Há cerca de sessenta mil anos, coabitavam o planeta duas populosas espécies humanas. Os europeus Neandertais disputavam recursos e território com os Sapiens, cuja expansão territorial já era expressiva e que não tardaria a conquistar os quatro cantos do planeta. Muitas são as teorias sobre o que teria causado a extinção dos Neandertais, desde uma erupção vulcânica que assolou o velho continente no período superior do pleistoceno até a falta de capacidade de adaptação às mudanças no ambiente em que habitavam, principalmente na península ibérica. Porém um aspecto interessante dos últimos séculos dessa raça humana foi a difícil convivência com seus irmãos Sapiens. Violentos, agressivos e inteligentes, nossa raça oprimiu e intimidou de forma unipolar os Neandertais, a ponto de sermos apontados como peça chave da extinção, não apenas destes, mas de inúmeras outras espécies com as quais convivemos ao longo da jornada rumo ao monopólio. Os Sapiens eram implacáveis nas batalhas, impiedosos nas vitórias e dominadores de recursos e territórios.
Parece estranho pensar nos homens pré-sedentários como similares a nós. Aprendemos a cultivar o solo, procriar animais, modelar o espaço em que vivemos. Levantamos cidades, fábricas; criamos códigos de conduta e mitologias diversas. Somos um povo diferente, exceto por um detalhe extremamente importante: dentro de nós, de cada núcleo de cada célula dos nossos tecidos dos nossos órgãos, somos praticamente idênticos aos velhos coletores e caçadores de outrora. Nosso DNA, a fórmula mágica do sucesso da nossa espécie, mantêm-se praticamente intocável ao longo dos milhares de anos que nos separam dos nossos antepassados paleolíticos. Em essência continuamos os mesmos. Os mesmos implacáveis, impiedosos e dominadores que fomos com os Neandertais. Mas agora nossas batalhas são outras.
Por volta de 500aC, nos meados da China feudal, Sun Tzu relatava suas estratégias de batalha em um best-seller mundial, A Arte da Guerra. Os escritos do general deveriam ser lidos de forma literal, como um guia de como se posicionar em combate, como contra-atacar e planejar seus cercos durante um período de guerras. O fato do manual chinês continuar sendo transcrito, traduzido e recomendado reforça ainda mais uma das ideias mais lugar-comum nos dias atuais: a vida moderna é uma eterna batalha. Os inimigos, nesse caso, são as demais peças do sistema que dita a nova modernidade (ou pós-modernidade, se couber a definição), os outros. Os outros são os colegas de trabalho, as grandes empresas de marketing, o gerente da seu escritório, os bancos, os governos, os vizinhos, os familiares. Todos os que podem interferir em seus planos de vida, te puxar para baixo, te dizer que não. Em outras palavras, a batalha da modernidade é do meu eu contra quem não me dá apoio.
O individualismo e o senso de independência social plantado, regado e resguardado pelo status-quo do capitalismo fluido é a base da ideia de que todos podemos qualquer coisa, desde que sejamos competentes o suficiente para vencer nossos próprios obstáculos, nem que isso custe o bem estar dos outros. Como Sun Tzu dizia, o objetivo principal da guerra é a paz, ninguém quer batalhar para sempre, mas todos queremos a vitória. A paz de uns (como as mulheres curdas nos ensinam bem) pode representar a desgraça de muitos. Mas os outros são os outros. Como o general já salientava, é necessário conhecê-los, visando explorar seus pontos vulneráveis, mas jamais expor os seus de forma demasiada. Os outros são aqueles que queremos trabalhando para nós, que queremos comprando nossos produtos, que dizemos que nos importamos, mas que devem ficar do outro lado do muro. Batalhas não são consensuais, guerras não são democráticas. Ou são um massacre do mais fraco ou um massacre generalizado. Sempre há muitas baixas.
Contra os Neandertais, a luta era espécie contra espécie; a luta já foi tribo contra tribo, reino contra reino, empresa contra empresa, família contra família. A fragmentação do coletivismo e o fortalecimento da identidade individual incorpora-se com o predadorismo da meritocracia desigual e torna o viver na nova modernidade um desfio de sobrevivência. O que o general chinês descrevia como campo de guerra, que deveria ser reconhecido e desbravado antes dos confrontos, hoje pode ser abstraído aos escritórios, estações de ônibus e redes sociais. O que outrora significava batalhar por territórios, hoje resume-se a buscar relevância; recursos pilhados equivalem-se aos likes. O que era um confronto de exércitos, hoje um confronto de indivíduos. Sempre lutamos por poder. O quanto isso se difere dos nossos antepassados?
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