segunda-feira, 24 de julho de 2017

Fendas na normalidade


Em sua recém-lançada trilogia para o público jovem, Ransom Riggs introduz ao mundo o seu universo fantástico. Baseado em sua coleção de fotos antigas, o autor relata as aventuras vividas por um grupo de crianças peculiares, cada uma apresentando alguma característica que as diferem dos seres humanos, digamos, convencionais. Os personagens são únicos e caricatos: um menino invisível convive diariamente com uma garota de força sobre-humana e um rapaz que é constantemente assolado por sonhos agoureiros, além de diversas outras personalidades presentes ao longo da trilogia. A trama principal circunda exatamente as peculiaridades de cada um e a dificuldade da inserção e aceitação das crianças em sociedade. O universo peculiar, no entanto, apresenta locais seguros, as fendas temporais, onde as personagens encontram refúgio e que, ao decorrer da história, vão desaparecendo e deixando-os desamparados perante o mundo real. A grande questão levantada pelo autor não poderia ser mais clara: como uma minoria pode ser aceita em sociedade fora do seu "gueto social"?

O preconceito é um dos grandes males da modernidade. Presente em todas as fases da existência da raça humana, o pré-julgamento alheio ganhou escala global e grande poder de disseminação com o advento da internet, em especial com a força da pós-verdade em um ambiente em que todos têm voz. A internet e as redes sociais uniram o preconceito ao anonimato, dando poder ao ódio aos diferentes, que antes ficava restrito àqueles que teriam coragem de se expor e, eventualmente, serem publicamente reprimidos. As crianças peculiares viviam isoladas, não por conta de se comportarem de forma diferente das crianças comuns, mas por alguns traços (por exemplo, característica física) que causava medo às pessoas não peculiares com as quais entravam em contato. O medo, uma das grandes bases do ódio, origina o preconceito. O medo é passional e irracional e não pode ser vencido sem uma grande dose de esforço cognitivo.

Como bem destacou Daniel Kahneman em seu grande livro Rápido e Devagar - duas formas de pensar, tomamos a maior parte de nossas decisões de forma automática, sem utilizar a nossa consciência, que entra somente em uma análise posterior das situações, se necessário. Essa condição nos diz muito sobre o processo de construção do preconceito, que ocorre com base nos sentimentos e, como já destacado, no medo que o diferente pode causar aos ignorantes. A tríplice do preconceito é clara: medo gera ódio, que é fortalecido pela ignorância. O preconceito de qualquer espécie, seja racismo, homofobia, antissemitismo é uma expressão de ódio poderosa, pois une as pessoas ao redor de um "inimigo" comum, disseminando a desinformação, fortalecendo a pós-verdade e eliminando o senso crítico, a única forma de quebrar o ciclo vicioso.

As doces crianças peculiares sofrem na pele a rejeição da sociedade, principalmente antes de serem resgatadas para as fendas temporais, com inúmeros casos de violência e torturas, físicas e psicológicas. É fácil fazer paralelo com a realidade. Homossexuais podem ser gays, desde que não sejam efeminados ou demonstrem afeto público, pois não tem o direito de serem livres, já que eu me reprimi durante toda a vida; negros podem trabalhar e serem meus amigos, mas ator negro, advogado negro e médico negros são incompetentes e foram colocados lá por cotas, já que esses papéis de destaque na sociedade só podem ser dos brancos por mérito; os peculiares podem existir, desde que trancados dentro de casa, pois tenho medo que meu estilo de vida que eu pertenço e domino seja ameaçado de alguma forma.

Se a falta de conhecimento é uma das bases do preconceito, apenas a informação pode romper essas barreiras de convivência e mostrar que, no fundo, todos temos nossas peculiaridades e que, como Ransom Riggs bem destaca, a única coisa que impede que vivamos pacificamente em sociedade é o desconhecimento. Cada vez mais as fendas temporais se dissolvem e os peculiares ganham seu espaço. Cada vez mais o preconceito deve perder o seu.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Poética


Ser poeta é um dom, eu diria. Escrever poemas não é uma tarefa fácil. Digamos que os poetas conseguem algo que muitos têm bastante dificuldade, colocar no papel seus sentimentos, de uma forma que não só agrade aos leitores, mas a ele próprio. O que seria do mundo se todos nós fôssemos poetas? Se todos tivessem a facilidade de expressar nossos sentimentos e liberar nossas angústias de maneira que não precisássemos guardá-las em nossos corações e deixando-as nos consumir de dentro pra fora, até afetar todos ao nosso redor? Bom, todos nós temos um lado poeta, com certeza. Fazemos poesia o tempo todo, seja com palavras amorosas para quem temos afeto ou apenas com pensamentos estranhos que vão e vêm. Sem nos darmos conta, nossa mente virou um livro de poesias, tão bonitas e profundas como as obras mais geniais de Drummond, mas tão inalcançáveis como os grandes sonhos de Vinícius de Moraes. Sentimentos são tão indescritíveis que, às vezes, quando paramos para refletir sobre eles, não chegamos a nenhuma conclusão. Sentimentos devem ser sentidos, não pensados. Por isso que admiro os poetas, não só por conseguirem fazer com que palavras (simplesmente palavras) ilustrem, mesmo que vagamente, seus sentimentos mais profundos e indelicados, mas também por tornar esse pequeno universo que ronda suas mentes, um motivo para que nós tentemos (e muitas vezes, consigamos) entender o nosso.

         --- TEXTO PUBLICADO EM MARÇO DE 2014

terça-feira, 4 de julho de 2017

A pós-moderna arte da guerra


Há cerca de sessenta mil anos, coabitavam o planeta duas populosas espécies humanas. Os europeus Neandertais disputavam recursos e território com os Sapiens, cuja expansão territorial já era expressiva e que não tardaria a conquistar os quatro cantos do planeta. Muitas são as teorias sobre o que teria causado a extinção dos Neandertais, desde uma erupção vulcânica que assolou o velho continente no período superior do pleistoceno até a falta de capacidade de adaptação às mudanças no ambiente em que habitavam, principalmente na península ibérica. Porém um aspecto interessante dos últimos séculos dessa raça humana foi a difícil convivência com seus irmãos Sapiens. Violentos, agressivos e inteligentes, nossa raça oprimiu e intimidou de forma unipolar os Neandertais, a ponto de sermos apontados como peça chave da extinção, não apenas destes, mas de inúmeras outras espécies com as quais convivemos ao longo da jornada rumo ao monopólio. Os Sapiens eram implacáveis nas batalhas, impiedosos nas vitórias e dominadores de recursos e territórios.

Parece estranho pensar nos homens pré-sedentários como similares a nós. Aprendemos a cultivar o solo, procriar animais, modelar o espaço em que vivemos. Levantamos cidades, fábricas; criamos códigos de conduta e mitologias diversas. Somos um povo diferente, exceto por um detalhe extremamente importante: dentro de nós, de cada núcleo de cada célula dos nossos tecidos dos nossos órgãos, somos praticamente idênticos aos velhos coletores e caçadores de outrora. Nosso DNA, a fórmula mágica do sucesso da nossa espécie, mantêm-se praticamente intocável ao longo dos milhares de anos que nos separam dos nossos antepassados paleolíticos. Em essência continuamos os mesmos. Os mesmos implacáveis, impiedosos e dominadores que fomos com os Neandertais. Mas agora nossas batalhas são outras.

Por volta de 500aC, nos meados da China feudal, Sun Tzu relatava suas estratégias de batalha em um best-seller mundial, A Arte da Guerra. Os escritos do general deveriam ser lidos de forma literal, como um guia de como se posicionar em combate, como contra-atacar e planejar seus cercos durante um período de guerras. O fato do manual chinês continuar sendo transcrito, traduzido e recomendado reforça ainda mais uma das ideias mais lugar-comum nos dias atuais: a vida moderna é uma eterna batalha. Os inimigos, nesse caso, são as demais peças do sistema que dita a nova modernidade (ou pós-modernidade, se couber a definição), os outros. Os outros são os colegas de trabalho, as grandes empresas de marketing, o gerente da seu escritório, os bancos, os governos, os vizinhos, os familiares. Todos os que podem interferir em seus planos de vida, te puxar para baixo, te dizer que não. Em outras palavras, a batalha da modernidade é do meu eu contra quem não me dá apoio.

O individualismo e o senso de independência social plantado, regado e resguardado pelo status-quo do capitalismo fluido é a base da ideia de que todos podemos qualquer coisa, desde que sejamos competentes o suficiente para vencer nossos próprios obstáculos, nem que isso custe o bem estar dos outros. Como Sun Tzu dizia, o objetivo principal da guerra é a paz, ninguém quer batalhar para sempre, mas todos queremos a vitória. A paz de uns (como as mulheres curdas nos ensinam bem) pode representar a desgraça de muitos. Mas os outros são os outros. Como o general já salientava, é necessário conhecê-los, visando explorar seus pontos vulneráveis, mas jamais expor os seus de forma demasiada. Os outros são aqueles que queremos trabalhando para nós, que queremos comprando nossos produtos, que dizemos que nos importamos, mas que devem ficar do outro lado do muro. Batalhas não são consensuais, guerras não são democráticas. Ou são um massacre do mais fraco ou um massacre generalizado. Sempre há muitas baixas.

Contra os Neandertais, a luta era espécie contra espécie; a luta já foi tribo contra tribo, reino contra reino, empresa contra empresa, família contra família. A fragmentação do coletivismo e o fortalecimento da identidade individual incorpora-se com o predadorismo da meritocracia desigual e torna o viver na nova modernidade um desfio de sobrevivência. O que o general chinês descrevia como campo de guerra, que deveria ser reconhecido e desbravado antes dos confrontos, hoje pode ser abstraído aos escritórios, estações de ônibus e redes sociais. O que outrora significava batalhar por territórios, hoje resume-se a buscar relevância; recursos pilhados equivalem-se aos likes. O que era um confronto de exércitos, hoje um confronto de indivíduos. Sempre lutamos por poder. O quanto isso se difere dos nossos antepassados?