Existem noites em que eu me perco no escuro. Normalmente acontece quando a sombra da Terra ofusca o brilho do luar. Ó, Diana, como fazes falta em minhas caminhadas noturnas, sempre desafiadoras no breu da periferia. Moro no morro, o ponto de ônibus é na avenida. Quase três quilômetros de subida separam meu corpo cansado do conforto da minha cama. Exausto, a subida é um martírio. Carrego o peso da rotina sobre os ombros e subo, muitas vezes sob o lapo da realidade. A Lua Nova apaga meu farol celeste e meus olhos se tornam mais atentos. Em tempos de pandemia, nossos olhos estão mais atentos do que nunca.
Mas, de fato, meus olhos sempre foram mais sensitivos que a média. Para mim, tratava-se de uma questão de sobrevivência. Naquele momento, era minha visão periférica que via as luzes à distância, se aproximando, piscando e reduzindo a velocidade. Mais perto e mais lento. Seguia-me, conforme eu escalava as calçadas irregulares. Não era a primeira vez que isso me acontecia. Talvez seja a sina do trabalhador, receber atenção especial da polícia quando por qualquer ato que seja. Ainda mais mascarado. Não há paz na minha pandemia. Não há quarentena para quem está na linha de frente.
Meu plantão no hospital ia até as três da manhã. Via, nos dias em que se passavam, o número de contaminados subindo. No início eram os hospitais particulares que se enchiam de doentes, ricos que contraíram a doença no exterior ou em alguma festinha badalada nos condomínios de luxo. Hoje são os lojistas, os faxineiros, os informais, aqueles que lutam todos os dias para sobreviver e, para isso, se expõem à morte. Esses eram os que lotavam minhas UTIs. Como enfermeiro responsável pelas operações de emergência, cada novo paciente era um aperto na alma. O fato é que todos estavam perdidos. Não há tratamentos e procedimentos precisos, não existe remédio ou cura milagrosa. Cada caso é um caso e a incerteza era a fonte da nossa ansiedade. Nossa saúde mental ia para o ralo e, a cada morte, um semblante de impotência encobria os corredores do hospital.
Aquela caminhada noturna era uma terapia. Meditava e desligava meus pensamentos da estressante rotina da madrugada. As vezes chorava sozinho, lágrimas gêmeas às das famílias que deixavam a UTI rumo ao crematório. Ao pingar no chão, cada lágima apenas juntava-se ao orvalho que umedecia a calçada. Tornava-se mais uma gota de água. Olhava, pois, para a Lua. O brilho nos meus olhos molhados ficava explícito sobre o raiar do luar e ele me fortalecia. Não há, Diana querida, dor que seu brilho não atenue; ferida do coração que ele não suture; lágrima que ele não evapore. Mas aquela noite, você não estava comigo.
O brilho sobre meu rosto, naquele momento, vinha da lanterna que o policial segurava. Mandou-me parar e desceu da viatura com a mão no coldre. Eram três, para ser preciso. Já sabia o que se passaria por aí. Sem máscaras, ordenaram que eu retirasse a minha. A contragosto, o fiz. A autoridade do rapaz fardado era sádica, descarregava pelas palavras o que não poderia descarregar com munição e a fisionomia de satisfação era plena. Empurrou-me contra a parede, me revistou, me insultou enquanto eu respondia com claro desgosto aos arrochos autoritários do trio. Tratava-se de um cabo de guerra com um barbante e eu sabia que é sempre do lado mais fraco que ele estoura. Quando respondi com ar de impaciência à décima segunda vez que o oficial duvidava de uma resposta, rompeu-se o fio e fui punido.
Exatos oito chutes depois, a viatura tinha partido, eu estava atordoado e caído sobre os ladrilhos irregulares e manchados da calçada. As lágrimas que agora escorriam eram raiva e dor, mas não de incredulidade. Não era a minha primeira abordagem e não seria a última. Juntei minhas últimas forças e ergui-me. Levantei a cabeça sobre a penumbra e encarei a noite. Tudo ia melhorar, repetia. Não acreditava, mas repetia. A partir dali, cada passo era uma superação. 315 depois, estava na porta de casa. Entrei e dirigi-me ao meu quarto. Na porta ao lado, escutava o regougo da minha avó, era meu ritual escuta-la dormir antes de deitar. Naquele dia, escutá-la era ainda mais importante. Havia meses que não a abraçava. Quase nem nos víamos, mesmo morando na mesma casa. Era por mim, por ela e por todos aqueles que sofriam que eu resistia. A pandemia para mim era superação.
Em meus sonhos, ela veio me visitar. Com seu véu prateado, Diana me dizia que tudo iria ficar bem. Sob o luar, me metamorfoseava em um pássaro e a leveza de voar me fazia feliz. Não havia viaturas ou armas; não havia escuro ou trevas. Era tudo luminoso e cheio de esperança. Voava em direção à Lua, em direção ao inalcançável desejo de libertar-me de mim mesmo. Tudo ia ficar bem, ela dizia. Tudo ia ficar bem.