A neblina lá fora indica o fim da estação das chuvas e embaça o vidro que separa a sala da vida real. Dentro do cômodo, o senhor de meia idade perde-se no monte de papeis que chegam por sua caixa de correio. Uma muralha de boletos e fiados, que enchem a mesa e a paciência do homem, parecendo mais velho e mais rabugento a cada nova carta que, de forma nem um pouco amigável, fazia questão de ler e rasgar sem pudores, sem hesitar. Mesmo exteriorizando sua raiva, ela não passava de uma forma com que seu corpo tentava vitimizar a si próprio e tentar blindá-lo da dura realidade que o tinha guiado àquele momento: sua vida financeira estava no buraco.
A próxima carta da pilha interminável era um aviso do banco sobre a hipoteca de sua casa. O casebre do homem era o único bem que o credor aceitara quando precisou de um empréstimo para bancar o tratamento de saúde da filha. A criança, mesmo após todos os esforços médicos, se fora, mas a dor do pai era real a cada aviso que recebia em sua casa, a cada fria mensagem automática escrita por um computador em algum luxuoso escritório da organização financeira. As lágrimas escorriam, assim como a umidade do lado externo da janela, enquanto o dia despedia-se do sol e o senhor lembrava-se de suas dolorosas despedidas.
Enxugou o rosto e deu um gole em seu chá frio, estendendo-se para alcançar a próxima carta que o aguardava. O brasão da prefeitura mostrava-se meio falhado no topo do papel e o texto, nada animador, indicava que tinha sido selecionado para um imperdível programa de renegociação de impostos atrasados. Há anos que o homem não cumpria com suas obrigações civis, não havia repassado um centavo sequer para o governo e sentia-se no direito de não prover o seu dinheiro para aqueles que não o ajudavam. A carta teve o mesmo destino das demais, fazendo com que, sem a menor empolgação, voltasse à pilha de papel que o isolava do outro extremo da mesa. Nada de novo, nada de interessante, apenas as mesmas palavras vazias escritas com o intuito de provocar preocupação ou descontentamento, realizando ameaças nas entrelinhas, corroendo o orgulho e ferindo o brio do homem em cada frase.
No fatídico dia da morte de sua filha, o seu marido não aguentara o choque e perdera a razão de viver. O custo com os antidepressivos do parceiro drenava todo o dinheiro do homem, cujos cabelos brancos eram responsáveis por sustentar sozinho a frágil família, mesmo nunca tendo um emprego fixo que garantisse a sustentação plena do casal. O peso de uma vida perdida ainda era latente sobre suas costas e o medo da solidão completa o mantinha ereto para continuar seguindo em frente.
Levantou-se com dificuldade e adentrou a antessala que separava a porta da frente do interior da casa. Pegou seu sobretudo cinza surrado e rumou em direção a vastidão da noite. A neblina o impedia de ver claramente, mas o caminho parecia nítido como o dia. O ofuscamento não era fruto da falta de luz das ruas do bairro, mas dos seus olhos, que falhavam em enxergar o significado de tudo aquilo. Afinal, pensava o senhor, a quem pertencia sua felicidade, se ela se quer ainda existisse? Sua filha a levou com ela, como seu ursinho de pelúcia, para dentro de seu túmulo? Estaria sua alegria deitada no quarto do casal, agoniando sobre a própria existência? Os carros passavam e a escuridão aumentava.
Cruzando a avenida, entrou em uma loja de conveniência e comprou uma caixa de leite e um maço de cigarros, acendendo um logo ao sair novamente em direção à noite. Sua vida não estava sob suas mãos e era só uma questão de tempo até que fosse privado de tudo que teve o prazer de conquistar em seus longos anos de caminhada. À distância, uma sirene tocava em velocidade, e sua espinha tremia com o som que chegava aos seus ouvidos. Um ultimato e poderia perder seu bem mais precioso, a liberdade. Liberdade que o guiava naquela noite era a mesma que o guiou para fora da casa de seus pais, quando decidiu buscar um amor proibido; liberdade que o guiou ao orfanato e abraçou a menina recém nascida, sozinha e desamparada, acalentando seu coração como nunca antes; liberdade de ajoelhar sob a lápide e chorar o fim injusto de uma alma incrível; liberdade que o mantinha de pé sob as luzes borradas de uma cidade deserta.
Ao voltar a antessala, tudo estava como antes, mas nada mais parecia estar no lugar. Nada lá o pertencia, nem a mesa, nem o sofá nem o sobretudo que vestia. Estava nu em um mundo que o sufocava e o privava de sua própria existência, como se estar ali significasse um delito imperdoável. Apagou o resto do seu cigarro na carta mais próxima, sua demissão, recebida mais cedo naquele mesmo dia pelas mãos de seu supervisor. Com aquele desfecho, o fundo do poço parecia nunca chegar e, em queda livre em direção ao abismo, temia o que pudesse encontrar nas profundezas da existência.
As lágrimas agora cessaram e o ódio voltava a latejar quando as últimas cartas eram remexidas e apresentavam duas propostas para um futuro melhor. O sorriso cativante criado por computação gráfica do candidato destoava da expressão de seriedade do seu oponente, ambos representando um país que não existia, uma esperança que era latente, mas incubada e enterrada. Tanto o presente quanto a dita renovação não o representavam. O grisalho senhor não acreditava no velho que se dizia renovado, nem o novo que representava mais do mesmo. Seu coração, cheio de emoções fervilhando queria acreditar, precisava acreditar, seria sua única chance de agarrar-se às paredes e evitar a dolorosa aterrissagem, mas a chama já se apagara e palavras vazias jamais a reacenderia.
Como um réu em um tribunal cercado por seu júri, as cartas dispunham-se ao seu redor, cercando-o e sufocando-o. Cada vez mais sentia-se despido e, como uma forma de se libertar, acendeu mais um cigarro e queimou suas cobranças uma a uma. A cada monte de cinzas que se formava ao seu redor, sentia-se recuperando um membro, retomando a forma. A sensação de liberdade voltava gradativamente e tornava-se dono novamente de si. Afinal, quem ditava o que ele precisava ser ou agir? Nunca fora a sociedade, nunca os bancos nem os governos. Ou será que sempre fora e ele nunca conseguir enxergar que não pertencia a si próprio?
Sem arrumar a bagunça da mesa, o homem subiu as escadas e adentrou seu quarto, sentindo o mofo invadir suas narinas. Do lado direito, seu companheiro mergulhava profundamente em seu sono de tarja preta. Deitou-se com cautela e acalentou-se ao lado do seu amor. Bastou um toque para que a represa se rompesse e as lágrimas voltassem a fluir, pondo fim à frágil compostura que tentara construir desde que voltara de sua caminhada noturna. Novamente parecia estar sozinho entre quatro paredes, porém constantemente vigiado por um mundo que o condena, o controla. Abraçou calorosamente o homem ao seu lado e engoliu seus pensamentos, navegando de forma turbulenta em direção ao vazio do sono, onde apenas ele poderia adentrar. Talvez lá existisse amparo; talvez lá existisse compaixão.
Talvez lá existisse esperança.
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Crônica escrita originalmente para o Concurso Literário BAE 2018 - UNICAMP