Em sua recém-lançada trilogia para o público jovem, Ransom Riggs introduz ao mundo o seu universo fantástico. Baseado em sua coleção de fotos antigas, o autor relata as aventuras vividas por um grupo de crianças peculiares, cada uma apresentando alguma característica que as diferem dos seres humanos, digamos, convencionais. Os personagens são únicos e caricatos: um menino invisível convive diariamente com uma garota de força sobre-humana e um rapaz que é constantemente assolado por sonhos agoureiros, além de diversas outras personalidades presentes ao longo da trilogia. A trama principal circunda exatamente as peculiaridades de cada um e a dificuldade da inserção e aceitação das crianças em sociedade. O universo peculiar, no entanto, apresenta locais seguros, as fendas temporais, onde as personagens encontram refúgio e que, ao decorrer da história, vão desaparecendo e deixando-os desamparados perante o mundo real. A grande questão levantada pelo autor não poderia ser mais clara: como uma minoria pode ser aceita em sociedade fora do seu "gueto social"?
O preconceito é um dos grandes males da modernidade. Presente em todas as fases da existência da raça humana, o pré-julgamento alheio ganhou escala global e grande poder de disseminação com o advento da internet, em especial com a força da pós-verdade em um ambiente em que todos têm voz. A internet e as redes sociais uniram o preconceito ao anonimato, dando poder ao ódio aos diferentes, que antes ficava restrito àqueles que teriam coragem de se expor e, eventualmente, serem publicamente reprimidos. As crianças peculiares viviam isoladas, não por conta de se comportarem de forma diferente das crianças comuns, mas por alguns traços (por exemplo, característica física) que causava medo às pessoas não peculiares com as quais entravam em contato. O medo, uma das grandes bases do ódio, origina o preconceito. O medo é passional e irracional e não pode ser vencido sem uma grande dose de esforço cognitivo.
Como bem destacou Daniel Kahneman em seu grande livro Rápido e Devagar - duas formas de pensar, tomamos a maior parte de nossas decisões de forma automática, sem utilizar a nossa consciência, que entra somente em uma análise posterior das situações, se necessário. Essa condição nos diz muito sobre o processo de construção do preconceito, que ocorre com base nos sentimentos e, como já destacado, no medo que o diferente pode causar aos ignorantes. A tríplice do preconceito é clara: medo gera ódio, que é fortalecido pela ignorância. O preconceito de qualquer espécie, seja racismo, homofobia, antissemitismo é uma expressão de ódio poderosa, pois une as pessoas ao redor de um "inimigo" comum, disseminando a desinformação, fortalecendo a pós-verdade e eliminando o senso crítico, a única forma de quebrar o ciclo vicioso.
As doces crianças peculiares sofrem na pele a rejeição da sociedade, principalmente antes de serem resgatadas para as fendas temporais, com inúmeros casos de violência e torturas, físicas e psicológicas. É fácil fazer paralelo com a realidade. Homossexuais podem ser gays, desde que não sejam efeminados ou demonstrem afeto público, pois não tem o direito de serem livres, já que eu me reprimi durante toda a vida; negros podem trabalhar e serem meus amigos, mas ator negro, advogado negro e médico negros são incompetentes e foram colocados lá por cotas, já que esses papéis de destaque na sociedade só podem ser dos brancos por mérito; os peculiares podem existir, desde que trancados dentro de casa, pois tenho medo que meu estilo de vida que eu pertenço e domino seja ameaçado de alguma forma.
Se a falta de conhecimento é uma das bases do preconceito, apenas a informação pode romper essas barreiras de convivência e mostrar que, no fundo, todos temos nossas peculiaridades e que, como Ransom Riggs bem destaca, a única coisa que impede que vivamos pacificamente em sociedade é o desconhecimento. Cada vez mais as fendas temporais se dissolvem e os peculiares ganham seu espaço. Cada vez mais o preconceito deve perder o seu.