terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Sob a sina de Atlas


A neblina lá fora indica o fim da estação das chuvas e embaça o vidro que separa a sala da vida real. Dentro do cômodo, o senhor de meia idade perde-se no monte de papeis que chegam por sua caixa de correio. Uma muralha de boletos e fiados, que enchem a mesa e a paciência do homem, parecendo mais velho e mais rabugento a cada nova carta que, de forma nem um pouco amigável, fazia questão de ler e rasgar sem pudores, sem hesitar. Mesmo exteriorizando sua raiva, ela não passava de uma forma com que seu corpo tentava vitimizar a si próprio e tentar blindá-lo da dura realidade que o tinha guiado àquele momento: sua vida financeira estava no buraco. 

A próxima carta da pilha interminável era um aviso do banco sobre a hipoteca de sua casa. O casebre do homem era o único bem que o credor aceitara quando precisou de um empréstimo para bancar o tratamento de saúde da filha. A criança, mesmo após todos os esforços médicos, se fora, mas a dor do pai era real a cada aviso que recebia em sua casa, a cada fria mensagem automática escrita por um computador em algum luxuoso escritório da organização financeira. As lágrimas escorriam, assim como a umidade do lado externo da janela, enquanto o dia despedia-se do sol e o senhor lembrava-se de suas dolorosas despedidas.

Enxugou o rosto e deu um gole em seu chá frio, estendendo-se para alcançar a próxima carta que o aguardava. O brasão da prefeitura mostrava-se meio falhado no topo do papel e o texto, nada animador, indicava que tinha sido selecionado para um imperdível programa de renegociação de impostos atrasados. Há anos que o homem não cumpria com suas obrigações civis, não havia repassado um centavo sequer para o governo e sentia-se no direito de não prover o seu dinheiro para aqueles que não o ajudavam. A carta teve o mesmo destino das demais, fazendo com que, sem a menor empolgação, voltasse à pilha de papel que o isolava do outro extremo da mesa. Nada de novo, nada de interessante, apenas as mesmas palavras vazias escritas com o intuito de provocar preocupação ou descontentamento, realizando ameaças nas entrelinhas, corroendo o orgulho e ferindo o brio do homem em cada frase. 

No fatídico dia da morte de sua filha, o seu marido não aguentara o choque e perdera a razão de viver. O custo com os antidepressivos do parceiro drenava todo o dinheiro do homem, cujos cabelos brancos eram responsáveis por sustentar sozinho a frágil família, mesmo nunca tendo um emprego fixo que garantisse a sustentação plena do casal. O peso de uma vida perdida ainda era latente sobre suas costas e o medo da solidão completa o mantinha ereto para continuar seguindo em frente. 

Levantou-se com dificuldade e adentrou a antessala que separava a porta da frente do interior da casa. Pegou seu sobretudo cinza surrado e rumou em direção a vastidão da noite. A neblina o impedia de ver claramente, mas o caminho parecia nítido como o dia. O ofuscamento não era fruto da falta de luz das ruas do bairro, mas dos seus olhos, que falhavam em enxergar o significado de tudo aquilo. Afinal, pensava o senhor, a quem pertencia sua felicidade, se ela se quer ainda existisse? Sua filha a levou com ela, como seu ursinho de pelúcia, para dentro de seu túmulo? Estaria sua alegria deitada no quarto do casal, agoniando sobre a própria existência? Os carros passavam e a escuridão aumentava.

Cruzando a avenida, entrou em uma loja de conveniência e comprou uma caixa de leite e um maço de cigarros, acendendo um logo ao sair novamente em direção à noite. Sua vida não estava sob suas mãos e era só uma questão de tempo até que fosse privado de tudo que teve o prazer de conquistar em seus longos anos de caminhada. À distância, uma sirene tocava em velocidade, e sua espinha tremia com o som que chegava aos seus ouvidos. Um ultimato e poderia perder seu bem mais precioso, a liberdade. Liberdade que o guiava naquela noite era a mesma que o guiou para fora da casa de seus pais, quando decidiu buscar um amor proibido; liberdade que o guiou ao orfanato e abraçou a menina recém nascida, sozinha e desamparada, acalentando seu coração como nunca antes; liberdade de ajoelhar sob a lápide e chorar o fim injusto de uma alma incrível; liberdade que o mantinha de pé sob as luzes borradas de uma cidade deserta.

Ao voltar a antessala, tudo estava como antes, mas nada mais parecia estar no lugar. Nada lá o pertencia, nem a mesa, nem o sofá nem o sobretudo que vestia. Estava nu em um mundo que o sufocava e o privava de sua própria existência, como se estar ali significasse um delito imperdoável. Apagou o resto do seu cigarro na carta mais próxima, sua demissão, recebida mais cedo naquele mesmo dia pelas mãos de seu supervisor. Com aquele desfecho, o fundo do poço parecia nunca chegar e, em queda livre em direção ao abismo, temia o que pudesse encontrar nas profundezas da existência. 

As lágrimas agora cessaram e o ódio voltava a latejar quando as últimas cartas eram remexidas e apresentavam duas propostas para um futuro melhor. O sorriso cativante criado por computação gráfica do candidato destoava da expressão de seriedade do seu oponente, ambos representando um país que não existia, uma esperança que era latente, mas incubada e enterrada. Tanto o presente quanto a dita renovação não o representavam. O grisalho senhor não acreditava no velho que se dizia renovado, nem o novo que representava mais do mesmo. Seu coração, cheio de emoções fervilhando queria acreditar, precisava acreditar, seria sua única chance de agarrar-se às paredes e evitar a dolorosa aterrissagem, mas a chama já se apagara e palavras vazias jamais a reacenderia.

Como um réu em um tribunal cercado por seu júri, as cartas dispunham-se ao seu redor, cercando-o e sufocando-o. Cada vez mais sentia-se despido e, como uma forma de se libertar, acendeu mais um cigarro e queimou suas cobranças uma a uma. A cada monte de cinzas que se formava ao seu redor, sentia-se recuperando um membro, retomando a forma. A sensação de liberdade voltava gradativamente e tornava-se dono novamente de si. Afinal, quem ditava o que ele precisava ser ou agir? Nunca fora a sociedade, nunca os bancos nem os governos. Ou será que sempre fora e ele nunca conseguir enxergar que não pertencia a si próprio?

Sem arrumar a bagunça da mesa, o homem subiu as escadas e adentrou seu quarto, sentindo o mofo invadir suas narinas. Do lado direito, seu companheiro mergulhava profundamente em seu sono de tarja preta. Deitou-se com cautela e acalentou-se ao lado do seu amor. Bastou um toque para que a represa se rompesse e as lágrimas voltassem a fluir, pondo fim à frágil compostura que tentara construir desde que voltara de sua caminhada noturna. Novamente parecia estar sozinho entre quatro paredes, porém constantemente vigiado por um mundo que o condena, o controla. Abraçou calorosamente o homem ao seu lado e engoliu seus pensamentos, navegando de forma turbulenta em direção ao vazio do sono, onde apenas ele poderia adentrar. Talvez lá existisse amparo; talvez lá existisse compaixão.

Talvez lá existisse esperança. 


-----------------------------------------------------------

Crônica escrita originalmente para o Concurso Literário BAE 2018 - UNICAMP

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Como você lida com o fracasso?


Fracassei! Definitivamente não é algo agradável, ninguém gosta de fracassar. Vivemos todos os instantes traçando metas, planos e agindo em prol de um objetivo que ansiamos atingir, seja em nossa carreira profissional ou nos relacionamentos que construímos. Mas o fracasso acontece e não é incomum nos depararmos com uma situação irreversível que nos afastou das nossas realizações. O que fazer quando fracassamos? Na verdade um bom ponto de partida para essa discussão é “o que você faz quando fracassa?” Como você age quando seu namoro promissor tem um trágico desfecho? O que passa pela sua cabeça quando você é trocada por uma colega de trabalho em uma promoção importante? Como você reage ao saber que não atingiu a nota de corte do vestibular que sonhou durante todo seu ensino médio? Dentro da caixinha da rotina descendo a correnteza de emoções do cotidiano talvez não paramos para pensar sobre como encaramos o insucesso. Mas isso pode revelar grandes fragilidades pessoais que podem ser trabalhadas e fortalecida.

O jeito com que encaramos o fracasso é reflexo da forma com que lidamos com as situações que nos levam à falha. Em seus estudos sobre mentalidade e comportamento, a Prof. Dr. Carol Dweck propõem dois principais modos com que nosso cérebro interpreta os eventos que nos envolvemos, dois “mindsets”. Grosso modo (mais detalhes no livro da Prof. Dwerck), eles são divididos entre o mindset fixo e o mindset de crescimento. O mindset fixo parte do pressuposto que as características das pessoas (principalmente as suas próprias) são praticamente imutáveis. Somos o que somos, nossas características nos definem como tal e não há muito o que possamos fazer para mudar isso. Pessoas de mindset fixo tendem a crer muito mais em talento nato (artes, esportes etc), em habilidades sociais fixas (timidez, carisma etc) e que o esforço é sinal de fraqueza, visto que estou tendo dificuldades em concentrar minhas aptidões para realizar tal tarefa. Pessoas de mindset de crescimento, por outro lado, acreditam piamente na evolução cognitiva, que nossas características pessoais estão sempre em processo de crescimento e no desenvolvimento de suas habilidades. Quem tem essa mentalidade tende a valorizar o esforço acima dos resultados, encarar maiores desafios e rotular menos os colegas. Normalmente as pessoas mesclam os dois tipos de mindsets de acordo com as situações que enfrentam, mas saber qual é o seu dominante pode te ajudar a lidar com o fracasso de forma menos dolorosa. Você consegue identificar qual o seu?

Segundo os estudos da professora de Stanford, o fracasso é muito doloroso para aqueles com mentalidade fixa. Como para elas as características e habilidades de uma pessoa são imutáveis, falhar torna-se uma ofensa pessoal. Se fracassei, significa que não sou bom o suficiente, não disponho das habilidades necessárias para realizar tal tarefa ou desempenhar certa função. A reprovação em um exame importante é sinal de que eu não fui capaz de ser boa o suficiente, logo essa vaga talvez não seja para mim; o fim de um relacionamento significa que “nosso santo não bateu” ou ainda que ele não correspondeu às minhas expectativas; perder um concurso de poesia significa que eu não sou uma poeta exemplar e talvez deva desistir de escrever. No mindset fixo o fracasso corrói, tentamos nos isentar da culpa o máximo possível (normalmente afirmando com eloquência a culpa alheia), responsabilizamos os outros, nos envergonhamos e tentamos extirpá-la de nossos pensamentos. E pior, pouco fazemos para que não fracassemos novamente.

Uma possível solução para isso é tentarmos migrar nosso modo de ver o mundo para uma visão construtiva. No mindset de crescimento o fracasso é encarado como um processo de aprendizado. Como nossas características, nossos rótulos (inteligente, talentoso, gênio) não nos definem, o fracasso nunca é completo. A não obtenção do sucesso é uma oportunidade para aprendizado e aprimoramento das nossas habilidades. A queda em um vestibular concorrido pode ser um sinal que nosso método de estudo é ineficiente e que devemos mudar nossa forma de obter conhecimento, ou ainda uma oportunidade para revermos os nossos pontos fracos e aprimorá-los; um relacionamento que não corre bem pode ser considerado uma derrota, ou uma oportunidade de abertura de diálogo entre as partes para encontrar os motivos de atrito entre o casal. No mindset de crescimento, não somos: estamos!

Migrar de mindset, como estudos comprovam, é algo totalmente possível, mas não é simples. Exige, dentre muitos fatores, um exercício de humildade e auto aceitação. As consequências para autoestima e convívio em sociedade, no entanto, podem ser exorbitantes. No mindset fixo, o fracasso nos torna um fracassado; no mindset de crescimento, o fracasso nos motiva, sem rotular, delegar culpa e derramar lágrimas em vão, lamentando. Como lidamos com o fracasso é parte importante da nossa personalidade e pode definir como agimos em situações de tensão (basta notar que isso é sempre alvo de questionamentos em entrevistas de emprego).

Fracassei! Mas o que aprendi com isso? Porque fracassei? Como posso agir para não falhar mais da mesma forma? Quais são os próximos passos? Perguntas como essa servem para exercitar nosso cérebro e expungir o autojulgamento que pode ter sérios impactos negativos em nossa vida.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Admirável Mundo Novo: ser feliz ou ser livre?


Imagine um mundo no qual amamos tudo o que fazemos. Todas as tarefas são extremamente prazerosas, desde o nosso emprego, lazer, relacionamentos interpessoais e a própria imagem no espelho. Um universo no qual vivêssemos em um estado de êxtase permanente, sem neurastenias, sem dissabores. Você mudaria algo em sua vida? Agora suponha que tudo isso seja fruto de uma estrutura social que não permite a mudança, que desde a nossa concepção sejamos condicionados a fazermos e gostarmos de apenas um tipo específico de rotina. Não há a possibilidade de variações que tragam felicidade simplesmente pela forma com que nosso cérebro e nosso corpo foram programados para reagir às incumbências cotidianas. A sua resposta para a primeira pergunta continua sendo a mesma?

É essa a sociedade distópica que Aldous Huxley desenvolve em seu romance mais popular, Admirável Mundo Novo, de 1932. Mesmo sendo escrita nas primeiras décadas do século passado, a obra-prima de Huxley aborda temas incrivelmente modernos e levanta discussões sobre liberdade, felicidade, autoritarismo, uso de drogas e ciência que ainda são relevantes nos dias atuais (mais do que no século passado, pois as tecnologias consideradas utópicas para a época estão se tornando cada vez mais realidade). Dentre as diversas discussões abordadas na trama, um destaque especial vai para a forma com que o autor trata a relação entre liberdades individuais e felicidade coletiva. O Mundo Novo de Huxley apresenta um estado forte, regulador de todas as esferas das vidas pessoais, que mantêm a estabilidade de uma sociedade dividida em Castas. Cada uma das Castas tem um papel a desempenhar na máquina social, alguns destinados a serem operários em fábricas e realizar serviços braçais, outros de serem administradores mundiais, com necessidade de alto grau de erudição. Os nascituros, portanto, são modelados conforme o futuro que os aguarda: operários ganham mais força muscular e têm removida a capacidade de ler e escrever, por exemplo, via engenharia genética e condicionamento dos recém-nascidos. Isso cria uma sociedade como a descrita no início desse texto: humanos sob uma felicidade plena, porém sem liberdades individuais de escolha. Esse é o gancho do autor para a discussão sobre ser livre e também estar sujeito ao sofrimento, à infelicidade. Afinal, a liberdade conduz ao desprazer?

O filósofo francês Sartre dialoga com esse dilema destacando que muitos indivíduos preferem a privação das suas liberdades individuais ao sofrimento de angústia causado pela escolha, devido à necessidade de tomar decisões que podem ser de grande relevância para o seu bem-estar presente e futuro. Segundo a narrativa de Huxley, essa transição entre o mundo industrial da década de 30 para o Admirável Mundo Novo descrito na obra se dá em um momento de medo e desilusão, no qual as “pessoas estavam dispostas a deixar controlar até os seus apetites, em troca de uma vida sossegada”. Regimes totalitários podem ser vetores de felicidade para aqueles que encaixam-se nos moldes sociais impostos. A limitação da democracia, da liberdade de opinião, permite uma aceitação passiva da realidade sem o incômodo da responsabilidade compartilhada entre povo e seus governantes. Em uma sociedade eugênica como na distopia de Huxley, na qual todos os indivíduo de uma Casta são igualmente condicionados (diversas vezes gêmeos geneticamente idênticos), a privação da liberdade e da expansão criativa pode significar um isolamento da infelicidade.

Regimes autoritários, moralmente regrados, não apenas políticos, mas também presentes em seitas e grupos religiosos, podem ser muito atrativos para aqueles que se identificam com seus preceitos, devido à proteção que oferecem contra os que destoam do seu modelo ideal de vida. Isso é um dos motivos que reúnem multidões de apoiadores. No entanto, imposições de hábitos e personalidade podem ser extremamente nocivos à criatividade, arte, expressões culturais em geral e, acima de tudo, geram preconceito e exclusão em uma sociedade heterogênea. Em uma visão humanista, essa troca apresenta múltiplos nós que não são atados. Na obra do inglês, esse embate é discutido quando um Selvagem (um ser humano próximo a realidade atual) amante de Shakespeare confronta-se com o novo estilo de vida da raça humana. O choque é intenso e o debate se acalora: qual preço você estaria disposto a pagar pela felicidade plena?

-----

A discussão acima foi um pequeno recorte do que é levantado por Aldous Huxley em sua obra. A leitura completa de Admirável Mundo Novo é muito mais rica e, das principais distopias do século XX, uma das mais fluidas de ler e compreender.

Sugiro também a leitura das opiniões posteriores de Huxley sobre a sua obra, principalmente aquelas pós-Segunda Guerra Mundial, na qual ele contextualiza os autoritarismos na época com sua sociedade distópica.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Laranja Mecânica e a origem da violência


Alex é um garoto delinquente, líder de sua própria gangue de nadsats, em uma Inglaterra de um futuro próximo tomada por uma onda de ultraviolência e medo. Esse é o universo que Anthony Burgess introduz nos primeiros capítulos de sua obra-prima, Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, no original). Lançado a mais de meio século atrás, em 1962, o escrito de Burgess sobre seu mundo distópico é uma das mais aclamadas obras do gênero, com diversas adaptações em filmes, teatro e seriados. O narrador e personagem principal da trama, o nadsat (adolescente, na linguagem criada por Burgess) Alex, de apenas quinze anos, vive em um mundo em que a violência impera. O narrador e seus druguis envolvem-se em todo o tipo de ato brutal e impiedoso que nós, como leitores, temos detalhadamente descritos por uma perspectiva de um narrador que participa ativamente de tais bestialidades. Apenas na primeira das três partes do romance é possível presenciar cenas de evisceração em brigas de rua, assalto a lojas, estupros violentos, roubos a domicílios e homicídio. Nosso narrador, como era de se esperar, é pego pelos miliquitas (polícia, nas gírias nadsat) e passa um tempo na prisão. Uma das cenas mais marcantes do livro inglês, eternizado nas telas de cinema por Kubrick, é o tratamento recebido pelo garoto para “curar” seus impulsos violentos.

Forçado a assistir cenas de violência extrema (como as que ele costumava praticar com sua gangue), Alex recebe doses de químicos responsáveis por causar mal-estar simultaneamente às imagens transmitidas. A ideia era clara: associar o seu estado físico deplorável, causado por tais drogas, com a violência, fazendo com que seus impulsos hostis não despertassem o prazer que costumava sentir no passado. As autoridades presentes no romance tinham um plano para erradicar a violência e Alex era a cobaia: “curando” os bandidos, estupradores e ladrões, o crime se extinguiria. Nesse ponto, meus caros, que Anthony Burgess levanta uma das maiores reflexões de sua obra, um debate presente até os dias atuais: a violência como um problema moral ou social.

Não é preciso nos mexermos muito para encontrarmos exemplares humanos que creem que a violência em si de é de origem moral, assim como pensa o governo de Laranja Mecânica. Soluções autoritárias como castração química para estupradores ou pena de morte partem do pressuposto que o crime só existe devido aos desvios de conduta daqueles que os cometem. O que de certa forma é razoável de se concluir. Afinal, se não existissem criminosos, quais crimes temeríamos? Por isso soluções simples como extermínio ou correção permanente são tão atrativas àqueles que vislumbram apenas a superfície da problemática, principalmente quando sofrem com essa violência, vítimas assoladas pelo medo, como as classes mais abastadas do romance de Burgess (conseguem traçar um paralelo com nosso presente?).

A aplicação da técnica foi um sucesso, Alex não suportava mais qualquer ato que o fazia pensar em agressividade, inclusive autodefesa. Tinham extraído essa parte de sua natureza orgânica, agora programada para fazer o bem. Fora da prisão, dois anos depois da sua entrada, o narrador tenta retomar sua vida, sem receber nenhum apoio do Estado para que o faça. Estava solto novamente, dentro da mesma sociedade que o criara. O resultado não poderia ser outro: desamparado por uma família ausente e incapaz de se proteger de seus antigos inimigos, Alex torna-se um ninguém, socialmente marginalizado, sendo agora sua vez de sofrer nas mãos de uma polícia ostensiva e despreparada, colegas com quem tinha inimizades e sem saber o rumo que tomaria sua vida. Tenta, inclusive, a solução final, saltando de um prédio alto, sem sucesso. O ciclo se fecha e o autor retorna ao questionamento original: qual a real origem da violência?

O mergulho profundo sob a problemática apresenta a violência como resultado de uma sociedade endemicamente violenta. O prazer de Alex em cometer atrocidades vai além da pura satisfação pessoal e moral, mas fruto de um contexto que permeia o cotidiano do narrador. A reeducação moral não é o suficiente, como Burgess destaca, pois além de não resolver o problema da origem da violência (outros “Alexes” mais jovens estão florescendo desse perverso jardim), cria-se outra complicação social em relação àqueles que forçosamente tiveram suas vontades extraídas e deixados à deriva. Um estuprador castrado ainda tem a cabeça de um estuprador, mesmo tendo seu corpo alterado a força, e assumirá um papel social como tal. Um bandido morto pelo Estado pode deixar uma família desamparada, possível semente de uma nova geração de violência. O que o autor inglês nos apresenta é a transcendência, além da máscara do medo e da solução simples. E além de tudo, que a violência urbana trata-se de seres humanos maltratando seres humanos. O que leva uns a serem vítimas e outros, os réus? Basta matar uma dúzia de formigas para exterminarmos o formigueiro?

-------

Sugiro fortemente a leitura integral do texto de Burgess. O autor ainda discute temas como autoritarismo, violência policial, uso da linguagem, entre outros. Mesmo sendo uma obra impactante no primeiro contato (inclusive pela linguagem nadsat usada pelo narrador o tempo todo, criada pelo autor inglês), a leitura da obra é rica em temas de grande relevância para os dias atuais e vale cada esforço despendido em sua compreensão. Suas adaptações, em especial a de Stanley Kubrick de 1971 para o cinema, também apresentam ótimas perspectivas para acalorar esse debate.

terça-feira, 17 de abril de 2018

Pelos olhos de uma criança


Do alto da janela de sua mansão, Bruno olhava sem entender o que acontecia do lado de fora. Uma grande cerca o separava de centenas de pessoas, que curiosamente usavam os mesmos pijamas e chapéus listrados. Não era justo, pensava o menino alemão, que ele tinha que ficar sozinho naquela casa, cercado por muitos adultos chatos e estressados enquanto a poucos metros de distância existiam muitas e muitas crianças com quem ele poderia brincar, aproveitar a tarde e jogar futebol. Em outro universo vivia Gui, um menino de classe média brasileiro que recebe a notícia de que sua irmã mais velha sofreu um acidente de carro, tornando-a paraplégica. Lembrando de quando pegou uma bronquite, ficando semanas na cama assim como a irmã, esperava ansiosamente o dia em que ela se curasse e voltasse a andar, podendo brincar com ele novamente. Não entendia, porém, o porque dos adultos evadirem o assunto abruptamente toda vez que ele demonstrava suas esperanças. Esses dois acontecimentos remetem-se a duas ótimas obras de literatura juvenil, O menino do pijama listrado, de John Boyne e Estrelas tortas do brasileiro Walcyr Carrasco. Para os adultos, no entanto, essas obras contam mais do que uma história pelos olhos de uma criança, descrevem, além de muitos outros aspectos, como o filtro do preconceito funciona, como estamos fadados a enxergar o mundo através dele e como ele se constrói ao longo do tempo.

Bruno tinha oito anos, a irmã mais velha, doze. Um dia, entediado e solitário, o alemão busca a irmã querendo respostas. "Eles são judeus, Bruno", responde a irmã, "Nós não gostamos deles". "E nós somos judeus?", o garoto replica, sendo prontamente interrompido pela menina "Não! Não diga isso". "Mas se não somos judeus, o que somos?", novamente questionando sobre as pessoas de pijama listrado isoladas pela cerca. Para essa pergunta, no entanto, a menina não soube o que dizer. Ficamos afônicos quando paramos para pensar no real motivo por agimos de forma estranha com pessoas que nem conhecemos ou acabamos de conhecer. O filtro do preconceito age sem nos darmos conta de sua existência e é esse um dos principais motivos de pessoas preconceituosas não se identificarem como tais. Essa falta de percepção, que Bruno ainda não possuia, está atrelada a dois fenômenos sociais muito similares, que são a estereotipação (normalmente a origem do preconceito em grupos humanos) e a conformidade social (o que o mantém vivo e blindado). O jovem alemão, em sua visão infantil está além dos estereótipos, não entende o que há de diferente entre ele e seu amigo, Shmuel, isolado do outro lado do campo de concentração. Não se conforma com essa segregação, pois não vê sentido no que os adultos fazem, impedindo-os de brincar e se divertirem juntos. A situação é inocente; a mensagem é forte e poderosa. Em que se baseia o preconceito?

Yuval Harari, em seu livro Sapiens, introduz um debate pertinente de como a rotulação e classificação segregadora dos seres e objetos no ambiente em que vivemos desde os primórdios foram necessários para a manutenção do gênero humano no planeta. Em outras palavras a classificação de algo como "Estranho/mantenha a distância" e "Comum/se aproxime" é o modo mais simples que o cérebro dos Sapiens tem em garantir sua autoconservação. Por esse modo, não é exagero dizer que o medo e o preconceito são como dois lados da mesma moeda, provenientes de um mecanismo cognitivo comum. Apesar disso, destaca o autor israelita, os Sapiens conquistaram o mundo por sua adaptação à vida coletiva e capacidade única de unir grandes povos, de acordo com as condições em que viviam em cada época. Um questionamento importante pode ser colocado nesse contexto: o preconceito ainda é um mecanismo necessário para manutenção da nossa vida em sociedade?

Como vencer o preconceito, já que ele ainda é vivo e latente em nosso cotidiano? Gui, um dos narradores do livro Estrelas tortas, nos dá, na simplicidade da visão infantil, um caminho a seguir. Ao voltar para a escola em uma cadeira de rodas, sua irmã Marcella, antes uma das atletas mais queridas entre os estudantes, sofre rejeição instantânea por seus colegas adolescentes. O garoto, por outro lado, não compreende com clareza a reação dos amigos. A irmã mais velha estava doente, deprimida, mas continuava com a mesma personalidade de antes, porque as coisas estavam tão diferentes? O que Gui sentia pela irmã talvez seja a chave para rasgarmos os filtros estereotipadores que se formam ao nosso redor: empatia. A dificuldade (ou o desconforto) de colocar-se na pele alheia, de vestir os óculos dos outros, principalmente dos estranhos, pode ser doloroso, então evitamos a todo custo carregar esse fardo.

Assim como crianças que vão ao parquinho da praça para brincar e se divertir com todos, independentemente das aparências, da classe social ou do gênero, pode uma vida sem preconceitos ser mais leve, divertida e prazerosa. Basta um certo esforço cognitivo, que no começo pode parecer exaustivo, e desassociarmos o medo às aparências. Os livros de Carrasco e Boyne apresentam diversos debates importantes além do recorte aqui destacado, utilizando a narrativa infantil como um ponto de vista distinto, permitindo ver o óbvio muitas vezes entocado em um ponto invisível nas situações do dia a dia. Leituras simples e fluidas, mas que pesam a consciência dos adultos e nos convidam para um interessante experimento de empatia.