A lógica do inimigo é um dos alicerces de muitos grupos sociais que visam uma universalização das suas ideias. O jogo do maniqueísmo inicialmente categoriza os indivíduos e instituições em grupos antagônicos: o bem, representado pelo grupo no qual eu sou o membro característico; e o mal, representado pelos outros que divergem de mim em algum grau. O dualismo é uma forma primitiva do ser humano pensar e se relacionar com o mundo, uma forma simples e rápida de evitar ser devorado por um predador desconhecido. O que diverge do meu padrão de bom, é mal, consequentemente. A lógica do inimigo, no entanto, é ainda mais poderosa. Trata-se de atribuir ao mal uma face, um nome. É a síntese em ação. Ao resumir um grupo em uma personalidade, a semiótica atinge seu pico de fidelização, pois é fácil de lidar com um problema muito bem conhecido e definido. O mesmo vale para o grupo bom, tendo o herói como seu expoente, aquele que me representa. Não há fascista que resista aos encantos de uma história tão perfeitamente amarrada e alinhada com seus desejos sádicos e messiânicos. Para finalizar, é necessário desumanizar, atribuir ao outro as características mais baixas para que se possa justificar a barbárie e a eliminação.
Em tempos de quarentena, no entanto, os nós se desmancham e a dicotômica lógica de guerra permanente entra em crise. Como o psicanalista Gabriel Tupinambá sabiamente destaca, o coronavírus é um elemento de ruptura dessa lógica, um inimigo comum a todos, cujo surto é uma causalidade natural, sem alguém para ser diretamente responsabilizado. Sem um nome, a batalha contra o inimigo invisível que causa a Covid-19 torna-se estranha para aqueles que se alimentam do conflito permanente. A ciência é a principal arma e o conhecimento vai se construindo aos poucos, com muitos erros e mudanças de paradigma no caminho. A lógica do inimigo entra em parafuso e os alicerces sentem o terremoto. Não é mais possível sustentar-se somente na retórica, ações são necessárias se realmente espera-se poupar vidas. No desespero para salvar a narrativa, criam-se os inimigos virtuais, espantalhos recheados de boatos e sustentados pelo medo. Falsas responsabilidades são atribuídas, problemas menores são inflados e rostos são dados aos que querem o meu mal. Enquanto isso, o vírus se propaga.
Quando a caquistocracia se encontra com a necropolítica, os espantalhos ganham tamanho e surgem como um escudo para que os grupos neo-fascistas se isentem da responsabilidade e cumpram sua missão de limpeza social com ajuda do inimigo invisível. A velha lógica liberal é aplicada para que fique nas costas do indivíduo a decisão entre morrer ou viver, seremos unica e exclusivamente responsabilizados pelas nossas escolhas individuais. Simples, fácil de compreender, uma luva para o espantalho da morte. Meus inimigos agora são a China que liberou a praga, as lideranças locais que nos privam de nossas liberdades, a quarentena que congela a economia. Meus heróis são os remédios milagrosos, meu líder político que abre nossos olhos, a mídia alternativa que repassa as informações reais da "pandemia", sem filtros. Com isso a curva sobe, os hospitais lotam, os corpos se empilham, mas a responsabilidade não é mais minha, a culpa não é mais minha. São eles que trazem o inferno. Quando faço arminha com a mão, já diziam os ecos do Twitter, um dedo aponta o adversário e três apontam para mim.
Três meses de quarentena já se passaram e a tsunami brasileira está se formando. Um lamaçal de ódio e angústia somados com ansiedade e medo vem em alta velocidade para arrastar os corpos que se empilham. Enquanto isso a necropolítica se perpetua e os sonhos de Žižek para uma sociedade solidária parecem mais distantes no horizonte.