitats não é eliminar os vírus que neles vivem, mas selecionar os mais adaptados para proliferarem em outras espécies, como a humana. É unânime, infelizmente: esta é apenas uma de muitas crises virais que teremos causado, em nossa fome por progresso. Crises sempre geram angústia, ansiedade e nervosismo. Novamente nas palavras machadianas, crises sempre duram séculos pra quem as vive, por mais curtas que sejam.

Outro ponto de debate é o conflito entre solidariedade e egoísmo. O quanto devemos nos unir para que juntos possamos garantir a minha sobrevivência e de quem amo? Redes globais de solidariedade têm tomado maiores proporções, em especial por estarmos combatendo um inimigo que não tem interesses escusos que não seja a primitiva e inconsciente perpetuação do seu material genético. Žižek discute, em uma de suas obras mais recentes, como esse modelo de rede de colaboração é necessário para que estejamos preparados para futuras ondas como a que imergimos. Para esse tipo de crise, não há apenas uma nação prejudicada, ou classe, ou etnia. É um momento para questionarmos nossos hábitos de consumo e produção, como lidamos com investimentos estatais para o bem estar social e como a sociedade civil se organiza em escala global em prol da sua própria sobrevivência. Transpassando os Estados-nação, a união social para resistir a recessão que seguirá será um teste para uma versão moderna e contemporânea das Internacionais do século XX. Se essa crise causará uma implosão no sistema capitalista global, apenas ele, o senhor da esperança, poderá dizer. Mecanismos protecionistas e imperialistas esboçam movimentos para se sobressaírem em uma disputa global por recursos, embora essa ainda não seja a regra. Mas como Harari cirurgicamente destacou, se sairmos dessa mais desunidos e egoístas do que antes, quem venceu foi o vírus. E este poderá ter sido apenas o primeiro round.

Por fim, existe uma mudança que é definitiva e permanente. Uma mudança irreversível para todos que estão envolvidos nela. A morte é como o vento, invisível e implacável; uma brisa suave e refrescante para alguns, uma lâmina gelada e devastadora para muitos. O que o vento carrega, se vai no horizonte, vemos como uma intocável lembrança aquilo que jamais alcançaremos novamente. Citando Machado uma terceira vez e pedido desculpas por inverter a frase do seu defunto personagem, os mortos não choram, entretanto jamais voltarão a sorrir. Passam de trezentos mil o número de vidas encurtadas pela Covid-19. Trezentas mil famílias vítimas da tempestade, com sorrisos amados varridos pelo sopro da morte. Aceitar as estatísticas é ser cúmplice de um genocídio global; abster-se de agir é sujar as mãos de sangue.

A perspectiva é prosseguirmos na escalada e, dia após dia, sentimos a tempestade se aproximando cada vez mais. Que nossa humanidade fale mais alto que o barulho do vendaval.