quarta-feira, 22 de abril de 2020

O antidiário - Diário da Quarentena


Querido Diário, são estranhos os dias que já se foram, assim como os que seguirão. Aliás, se me permite uma observação peculiar, são dias que não se parecem com dias de fato, como se estivessem fadados a não serem. Não serem, não existirem, não estarem. É estranho pensar em uma negação do que está sendo e que, pelo menos onde meus sentidos podem me confirmar, é a única coisa que sempre é e nunca deixa de ser. Pode parecer confuso, mas se você estivesse passando pelo que hoje passo, Diário, saberia que as secas e vazias páginas de seus antepassados são tão frívolas como a rotina pandêmica. Mas você, um Diário digital e moderno, não sentirá o vazio de não possuir conteúdo. Está inundado nele; é o próprio conteúdo. Se eu não escrevesse em você, você nem existiria de fato. E nisso você pode me compreender, definitivamente, e se assemelha aos dias de isolamento que vão passando: sem conteúdo, simplesmente deixam de existir.

Por isso o diário de quarentena é um antidiário, um diário que relata dias a serem apagados, dias que queremos que desapareçam história. Talvez você não queira, devido a sua existência depender da minha benevolência de relatar o que acontece ultimamente, que, em essência, é nada. O nada é tudo que eu tenho para relatar, se é que você me entende. Mas o que um mero amontoado de Bytes pode opinar em relação ao que está acontecendo? Não passa de uma porção de sinais elétricos que representam números de forma imprecisa e limitada. Números não opinam. Números se quer existem! A menos que você seja um diário antirrealista, que contesta a coerência entre a realidade externa e a percepção sensorial. Partindo de um antidiário, de nada eu duvido.

Não acho que um antidiário seja inútil, por mais que me pareça pouco efetivo na função convencional atribuída a um diário. Infelizmente é o que me resta. E nem  todo diário pode ser igual a você, então sinta-se minimamente privilegiado. É a elite dos diários, privilegiado desde a concepção, narrando apenas as percepções limitadas de um jovem igualmente privilegiado. Narrando não, registrando. Pois os diários não são narradores dos fatos, mas sim meros registros temporais do presente que se tornará passado de maneira fugaz. No seu caso, registro de passados presentes e futuros passados que se misturam e podem ser igualmente relatados como a falta de relato, a página em branco que não poderá ser novamente preenchida, perdida.

O sofrimento, o medo, a paralisia, essa é a receita da nulidade. Pitadas de incompetência e negacionismo são adicionadas à receita para realçar o sabor fúnebre. Planta-se negligência, colhe-se cadáveres. Se congela-se, não há amparo; se movimenta-se, brinca-se com a ruína. A ordem caquistocrata é o caos. A verdade é perdida e tudo torna-se permitido. O duplipensamento se mostra uma arma fatal e o disparo de palavras, mais perigoso que o de balas de fogo. O que aqui relato é algo sem precedentes na história humana e, escancarando minha arrogância, me reconheço como parte do exército combatendo pela vida. E o que eu estou fazendo, você, um diário desatento, pode estar se perguntando. Ora, anulando meus dias, desacelerando a existência, tornando nada o meu tudo. Preciso ser mais claro do que já fui nos últimos três parágrafos? Poupe-me, somos mais inteligentes que isso. Pelo menos estamos tentamos nos manter sãos, não é?

Querido Diário, quando escrevo essas palavras passamos de três mil mortes por coronavírus no Brasil. Três mil vidas que se foram e, assim como o número que as representam, não existem mais no nosso universo dos sentidos. Não podemos mais nos tocar, olhar, conversar, chorar, lamentar, existir e coexistir. Mas os números são frios; a morte arde. Estamos no início da escalada.

Querido Diário, infelizmente ainda teremos muito que conversar.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Isolamento - Diário da Quarentena


Isolar-se é manter distância, afastar-se, evitar o contato. Em um contexto de coronavírus, o isolamento físico é necessário e, até o momento, a única coisa que pode minimizar a chacina da pandemia. Grandes centros vazios, praças públicas e pontos turísticos ermos. Essa é a paisagem de 2020 para os centros urbanos. A reflexão insurgente nesse momento de contraste e solidão citadino cruza as ruas, avenidas, estações de transporte público e nos leva a mergulhar nas multidões que se aglomeravam no cotidiano das metrópoles. Afinal, o quanto o caos diário dos grandes centros realmente significava que as pessoas não eram solitárias?

A solidão, como o escritor Hunter Thompson melancolicamente pontua, nos acompanha do início ao fim de nossas vidas: nascemos e morremos sozinhos. Nessa trajetória convivemos com os outros e compartilhamos nossa solidão com a das outras pessoas. Dentro de uma sociedade, usamos e abusamos da companhia alheia, em maior parte para satisfazer nossos próprios anseios e saciar nossa faminta necessidade por deleites e regojizos. Freud pontua como um balanço entre o ego e o superego: utilizamos da convivência e interação interpessoal para suprir nossas necessidades primitivas de prazer e gozo. Como Karnal destaca em seu livro sobre a solidão, ela é um refúgio que nos protege e nos machuca, assim como a convivência nos acalenta e nos fere. Um dos possíveis poderes da internet e da revolução digital que a acompanhou é a efetivação dessas barreiras tênues entre solidão e conexão, criando elos virtuais efêmeros entre as pessoas, que pode ser totalmente cortado de forma unilateral, com o poder do block.

Em um momento em que as relações virtuais são tudo que restam, é possível perceber o impacto que a superficialidade da convivência urbana nos causa. Quando Antônio Xerxenesky relata uma relação instável entre a metrópole e a pessoa humana em seu romance As Perguntas (2017), faz questão de pontuar nas entrelinhas como o estresse e a sobrecarga da rotina isola e engolfa a protagonista em seus problemas e aflições. A válvula de escape é superficial, levando-a ao esoterismo e seitas que, de alguma forma, tentam acalentar e prover algum senso de união. 

Em um contexto de isolamento e pandemia, as plataformas virtuais e sociais nos apresentam, de forma não filtrada, um catálogo diverso de realidades paralelas para acreditarmos e seguirmos, tal qual o esoterismo da personagem de Xerxenesky. Somado a isso, a ausência do calor da interação física tende a nos levar a conexões virtuais mais profundas, as vezes escancarando a fragilidade da maior parte de nossos contatos cotidianos. Percebemos que nos afastamos de pessoas outrora próximas, sendo contaminados por centenas de relações superficiais que consomem nosso tempo e paciência, mas inflam nosso ego.

Assim como Brás Cubas confia sua ingenuidade e seu egoísmo ao seu amigo e filósofo Quincas Borba nos findares de sua vida terrena, tendemos a confiar nas informações que nos protegem, nos aproximar daqueles que nos dizem sim e nos afastarmos a la carte daqueles que nos negam. Bombardeado de informações e carentes de contato, a bolha da internet nos isola cada vez mais. Vivemos, enfim, com três tipos de isolamento simultaneamente em curso: a solidão natural humana, a solidão física e a solidão virtual.

Ainda longe de compreender a quarentena que hodiernamente vivo, vou dormir. Segundo o defunto autor, aliás, é uma forma interina de morrer. Xerxenesky sabiamente pontua: é a morte que coloca as coisas em perspectiva. 

Prossigamos.