O caminho do trabalho até em casa era sempre o mesmo. Tomava um ônibus perto da escola onde lecionava, atravessando a cidade em meio ao trânsito metropolitano e descendo em um ponto a duzentos metros de onde morava, no Flamengo. O cansaço físico e mental da professora de literatura fazia Renata isolar-se na tela de seu celular durante todo esse percurso. O aparelho proporcionava-lhe as experiências mais satisfatórias do seu dia, um estado de controle absoluto que não conseguia em sala de aula, mesmo seus esforços exaurindo toda sua energia. Em suas redes sociais, Renata escolhia o que curtir, o que ler, quem acompanhar. Não precisava engolir desaforo, não precisava aturar bagunça; tudo estava organizado à sua maneira.
"Gostaria do poder de ordenar o trânsito, isso sim." De fato, o trajeto estava mais conturbado naquele dia. Buzinas de carros, motos, caminhões; táxis atravessando por entre os carros, em alta velocidade; xingamentos soltos ao vento, direcionados a todos e a ninguém. A professora, no entanto, não conseguia deixar de notar a estranha tranquilidade nas pessoas ao seu redor, todos dentro das campânulas de seus smartphones, ignorando propositalmente o mundo em que viviam. "Existe ordem no caos, com certeza." A frase, com trinta e três caracteres, o número divino de Pitágoras, agradava a Renata do Twitter, que tratou de colocá-la publicamente aos seus seguidores. Quando estudante de Letras, era entusiasta da Bíblia e o tempo apenas reforçou sua paixão literária pela obra. No momento pensava no Gênesis, no qual o nome de Deus foi curiosamente repetido trinta e três vezes. A conexão inesperada fervilhou sua mente. Pela janela do ônibus, a professora entendeu o motivo da confusão no trânsito, um acidente de moto obstruía uma das pistas. Ninguém, no entanto, parecia se importar com nada além do fato de que estariam perdendo tempo parados em seus veículos. A falta de compaixão e individualidade irritava a Renata do Facebook, que escreveu rapidamente um post de indignação, culpando os políticos, a polícia, os paramédicos e qualquer outro que estivesse no lugar e pudesse ser responsabilizado pelo transtorno. Ela, assim como os demais, apenas olhou de relance pela janela, e voltou ao celular.
Ao seu redor, todos pareciam em outras realidades. À direita, um senhor de meia idade trocava mensagens com futuras parceiras no Tinder; à esquerda, um rapaz capturava criaturas que se materializavam no chão do coletivo, visíveis apenas através da lente mágica do smartphone. Como se não bastasse a volatilidade do mundo real, os homens ainda criam seus próprios universos, da forma com que quisessem, para satisfazer seus desejos. Menos metafísicos, mais reais, mundos e mais mundos são projetados sobre o plano terreno, onde todos interagem, todos compartilham, mas só existem por que as pessoas de carne e osso acreditam em suas existências. Parada agora na Rua Frei Caneca, Renata do Instagram percebeu a oportunidade de um clique perfeito. Através da janela do ônibus destacava-se a arquitetura neomoderna ao fim da passarela do samba, o símbolo máximo da festa pagã mais famosa do país. "Irônico". A praça da Apoteose carregava um significado que a professora de linguística conhecia muito bem, ascensão. Tornar-se Deus. Na cabeça de Renata ficou claro que Deus fez o homem realmente à sua semelhança.
A internet e a sua suposta blindagem da realidade poderia ser considerada mística, principalmente a alguns anos. Renata era muitas dentro de sua bolha. Em cada website ela assumia um perfil distinto, seja ele fútil, politizado, indignado, confiante ou feliz. Era só uma questão do que publicar, do que curtir, do que compartilhar. Renata era dona da sua personalidade virtual, criava-se da forma que quisesse, de acordo com seu humor. No entanto, não era capaz de distinguir com clareza o que era real e o que era inventado. Os universos se misturavam, as realidades se confundiam. O homem criou seu próprio universo dentro do vazio da sua vida terrena. Aquilo fez Renata congelar por alguns minutos, pensativa e profundamente triste. Sua ordem havia quebrado e mergulhava novamente na correnteza da realidade.
Finalmente, ao chegar na margem do rio, levantou os olhos vermelhos e desceu do ônibus. Alguns minutos depois, estaria em casa. Como todas as noites, seu celular entrava na reserva de bateria. Suas energias estavam se esgotando. Tomou um banho, olhou-se no espelho do banheiro. A visão não a agradava. Deitou-se e enxergou-se na tela do celular, sentindo-se consolada com a imagem que agora via. Compartilhou uma frase bíblica em seu Snapchat e sorriu ao ver que tinha novos seguidores.
"Gostaria do poder de ordenar o trânsito, isso sim." De fato, o trajeto estava mais conturbado naquele dia. Buzinas de carros, motos, caminhões; táxis atravessando por entre os carros, em alta velocidade; xingamentos soltos ao vento, direcionados a todos e a ninguém. A professora, no entanto, não conseguia deixar de notar a estranha tranquilidade nas pessoas ao seu redor, todos dentro das campânulas de seus smartphones, ignorando propositalmente o mundo em que viviam. "Existe ordem no caos, com certeza." A frase, com trinta e três caracteres, o número divino de Pitágoras, agradava a Renata do Twitter, que tratou de colocá-la publicamente aos seus seguidores. Quando estudante de Letras, era entusiasta da Bíblia e o tempo apenas reforçou sua paixão literária pela obra. No momento pensava no Gênesis, no qual o nome de Deus foi curiosamente repetido trinta e três vezes. A conexão inesperada fervilhou sua mente. Pela janela do ônibus, a professora entendeu o motivo da confusão no trânsito, um acidente de moto obstruía uma das pistas. Ninguém, no entanto, parecia se importar com nada além do fato de que estariam perdendo tempo parados em seus veículos. A falta de compaixão e individualidade irritava a Renata do Facebook, que escreveu rapidamente um post de indignação, culpando os políticos, a polícia, os paramédicos e qualquer outro que estivesse no lugar e pudesse ser responsabilizado pelo transtorno. Ela, assim como os demais, apenas olhou de relance pela janela, e voltou ao celular.
Ao seu redor, todos pareciam em outras realidades. À direita, um senhor de meia idade trocava mensagens com futuras parceiras no Tinder; à esquerda, um rapaz capturava criaturas que se materializavam no chão do coletivo, visíveis apenas através da lente mágica do smartphone. Como se não bastasse a volatilidade do mundo real, os homens ainda criam seus próprios universos, da forma com que quisessem, para satisfazer seus desejos. Menos metafísicos, mais reais, mundos e mais mundos são projetados sobre o plano terreno, onde todos interagem, todos compartilham, mas só existem por que as pessoas de carne e osso acreditam em suas existências. Parada agora na Rua Frei Caneca, Renata do Instagram percebeu a oportunidade de um clique perfeito. Através da janela do ônibus destacava-se a arquitetura neomoderna ao fim da passarela do samba, o símbolo máximo da festa pagã mais famosa do país. "Irônico". A praça da Apoteose carregava um significado que a professora de linguística conhecia muito bem, ascensão. Tornar-se Deus. Na cabeça de Renata ficou claro que Deus fez o homem realmente à sua semelhança.
A internet e a sua suposta blindagem da realidade poderia ser considerada mística, principalmente a alguns anos. Renata era muitas dentro de sua bolha. Em cada website ela assumia um perfil distinto, seja ele fútil, politizado, indignado, confiante ou feliz. Era só uma questão do que publicar, do que curtir, do que compartilhar. Renata era dona da sua personalidade virtual, criava-se da forma que quisesse, de acordo com seu humor. No entanto, não era capaz de distinguir com clareza o que era real e o que era inventado. Os universos se misturavam, as realidades se confundiam. O homem criou seu próprio universo dentro do vazio da sua vida terrena. Aquilo fez Renata congelar por alguns minutos, pensativa e profundamente triste. Sua ordem havia quebrado e mergulhava novamente na correnteza da realidade.
Finalmente, ao chegar na margem do rio, levantou os olhos vermelhos e desceu do ônibus. Alguns minutos depois, estaria em casa. Como todas as noites, seu celular entrava na reserva de bateria. Suas energias estavam se esgotando. Tomou um banho, olhou-se no espelho do banheiro. A visão não a agradava. Deitou-se e enxergou-se na tela do celular, sentindo-se consolada com a imagem que agora via. Compartilhou uma frase bíblica em seu Snapchat e sorriu ao ver que tinha novos seguidores.
Com as cortinas fechadas naquela noite clara, bloqueou a tela, pondo fim ao seu resto de luz e deixando a escuridão da noite guiá-la rumo à luz da manhã. Sob a lua, adormeceu pensando em si mesma, decidindo-se como renasceria no dia seguinte.
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Alguém, em um lugar distante abria seu Snapchat e passava pelo perfil não muito interessante de uma professora de português, sem entusiasmo algum. Curtiu uma frase compartilhada por ela, não muito original. Apagou a tela do celular, sem ao menos refletir sobre o que tinha acabado de ler. Com trinta a três caracteres, a dor de Renata era obscura, invisível e perdida no caos: Seja feita a vossa vontade. Amém!