quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O justo e a justiça

 

O convívio em sociedade baseia-se em acordos interpessoais entre todos os indivíduos que a compõe. Sejam explicitamente concordados ou introjetados pela moral na qual estão imersos, conjuntos de regras, valores e punições são os pilares de agrupamentos humanos desde o princípio. Quando os sans-culottes se rebelaram contra a monarquia parisiense, contestavam-se os abusos de autoridade da nobreza e seu caráter de dominadora absoluta de seus súditos. O acordo em vigor até então representado pelo poder pleno dos descendentes do Rei Sol perdia espaço para a democracia livre, igualitária e fraterna dos revolucionários. A sociedade estava em transformação, portanto os grandes acordos intersubjetivos que a mantinha unida também sofria a metamorfose.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão serviu como farol guia das grandes constituições republicanas contemporâneas, a base dos Estados de Direito ocidentais. Assim como o código de Hamurabi na antiga Babilônia, grandes convenções de normas regem os países do mundo moderno, determinando os direitos e obrigações de suas populações assim como as punições legais para os que desviam suas condutas. Olho por olho, homicídio por reclusão. Foram os grandes processos revolucionários que substituíram o primeiro afronte pelo segundo.

No entanto, as pessoas constantemente esquecem que o sábado foi feito a elas e não o oposto. A lei garante a justiça até o ponto que ninguém é injustiçada por ela. Em outras palavras o limite do estado de direito é a soberania popular e subjugar a segunda em prol da primeira é como a luar miar para cada gato: uma inversão de valores que não faz sentido. A democracia, em uma interpretação contextual, é o regime que permite ao povo modificar as próprias regras que o rege, garantindo assim não apenas os direitos da maioria, mas promovendo a indiferença entre os cidadãos, ao ponto que nenhuma característica intrínseca ao indivíduo (cor da pele, opção religiosa etc.) pese em situações de julgamento legal.

Assim como o rei Babilônico defenderia suas regras como a única capaz de manter a ordem social, o mesmo acreditavam os reis franceses e os grandes positivistas modernos. Ao remover o zoom da lente da história nota-se algo muito curioso: desde a revolução cognitiva, passando pela agrícola, industrial, capitalista foi sempre a falta de ordem que nos trouxe algum progresso. Quando o povo clama por justiça e a soberania popular prospera, as grandes mudanças sociais insurgem. Um dos grandes questionamentos do nosso tempo remete-se novamente aos princípios da república platônica: nossa organização política realmente garante essa soberania?

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O grande sim



Sim. A vida é composta por uma babélica sucessão de "sims". Quando aqueles dois gametas se encontram, dentro nas infinitas possibilidades, um sim em um milésimo de segundo é necessário para que se dê início a uma nova existência. Mudamos nosso destino quando dizemos sim àquele outrora estranho que agora segura um anel em nossa frente, com os aflitos olhos esperando a simetria dos sentimentos. Sim após sim construímos os alicerces, erguemos e reformamos as paredes que dão forma e robustez à vida que ousamos fazer parte. Mas o que é essa vida se não uma preparação para o último e derradeiro sim, que todos insistem negar com tanto afinco.

O galope dos dias nos levam muitas vezes a caminhos distintos, na maior parte deles aqueles que não ousaríamos a trilhar se não fôssemos empurrados pelas grandes forças que nos guiam. Roda-se o relógio; claro, escuro e claro novamente; olhos se abrem e se fecham, somente para abrir mais uma vez. Seria nossa vida uma mera distração para o momento em que eles não voltarão a se abrir? Choramos quando os queridos se vão e sofremos em existência um sofrimento que apenas os que existem podem compartilhar. Ansiamos por momentos e experiências, nossos rostos se enrugam em preocupações, prezamos pela vida sem nos dar conta de que ela simplesmente é o agora. Hoje é hoje. A grande dádiva do presente é que ele simplesmente é. E não precisa de nada para ser. A cada momento dizemos sim ao presente enquanto somos arrastados pela correnteza do destino.

Pergunto-me se os nostálgicos não temem tanto o hoje quanto os pretensiosos. Afinal, a grande vantagem do futuro é que ele pode ser o que quiser, pois na realidade ele não é nada. O mesmo eu sinto do passado: uma mistura distorcida dos fatos e dos sentimentos que não mais nos pertencem. Seria o medo do Anjo de Vestes Negras um temor por não atingir a felicidade que o utópico futuro aparenta reservar? Ou ainda a nauseante possibilidade de ficar eternamente preso em um soturno agora? Não seria a aversão ao desaparecimento apenas uma forma com que expressamos o desprazer com um presente insípido?

Chegará, pois, o dia em que enfrentaremos o destino e pagaremos todas as dívidas que os viventes hão de quitar. Com o mais importante dos sims, o último fechará o ciclo: de onde viemos, partiremos. Abraçaremos a morte como um reencontro de velhos amigos, talvez amigável, talvez pouco pacífico. De qualquer forma, cabe a nós sob o véu da consciência aceitarmos ou não o inevitável. Colher o dia vai além de não esperar o amanhã; é antecipar o grande sim e deliciar-se, sem culpa nem remorso, dos pequenos grandes sims da vida terrena, um a um.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

MINUMUM - Fama

Movimentam-se milhões pela estorvadora curiosidade à vida alheia. Milhões em seus espelhos mágicos, contemplando através de lentes inquietas o enfadonho cotidiano de uma dúzia de caricaturas. Milhões em propaganda transitam sob eles. Porque nos importamos? Anônimos e famosos incitam multidões eloquentes de seguidores; demonstramos a eles o mais verdadeiro afeto e empatia, raramente exprimidos aos que compartilham nossas vidas. Porque tornamo-nos tão íntimos de quem nem nos conhece?