quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Admirável Mundo Novo: ser feliz ou ser livre?


Imagine um mundo no qual amamos tudo o que fazemos. Todas as tarefas são extremamente prazerosas, desde o nosso emprego, lazer, relacionamentos interpessoais e a própria imagem no espelho. Um universo no qual vivêssemos em um estado de êxtase permanente, sem neurastenias, sem dissabores. Você mudaria algo em sua vida? Agora suponha que tudo isso seja fruto de uma estrutura social que não permite a mudança, que desde a nossa concepção sejamos condicionados a fazermos e gostarmos de apenas um tipo específico de rotina. Não há a possibilidade de variações que tragam felicidade simplesmente pela forma com que nosso cérebro e nosso corpo foram programados para reagir às incumbências cotidianas. A sua resposta para a primeira pergunta continua sendo a mesma?

É essa a sociedade distópica que Aldous Huxley desenvolve em seu romance mais popular, Admirável Mundo Novo, de 1932. Mesmo sendo escrita nas primeiras décadas do século passado, a obra-prima de Huxley aborda temas incrivelmente modernos e levanta discussões sobre liberdade, felicidade, autoritarismo, uso de drogas e ciência que ainda são relevantes nos dias atuais (mais do que no século passado, pois as tecnologias consideradas utópicas para a época estão se tornando cada vez mais realidade). Dentre as diversas discussões abordadas na trama, um destaque especial vai para a forma com que o autor trata a relação entre liberdades individuais e felicidade coletiva. O Mundo Novo de Huxley apresenta um estado forte, regulador de todas as esferas das vidas pessoais, que mantêm a estabilidade de uma sociedade dividida em Castas. Cada uma das Castas tem um papel a desempenhar na máquina social, alguns destinados a serem operários em fábricas e realizar serviços braçais, outros de serem administradores mundiais, com necessidade de alto grau de erudição. Os nascituros, portanto, são modelados conforme o futuro que os aguarda: operários ganham mais força muscular e têm removida a capacidade de ler e escrever, por exemplo, via engenharia genética e condicionamento dos recém-nascidos. Isso cria uma sociedade como a descrita no início desse texto: humanos sob uma felicidade plena, porém sem liberdades individuais de escolha. Esse é o gancho do autor para a discussão sobre ser livre e também estar sujeito ao sofrimento, à infelicidade. Afinal, a liberdade conduz ao desprazer?

O filósofo francês Sartre dialoga com esse dilema destacando que muitos indivíduos preferem a privação das suas liberdades individuais ao sofrimento de angústia causado pela escolha, devido à necessidade de tomar decisões que podem ser de grande relevância para o seu bem-estar presente e futuro. Segundo a narrativa de Huxley, essa transição entre o mundo industrial da década de 30 para o Admirável Mundo Novo descrito na obra se dá em um momento de medo e desilusão, no qual as “pessoas estavam dispostas a deixar controlar até os seus apetites, em troca de uma vida sossegada”. Regimes totalitários podem ser vetores de felicidade para aqueles que encaixam-se nos moldes sociais impostos. A limitação da democracia, da liberdade de opinião, permite uma aceitação passiva da realidade sem o incômodo da responsabilidade compartilhada entre povo e seus governantes. Em uma sociedade eugênica como na distopia de Huxley, na qual todos os indivíduo de uma Casta são igualmente condicionados (diversas vezes gêmeos geneticamente idênticos), a privação da liberdade e da expansão criativa pode significar um isolamento da infelicidade.

Regimes autoritários, moralmente regrados, não apenas políticos, mas também presentes em seitas e grupos religiosos, podem ser muito atrativos para aqueles que se identificam com seus preceitos, devido à proteção que oferecem contra os que destoam do seu modelo ideal de vida. Isso é um dos motivos que reúnem multidões de apoiadores. No entanto, imposições de hábitos e personalidade podem ser extremamente nocivos à criatividade, arte, expressões culturais em geral e, acima de tudo, geram preconceito e exclusão em uma sociedade heterogênea. Em uma visão humanista, essa troca apresenta múltiplos nós que não são atados. Na obra do inglês, esse embate é discutido quando um Selvagem (um ser humano próximo a realidade atual) amante de Shakespeare confronta-se com o novo estilo de vida da raça humana. O choque é intenso e o debate se acalora: qual preço você estaria disposto a pagar pela felicidade plena?

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A discussão acima foi um pequeno recorte do que é levantado por Aldous Huxley em sua obra. A leitura completa de Admirável Mundo Novo é muito mais rica e, das principais distopias do século XX, uma das mais fluidas de ler e compreender.

Sugiro também a leitura das opiniões posteriores de Huxley sobre a sua obra, principalmente aquelas pós-Segunda Guerra Mundial, na qual ele contextualiza os autoritarismos na época com sua sociedade distópica.