
Não à toa aquele era chamado Pavilhão de Aurora. Os vitrais prismáticos ao leste refletiam o raiar do amanhecer, de forma que o seu interior enchia-se de uma paisagem caleidoscópica de cores e imagens abstratas. Nada como direcionar de forma correta os raios solares para se ter um dos mais belos shows de luzes, causando inveja a qualquer diretor da West End. O espectro de cores invadia o palco do pavilhão, onde a pianista dedilhava. Era um espetáculo passageiro, menos de uma hora durante a alvorada. Sabendo disso, era nessa hora que ela entoava suas bachianas. De fato, ela apenas repetia inúmeras vezes a introdução do segundo concerto de Brandenburgo. Segundo a tradição austríaca, quando Bach a compôs, as estrelas se puseram a dançar no céu a valsa do quarto dia. As notas ressoavam nas paredes, as luzes e a música entrelaçavam-se como amantes platônicos, apaixonados e distantes, completando-se e jamais se tocando. No palco, a pianista solitária acertava cada nota, cada tom, cada tempo. Transbordava-se de êxtase em cada arpejo, e subia de tom como na escadaria de Jacó. Estava solitária no palco. Estava solitária em todo o teatro.
Naquela hora deveria ocorrer o concerto da alvorada. No final do ano, tocavam-se bachianas intercaladas com mestres russos, compondo a temática natalina da casa. As manhãs eram cheias de energia: o canto dos instrumentos, o espetáculo celeste e o calor do público compunham a tríplice. A pianista não se apresentava nesse horário, era exclusivo para a orquestra dos grandes mestres. Ela ainda não fazia parte desse seleto grupo e talvez nunca fizesse. Seu coração vivia nas teclas do piano como protagonista de sua existência e assim queria que ele fosse ouvido, sozinho, para encanto de um público entorpecido pelo soar do encordoamento sobre a tábua harmônica. Admirava os grandes solistas, os mestres do dedilhado e discípulos de Beethoven, aquele que ouvia com o tato. Poucas foram suas apresentações como vedete, em geral a um público diminuto e em horários pouco nobres. Minha nossa, mas como era diferente tocar sob o nascer do sol! Era ele, o astro de Hélio, o único que poderia roubar-lhe o protagonismo. Era como banhar de cristal uma escultura de um escultor barroco, preservando-a dos olhares alheios que a corroem. Tocava, então, para a plateia vazia.
Entrava no teatro ainda durante a madrugada, conhecia o macete para destravar a porta dos fundos sem precisar da chave. Tocava para ninguém, sempre as mesmas notas, todas as manhãs desde aquele outro dia. Tocava, na verdade, para o dia que raiava. Era a forma que tinha de unir-se ao sol e buscar forças no calor que ele emanava. Naquele outro dia, tudo lhe faltava: energia para sair da cama, motivação para dar passos, esperança de que o poço tivesse um fundo. Agora tocava, portanto, para o grande astro, que lhe enviava a mais bela luz para compor o espetáculo da manhã, cuja bachiana sonorizava a amálgama perfeita dos sentidos. Aquele outro foi seu dia da Normandia, o seu ataque final ao inimigo interno. Suas mãos tremeram quando levantaram o tampo daquele piano sobre o palco pela primeira vez. Havia meses que não tocava nenhuma nota, e as primeiras soaram como agulhas sobre uma ferida aberta, sem anestesia, sentindo suturar de forma pouco usual a úlcera em seu peito. Dentre todos os motivos, porém, em todas as manhãs ela tocava para ele. Sim, era para ele que tocava.
Quando ele a levou à primeira aula de piano, mal conhecia o instrumento. A menina estava apaixonada por aquelas teclas bicromáticas desde que o vira pela primeira vez em uma loja da cidade. Insistiu, e ele a apoiou. Ao longo da trajetória, ela pensou em desistir inúmeras vezes. Não tinha destreza nos arpejos e faltava-lhe dedos para tirar Schubert do papel. Ele a ensinou a fechar os olhos para os outros e atiçar os ouvidos aos sons das cordas do instrumento. Era o dedo que faltava à ela. A jovem pianista não pode se despedir daquele que esteve ao seu lado na fila das audições e na primeira fila de seu solo de estreia. A última fila que estiveram juntos foi a da UTI, após dias de espera por uma vaga. O mundo estava em colapso, o sofrimento daquele que amava dilacerava seu brio, sentia-se indefesa, impotente. O poder que sentia ao dobrar o piano às suas vontades era uma ilusão que não se traspunha à vida real. Ele sofria, faltava-lhe ar. Antes de assumir seu leito, disse à filha que guardasse suas lágrimas. Elas poderiam lhe ser úteis no futuro.
Naquele outro dia, quando viu o sol atravessar os vitrais sobre a plateia vazia pela primeira vez, já se fazia um mês que seu pai partira. Fora levado por aquele que paralisava o mundo. Para a pianista, no entanto, era a tristeza que a paralisava. Uma tristeza sem lágrimas. Apenas o mais profundo pesar e escuridão de pensamentos. Naquele outro dia, não saíra de casa com o intuito de renascer, mas de abandonar sua existência. Tiraria sua vida sobre o palco, como a apoteose do seu drama, o príncipe da Dinamarca escolhendo não ser. Naquela madrugada, com os comprimidos no bolso, abriu a porta dos fundos e adentrou o pavilhão como Anna Karenina, presa em seus próprios sentimentos de pesar. Seu posfácio precisaria ser musicado conforme os mestres a ensinaram. A arte, que é a libertação, pode ser o sofrimento e a desilusão de uma alma despedaçada. As primeiras notas saíram em um tom estranho, fora da bela forma que o alemão a compusera. Tecla após tecla, som após som, dor, dor, dor, dor.
Hoje completam-se alguns meses daquele outro dia. Quando as luzes invadiram o palco, as notas, finalmente, entraram em harmonia. Foi aí que vieram as lágrimas. Represadas, vieram como seu pai havia previsto em seu último olhar, seu último sorriso. Vieram e lavaram. A sua tríade se completava: luzes, sons e lágrimas. Tocava a introdução, repetia e chorava, repetia e chorava. Quando a alvorada enfim se foi, levantou-se e saiu do palco. Voltaria no dia seguinte, e no próximo, e no posterior, até o dia de hoje e além. As lágrimas a tempo já secaram, o seu espetáculo da manhã era, agora, sua dose diária de morfina. Finalmente, hoje, tocava para si mesma e, sob a benção de Aurora, Hélio e Bach, atravessava o mundo dissonante, onde a dor, o medo e a esperança formavam a tríade da realidade. Ao final do amanhecer, fecha o piano e agradece ao público oco. Eles se veriam no dia seguinte.