segunda-feira, 15 de maio de 2017

A vida, uma ordem a ser decifrada

 
O caminho do trabalho até em casa era sempre o mesmo. Tomava um ônibus perto da escola onde lecionava, atravessando a cidade em meio ao trânsito metropolitano e descendo em um ponto a duzentos metros de onde morava, no Flamengo. O cansaço físico e mental da professora de literatura fazia Renata isolar-se na tela de seu celular durante todo esse percurso. O aparelho proporcionava-lhe as experiências mais satisfatórias do seu dia, um estado de controle absoluto que não conseguia em sala de aula, mesmo seus esforços exaurindo toda sua energia. Em suas redes sociais, Renata escolhia o que curtir, o que ler, quem acompanhar. Não precisava engolir desaforo, não precisava aturar bagunça; tudo estava organizado à sua maneira.

"Gostaria do poder de ordenar o trânsito, isso sim." De fato, o trajeto estava mais conturbado naquele dia. Buzinas de carros, motos, caminhões; táxis atravessando por entre os carros, em alta velocidade; xingamentos soltos ao vento, direcionados a todos e a ninguém. A professora, no entanto, não conseguia deixar de notar a estranha tranquilidade nas pessoas ao seu redor, todos dentro das campânulas de seus smartphones, ignorando propositalmente o mundo em que viviam. "Existe ordem no caos, com certeza." A frase, com trinta e três caracteres, o número divino de Pitágoras, agradava a Renata do Twitter, que tratou de colocá-la publicamente aos seus seguidores. Quando estudante de Letras, era entusiasta da Bíblia e o tempo apenas reforçou sua paixão literária pela obra. No momento pensava no Gênesis, no qual o nome de Deus foi curiosamente repetido trinta e três vezes. A conexão inesperada fervilhou sua mente. Pela janela do ônibus, a professora entendeu o motivo da confusão no trânsito, um acidente de moto obstruía uma das pistas. Ninguém, no entanto, parecia se importar com nada além do fato de que estariam perdendo tempo parados em seus veículos. A falta de compaixão e individualidade irritava a Renata do Facebook, que escreveu rapidamente um post de indignação, culpando os políticos, a polícia, os paramédicos e qualquer outro que estivesse no lugar e pudesse ser responsabilizado pelo transtorno. Ela, assim como os demais, apenas olhou de relance pela janela, e voltou ao celular.

Ao seu redor, todos pareciam em outras realidades. À direita, um senhor de meia idade trocava mensagens com futuras parceiras no Tinder; à esquerda, um rapaz capturava criaturas que se materializavam no chão do coletivo, visíveis apenas através da lente mágica do smartphone. Como se não bastasse a volatilidade do mundo real, os homens ainda criam seus próprios universos, da forma com que quisessem, para satisfazer seus desejos. Menos metafísicos, mais reais, mundos e mais mundos são projetados sobre o plano terreno, onde todos interagem, todos compartilham, mas só existem por que as pessoas de carne e osso acreditam em suas existências. Parada agora na Rua Frei Caneca, Renata do Instagram percebeu a oportunidade de um clique perfeito. Através da janela do ônibus destacava-se a arquitetura neomoderna ao fim da passarela do samba, o símbolo máximo da festa pagã mais famosa do país. "Irônico". A praça da Apoteose carregava um significado que a professora de linguística conhecia muito bem, ascensão. Tornar-se Deus. Na cabeça de Renata ficou claro que Deus fez o homem realmente à sua semelhança.

A internet e a sua suposta blindagem da realidade poderia ser considerada mística, principalmente a alguns anos. Renata era muitas dentro de sua bolha. Em cada website ela assumia um perfil distinto, seja ele fútil, politizado, indignado, confiante ou feliz. Era só uma questão do que publicar, do que curtir, do que compartilhar. Renata era dona da sua personalidade virtual, criava-se da forma que quisesse, de acordo com seu humor. No entanto, não era capaz de distinguir com clareza o que era real e o que era inventado. Os universos se misturavam, as realidades se confundiam. O homem criou seu próprio universo dentro do vazio da sua vida terrena. Aquilo fez Renata congelar por alguns minutos, pensativa e profundamente triste. Sua ordem havia quebrado e mergulhava novamente na correnteza da realidade.

Finalmente, ao chegar na margem do rio, levantou os olhos vermelhos e desceu do ônibus. Alguns minutos depois, estaria em casa. Como todas as noites, seu celular entrava na reserva de bateria. Suas energias estavam se esgotando. Tomou um banho, olhou-se no espelho do banheiro. A visão não a agradava. Deitou-se e enxergou-se na tela do celular, sentindo-se consolada com a imagem que agora via. Compartilhou uma frase bíblica em seu Snapchat e sorriu ao ver que tinha novos seguidores. 

Com as cortinas fechadas naquela noite clara, bloqueou a tela, pondo fim ao seu resto de luz e deixando a escuridão da noite guiá-la rumo à luz da manhã. Sob a lua, adormeceu pensando em si mesma, decidindo-se como renasceria no dia seguinte.

------

Alguém, em um lugar distante abria seu Snapchat e passava pelo perfil não muito interessante de uma professora de português, sem entusiasmo algum. Curtiu uma frase compartilhada por ela, não muito original. Apagou a tela do celular, sem ao menos refletir sobre o que tinha acabado de ler. Com trinta a três caracteres, a dor de Renata era obscura, invisível e perdida no caos: Seja feita a vossa vontade. Amém!

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Uma sociedade de vitrine


Escrevo estas palavras do meu smartphone. Transcrevo meus pensamentos em palavras, como meu avô fazia em um guardanapo, no bar em que outrora frequentava. As deles morriam amassadas e jogadas no cesto de lixo, junto com algumas garrafas vazias de cerveja. As minhas transformam-se em bits, viajam a velocidade da luz, da palma da minha mão até algum lugar no globo, onde ficam armazenadas do servidor de alguma empresa especializada. Nem mesmo eu sei onde minhas frases foram repousar. Com alguns cliques, porém, posso recuperá-las novamente, bastando o acesso a essa gigantesca rede e sabendo quais palavras chaves digitar no topo do navegador. Navegamos de uma forma que os patronos da marinha nunca imaginaram antes ser possível: não apenas nas ondas eletromagnéticas dos sinais das telecomunicações, navegamos na liquidez da sociedade que nos cerca.

Flexibilidade é o termo que ocupa a cabeça dos grandes empresários e profissionais liberais mundo a fora. A grande tendência é ser capaz de adaptar os produtos e serviços oferecidos ao cada vez mais mutável mercado consumidor. O capitalismo que estamos submersos afasta-se dia após dia do megalomaníaco modelo fordista, tornando-se leve, enxuto, capaz de cruzar fronteiras como nunca antes visto, cada vez menos dependente dos espaços físicos e mais propício a aventurar-se em locais diferentes, sem medo de desaparecer subitamente. O capital abstraiu-se, desalocando suas forças do maquinário e mão de obra pesada, nas plantas industriais, para ações na bolsa e projetos de engenharia, dentro de escritórios em arranha-céus. Pela primeira vez na história da modernidade a relação de dependência mútua empresa-trabalhador parece estar caminhando ao seu epitáfio. Em seu lugar assume a grande nova dependência capital-consumo.

Por mais que Ford admitisse o contrário, sua estratégia de elevar os salários de seus operários era muito mais uma estratégia de manutenção da mão de obra altamente rotativa em suas fábricas do que torná-los consumidores de seus veículos. Passados cem anos, a lógica desdobrou-se ao avesso, com um intenso incentivo ao consumo que move a roda d'agua da economia mundial. O impacto dessa reviravolta é uma mudança completa de paradigma nas vidas humanas: passamos a ver o mundo com os olhos de consumidores, cada vez menos responsáveis pelas coisas que nos cercam.

O cerne da chamada liquefação da modernidade é a metamorfose de um mundo de produtores para uma sociedade de clientes e compradores. As relações entre as pessoas tornam-se cada vez mais descartáveis e frágeis; a relação com o público torna-se dia após dia mais distante, como se fôssemos apenas meros usuários desses serviços, não responsáveis pelo bem-estar coletivo; os interesses particulares ganham cada vez mais força, o individualismo cresce (o consumismo é uma satisfação solitária); a política torna-se um seriado de televisão, assistimos cada vez mais como espectadores, menos como cidadãos.

Enquanto digito esses caracteres, isolo-me na tela do meu celular, mas nunca estive tão conectado. Como o guardanapo do meu avô, o que escrevo pode se perder no limbo de informações da web e nunca ter um leitor. Mas a ilusão da conexão me incita a continuar digitando. A cada dia nos sentimos mais pertencentes ao virtual, mas menos existentes no plano físico. Passeamos pela vida como em um shopping center, julgando os momentos como vitrines, os acontecimentos como produtos e as pessoas como manequins, buscando aqueles que atendam unicamente as nossas necessidades individuais. Por esses corredores andamos solitários.

Cada vez mais solitários.