terça-feira, 16 de junho de 2020

Caminhando no escuro - Diário da Quarentena


Existem noites em que eu me perco no escuro. Normalmente acontece quando a sombra da Terra ofusca o brilho do luar. Ó, Diana, como fazes falta em minhas caminhadas noturnas, sempre desafiadoras no breu da periferia. Moro no morro, o ponto de ônibus é na avenida. Quase três quilômetros de subida separam meu corpo cansado do conforto da minha cama. Exausto, a subida é um martírio. Carrego o peso da rotina sobre os ombros e subo, muitas vezes sob o lapo da realidade. A Lua Nova apaga meu farol celeste e meus olhos se tornam mais atentos. Em tempos de pandemia, nossos olhos estão mais atentos do que nunca.

Mas, de fato, meus olhos sempre foram mais sensitivos que a média. Para mim, tratava-se de uma questão de sobrevivência. Naquele momento, era minha visão periférica que via as luzes à distância, se aproximando, piscando e reduzindo a velocidade. Mais perto e mais lento. Seguia-me, conforme eu escalava as calçadas irregulares. Não era a primeira vez que isso me acontecia. Talvez seja a sina do trabalhador, receber atenção especial da polícia quando por qualquer ato que seja. Ainda mais mascarado. Não há paz na minha pandemia. Não há quarentena para quem está na linha de frente.

Meu plantão no hospital ia até as três da manhã. Via, nos dias em que se passavam, o número de contaminados subindo. No início eram os hospitais particulares que se enchiam de doentes, ricos que contraíram a doença no exterior ou em alguma festinha badalada nos condomínios de luxo. Hoje são os lojistas, os faxineiros, os informais, aqueles que lutam todos os dias para sobreviver e, para isso, se expõem à morte. Esses eram os que lotavam minhas UTIs. Como enfermeiro responsável pelas operações de emergência, cada novo paciente era um aperto na alma. O fato é que todos estavam perdidos. Não há tratamentos e procedimentos precisos, não existe remédio ou cura milagrosa. Cada caso é um caso e a incerteza era a fonte da nossa ansiedade. Nossa saúde mental ia para o ralo e, a cada morte, um semblante de impotência encobria os corredores do hospital.

Aquela caminhada noturna era uma terapia. Meditava e desligava meus pensamentos da estressante rotina da madrugada. As vezes chorava sozinho, lágrimas gêmeas às das famílias que deixavam a UTI rumo ao crematório. Ao pingar no chão, cada lágima apenas juntava-se ao orvalho que umedecia a calçada. Tornava-se mais uma gota de água. Olhava, pois, para a Lua. O brilho nos meus olhos molhados ficava explícito sobre o raiar do luar e ele me fortalecia. Não há, Diana querida, dor que seu brilho não atenue; ferida do coração que ele não suture; lágrima que ele não evapore. Mas aquela noite, você não estava comigo.

O brilho sobre meu rosto, naquele momento, vinha da lanterna que o policial segurava. Mandou-me parar e desceu da viatura com a mão no coldre. Eram três, para ser preciso. Já sabia o que se passaria por aí. Sem máscaras, ordenaram que eu retirasse a minha. A contragosto, o fiz. A autoridade do rapaz fardado era sádica, descarregava pelas palavras o que não poderia descarregar com munição e a fisionomia de satisfação era plena. Empurrou-me contra a parede, me revistou, me insultou enquanto eu respondia com claro desgosto aos arrochos autoritários do trio. Tratava-se de um cabo de guerra com um barbante e eu sabia que é sempre do lado mais fraco que ele estoura. Quando respondi com ar de impaciência à décima segunda vez que o oficial duvidava de uma resposta, rompeu-se o fio e fui punido. 

Exatos oito chutes depois, a viatura tinha partido, eu estava atordoado e caído sobre os ladrilhos irregulares e manchados da calçada. As lágrimas que agora escorriam eram raiva e dor, mas não de incredulidade. Não era a minha primeira abordagem e não seria a última. Juntei minhas últimas forças e ergui-me. Levantei a cabeça sobre a penumbra e encarei a noite. Tudo ia melhorar, repetia. Não acreditava, mas repetia. A partir dali, cada passo era uma superação. 315 depois, estava na porta de casa. Entrei e dirigi-me ao meu quarto. Na porta ao lado, escutava o regougo da minha avó, era meu ritual escuta-la dormir antes de deitar. Naquele dia, escutá-la era ainda mais importante. Havia meses que não a abraçava. Quase nem nos víamos, mesmo morando na mesma casa. Era por mim, por ela e por todos aqueles que sofriam que eu resistia. A pandemia para mim era superação.

Em meus sonhos, ela veio me visitar. Com seu véu prateado, Diana me dizia que tudo iria ficar bem. Sob o luar, me metamorfoseava em um pássaro e a leveza de voar me fazia feliz. Não havia viaturas ou armas; não havia escuro ou trevas. Era tudo luminoso e cheio de esperança. Voava em direção à Lua, em direção ao inalcançável desejo de libertar-me de mim mesmo. Tudo ia ficar bem, ela dizia. Tudo ia ficar bem.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Em declínio - Diário da Quarentena


Quando costumava ler as epopeias gregas, acreditava que a jornada do herói tinha seu ápice em grandes desafios, como Hidras de múltiplas cabeças ou labirintos indecifráveis. Acreditava que devíamos ser plenos na coragem, encarando os desafios como guerreiros, sem nos esconder ou fugir do confronto. Jamais imaginaria, no entanto, que as sagas desse início de década se resumiriam a idas à padaria, ao supermercado, à farmácia. O elmo dos guerreiros helênicos seria substituído por uma máscara de pano. A fúria divina dos velhos contos seria agora representada por uma ameaça invisível. A tragédia moderna tem pouca relação com os teatros clássicos de outrora, mas o sentimento de fobia que ela nos trás é certamente mais real. Está acontecendo agora, a ameaça existe e é tangível. Ah, se eu possuísse as asas de Ícaro para que pudesse voar para longe dessa pseudo-realidade pandêmica. Foi ao abrir minha geladeira pela manhã que o pavor se instaurou, como Hércules ao abrir as portas do mundo inferior, em seu último trabalho. Não era Hades nem Cérbero que lá se encontrava, mas o vazio. O vazio nas prateleiras significava que seria necessário sair, enfrentar o mundo externo, abandonar as trincheiras.

Buscar as maçãs douradas de Hera poderia ser uma tarefa mais simples do que abastecer os mantimentos que me faltavam. Cada dia que passava rumávamos ao fim da pandemia, mas um fim doloroso. Como um Tratado de Versalhes à brasileira, as dúbias lideranças fingiam que o problema estava se resolvendo, flexibilizando o isolamento imposto, enquanto o povo se esforçava para crer na narrativa, tentando retornar a uma vida social normal. Enquanto isso o vírus, aquele ser indiferente à política humana, se beneficiava, sem a necessidade de qualquer tipo de articulação ou concessão. Sabemos onde um acordo de paz mal feito nos conduziu no passado. 

De qualquer forma, tive que sair. Equipei-me e escolhi o horário mais conveniente. Eram alguns quilômetros de caminhada que decidi encarar a pé, não arriscaria um táxi. Era um clima de fobia social já instaurado em mim que vinha à tona nas decisões mais simples. Queria evitar o contato, ser eficiente e prático nas minhas ações, uma tarefa por vez. Mas o trajeto foi doloroso. Foram dois quilômetros de inquietação e inconformidade. O comércio voltando precocemente às atividade estava lotado, apinhado de potenciais vítimas de uma nefasta necropolítica que faria Euristeu parecer um pai atencioso. Era o declínio da quarentena. Não um declínio no número de casos ou de taxas de mortalidade, mas um declínio moral, um egoísmo social, uma ignorância confusa com pitadas de sadismo.

O que diria Adorno se visse a cena que presenciei, não sei dizer, mas em algum grau se sentiria decepcionado. Aquele poderia ser o resultado de uma educação que deixou de questionar as bases da barbárie, uma falha estrutural da auto-reflexão crítica. Não era puramente ignorância inocente, mas uma negligência deliberada. A civilidade, segundo o que Freud evidenciou, é a causa principal das incivilidades. O mal-estar da cultura tangencia uma civilidade que não conhece e não respeita seus espaços sociais, objetificando os outros e menosprezando o seu papel como agente crítico no espaço público. Essa é uma das bases estruturantes de genocídios globais, como o holocausto e seus perversos campos de concentração. Adorno e seus pares, que lutaram para ver uma educação que questionasse e nos distanciasse da barbárie, se remexeriam no túmulo ao ver o que meus olhos não poderiam mais desver. Era triste e apavorante.

Chocado demais para absorver mais detalhes daquela cena, mantive minha rota e me abasteci dos suprimentos necessários para mais algumas semanas de isolamento. No caminho de volta, decidi evitar passar novamente pelo comércio. Algo tinha mexido comigo, como se meu lado freiriano tivesse se esvaído completamente. Não via salvação para aqueles que negavam enxergar a trave em seus olhos. Mas sentia pena, também. Talvez o principal motivo para desviar minha rota de regresso tenha sido evitar as lágrimas que provavelmente viriam. Retornei pela avenida, mais movimentada de carros, porém com menos agitação de pedestres. Entrei em casa, encostei minhas compras e desabei.

Ao final da missão, os heróis clássicos costumavam receber honra e liberdade. As vezes tesouros divinos ou a possibilidade de permanecerem vivos, além do clássico coração da princesa. O final da jornada costumava ser a glória. No meu caso, o que encontrei foi a desolação. O meu declínio de compostura soterrou-me sob o peso da quarentena, do isolamento, do distanciamento. Sozinho naquele cômodo, algumas horas se passaram até que me erguesse e voltasse ao mundo real. Com o filósofo alemão na cabeça, muni-me da frieza como a principal arma e abri mão de parte da minha sensibilidade e solidariedade. Era triste, mas necessário. 

Contei cada grama dos mantimentos que comprei naquela tarde. Olhando o calendário, calculei quando seria preciso sair de novo. Até lá, esperava um mundo melhor, uma esperança de Ulisses retornando de Troia. Que superpoderes me fossem dados para que eu pudesse realizar a próxima missão. Nem que o poder seja, simplesmente, o de não me importar.

Ou, talvez, o poder de não sentir medo.