sábado, 9 de novembro de 2019

Um segundo


Certa tarde, caminhava a passos largos em uma calçada da cidade. Munido de pernas curtas, precisava acelerar o passo para chegar a faixa de pedestre e cruzar a avenida com o sinal ainda verde. Dobrei a velocidade e olhei fixamente para meu ponto de destino do outro lado do asfalto esburacado. Nos meus ouvidos, o pancadão acelerava para acima de cento e cinquenta batimentos por minuto e os meus movimentos de passos acompanhavam a aceleração da música. Era chegada a hora. Meus pés sentiram a sutil elevação do relevo da sarjeta e o próximo contato com o chão me colocaria dentro da maior zona de risco da minha caminhada, a rua. Mas apenas se eu completasse aquele passo. Milésimos de segundo antes, meus neurônios disparam o sentimento repentino de variação de pressão sob a minha coxa esquerda, algo que a pressionava parecia não estar mais lá. Cesso meu movimento, olho para trás e vejo minhas chaves de casa a dois passos de distância; dois passos onde já havia pisado dentro daquela dezena de segundos. Inverto meu corpo, rotacionando meu tronco e alcanço o chaveiro, em um movimento de um segundo e meio. Volto a minha direção original, recupero meu foco e avanço um dos dois passos perdidos. E eis que o segundo passo não se concretiza.

Na esquina, um velho caminhoneiro para à luz vermelha do semáforo. Sua mente vagava quilômetros de distância de onde jazia seu corpo, pensando na família em sua cidade natal. A filha mandara uma mensagem de áudio assustada naquela manhã, com medo do parto que viria na noite seguinte. A gravidez era de risco e o velho motorista sabia que poderia estar próximo de perder a filha e a neta de uma única vez. Distraído, pois, o caminhoneiro sentiu a vibração do seu celular do banco do passageiro. Esticou a mão em busca do dispositivo e o alcançou em alguns décimos de segundos. Um toque na tela e a mensagem aparecera: um spam de uma loja de artesanato, avisando da nova feira da cidade que venderia adoráveis sousplat especialmente para enfeitar a ceia de Natal. Foram dois segundos de decepção e alívio; dois segundos que o semáforo trocara para a luz verde e o caminhão ainda não tinha se movido. A buzina dos carros que o precediam foi como um tiro de carabina, trazendo o velho senhor de volta ao seu caminhão e forçando-o a acelerar o máximo que era possível. Cruzou a esquina em alta velocidade, tentando recuperar os preciosos segundos que perdera em sua solitária preocupação. Em nenhum momento reparara no que poderia haver a sua frente.

Em um hospital no estado vizinho, um bebê nascia. A mãe segurava a criança recém-nascida nos braços enquanto ouvia os seus gritos de dor do primeiro contato com o mundo. O mundo não era para os fracos, isso é um fato, e tanto a mãe quanto a filha sabiam disso como ninguém. As duas trocando olhares era um milagre da medicina moderna e era quase esperado que uma das duas não conseguisse chegar nesse momento. O corpo médico do hospital tinha sido certeiro na cirurgia, e o risco já era muito remoto para as duas vidas que andaram na corda bamba minutos atrás. A felicidade era imensa naquela sala, transbordava e irradiava toda a maternidade. Os enfermeiros comemoravam como em uma final de campeonato, tinham desafiado e vencido a morte, por questões de detalhes e decisões bem tomadas. A mãos do experiente obstetra tremiam como nunca antes, e lágrimas escorriam por suas bochechas, um pouco na margem da ética profissional. A mãe queria mostrar ao mundo que estavam bem e que aquela família estava renascida. Sacou o celular e pediu uma foto. Mandaria para seus amigos, seu marido e, especialmente, ao seu pai que estaria a quilômetros de distância aguardando a notícia. Seria sua felicidade. Com a bateria no vermelho, tirou fotos com o bebê, com os médicos e enfermeiros e gravou um vídeo com os primeiros choros da criança. A tecnologia tem dessas, guarda e compartilha momentos, mas só enquanto a bateria mantêm os aparelhos ligados. E, a um clique de distância de enviar a mensagem ao seu pai, a tela apaga. Teria que esperar algumas horas para comunicá-lo, pelo menos até chegar no quarto onde estava seu carregador. Não haveria problema em esperar para avisá-lo, ela estava bem e a criança já dormira em seu leito. O que poderia acontecer de diferente se a mensagem chegasse agora ou em algumas horas? 

Foi por questão de milímetros e milissegundos. Um caminhão passava em alta velocidade na minha frente. Eu não o vira, assim como ele mesmo não tinha o feito comigo. Meu coração acelerava e o vento quase me fez cair. Foi por um triz. Um detalhe. Um passo. Atravessei a rua com cautela, após o semáforo fechar novamente. Chegaria em casa e abraçaria minha mãe. Chegaria em casa e beijaria meu pai. Bastaria um segundo para que tudo fosse diferente. Um segundo para que o meu mundo se transformasse. Recuperei a calma e prossegui. Prossegui. E assim prossigo.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Liderança, autoritarismo e moscas


O que faz de um time vencedor? Quais habilidades uma equipe deve possuir para se manter coesa e harmoniosa? O que faz uma equipe atingir os objetivos e outra fracassar na estaca zero? Quanto você estaria disposto a pagar para ter as respostas para essas perguntas? O mundo corporativo anseia por lideranças que conheçam a arte de trabalhar em conjunto e gerar resultados. O mercado de coaching atrai milhões de dólares para apresentar aos líderes e aspirantes a líderes as melhores formas de garantir o sucesso de um grupo, do seu time e do seu negócio. Porém, meus caros leitores, digo-lhes que grandes lições de liderança podem ser aprendidas por meio da literatura, disponível a menos de cinco dólares de distância.

O Nobel de literatura William Golding apresentava, em 1954, sua obra prima, uma aula na forma de romance: O Senhor das Moscas. O livro apresenta uma linguagem simples e profunda, como os grandes romances centrais do período entre guerras e no pós-guerras. No entanto, o livro de Golding não contextualiza, não constrói realidades alternativas, não viaja na ficção paranoica presente em outras distopias clássicas; o que o livro propõe é explorar a essência da convivência social humana e sua degeneração de modelos colaborativos e fragilmente democráticos para regimes autoritários centrados na violência e na opressão. O curioso é que o autor decide construir sua obra sobre a mais pura e vil inocência: uma sociedade composta apenas por crianças.

Na pureza infantil, O Senhor das Moscas transpõem o leitor a uma sociedade sem regras em que as crianças, baseadas apenas em uma noção fraca de organização de grupos, devem sobreviver a um ambiente inóspito do isolamento da civilização, em uma ilha deserta. Não aprofundarei em todos os detalhes que circundam a obra pois, como sempre, a leitura na íntegra jamais pode ser substituída por uma resenha superficial, por mais completa que seja. No entanto, existe um ponto nessa obra que chamou a minha atenção, passada a euforia de um final tenso e um pouco ex-machina: como a liderança democrática e o autoritarismo possuem uma fronteira tênue.

Liderar é, antes de mais nada, guiar e orientar. Um líder deve transmitir confiança e demonstrar empatia, de forma que o time possa ter um alicerce rígido de sustentação e também uma figura que compreenda os anseios individuais dos liderados. Grupos de crianças costumam possuir entre elas líderes eleitas por aclamação, seja no parquinho ou na sala de aula. O líder da turma de crianças é aquele que se destaca por sua comunicação e capacidade de ser a referência, mas falha na empatia e em garantir a coesão do grupo. Na história de Golding, tenta-se sustentar o convívio em bando em estratégias amplamente democráticas, com assembleias e reuniões, porém com um líder imaturo; logo diversos problemas começam a aparecer. Uma lição de liderança é apresentada ao longo do declínio do grupo, onde falhas e mais falhas nas frágeis regras que tentam guiar aquela tribo se desmantelam. É na insegurança, no medo, na expectativa vazia de um prazer instantâneo que nasce o modelo autoritário, gradativamente ganhando seu espaço e dominando o grupo de crianças. Na figura do caçador, são postas em cheque as formas de representatividade vigentes e a liderança entra em disputa.

O foco da crítica d'O Senhor das Moscas é, certamente, a falência de algumas democracias liberais que estavam em ascensão no período pós-guerra, algo que se enxerga também na deterioração de diversos regimes democráticos nessa segunda década no século XXI. No entanto, a lição pode ser também individual e, com o poder de abalar estruturas que só a literatura pode trazer ao leitor, ensinar como podemos construir nossa base de liderança para que nosso time esteja sempre coeso e alinhado rumo a um objetivo. A aflição da organização frágil do bando de crianças pode ser um espelho para nosso papel como líderes e influenciadores de pessoas.

Aprender com casos de sucesso, como os coaches propõem ao redor do planeta, é bastante eficiente e ilustrativo para elucidar aspectos básicos de liderança. Mas a imersão que a literatura proporciona a um leitor atento faz com que você se torne parte da trama, em que você é o líder, você fracassa e você aprende com os erros, tudo em um ambiente controlado da imaginação ficcional das narrativas. Grandes mestres têm muito a ensinar e grandes discípulos podem sempre superá-los de abrirem a mente e subirem em seus ombros.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Hipocrisia e duplipensamento



É provável que a hipocrisia tenha acompanhado as vidas humanas desde que as relações sociais começaram a se estabelecer entre os primeiros hominídeos da nossa espécie. O ato de se comunicar, seja ele por escrito, falado, por gestos ou mímicas, trata-se de um mecanismo de transferência de narrativas entre indivíduos, uma forma de passar determinada sequência de informações codificadas para um interlocutor capaz de compreender seu significado. A comunicação abre espaço não apenas para o relato de fatos e descrições da vida e do universo concreto ao redor, mas de realidades subjetivas metafísicas e estruturas narrativas não fundadas em objetos, criaturas ou situações que foram de alguma forma captados do mundo externo pelos sentidos humanos. A capacidade imaginativa e de síntese do irreal na forma de mecanismos de comunicação pode ter sido um dos principais impulsionadores da vida em sociedade. É dessa base que surgiram as religiões, estruturas hierárquicas e mecanismos de ordem social, como moedas de troca e sistemas de numeração. No entanto, a comunicação pode ter múltiplas funções além de um vetor de transferência de dados, sendo, desde os primórdios, uma das principais formas de entretenimento de aglomerados humanos. Contos reais ou fantásticos provenientes das primeiras civilizações mostram como a capacidade de criar desenvolveu-se ao longo da história, seja para relatar uma caçada a um grande predador na savana ou espalhar notícias falsas para destruir a reputação de um profissional renomado. A mentira nos segue e nos molda, nem sempre de forma consciente, nem sempre partindo de nós mesmos. Quando nos expressamos em desacordo com as nossas crenças, quando aconselhamos algo que não faríamos de forma empática, quando moralizamos situações em que nossa moral não se enquadra utilizamos a mentira como um véu: tentamos cobrir a realidade utilizando os deslimites que os artifícios de comunicação nos permitem desfrutar. 

Quando George Orwell descreve os princípios básicos do Partido autoritário do Grande Irmão, na obra 1984, ele centraliza como um instrumento chave de controle social o chamado "duplipensamento". Em suma, segundo as premissas do Partido, o duplipensamento é aceitar sem identificar contradições lógicas duas lógicas de pensamento essencialmente contraditórias. Receber informações que parecem estar em completo desacordo lógico e acatar ambas como verdades plausíveis. O duplipensamento é uma das bases de controle social do partido pois permite que absurdos transpassem as barreiras lógicas e possam ser justificados com qualquer malabarismo falacioso. O contraste básico entre o duplipensamento e a hipocrisia mostra-se no caráter consciente da oposição de ideias: o crer e o agir do hipócrita são claramente antagônicos enquanto no duplipensamento o agir é dualista e aquele que o pratica não identifica incoerência em tais atos. O duplipensamento é poderoso pelo seu caráter de aceitação passiva do contraditório, sem padecer na cova do hipócrita. Duplipensar é aceitar, por exemplo que a soma de duas unidades são dois e, ao mesmo tempo, a soma de duas duplas são cinco. De forma mais sutil, duplipensamos em muitos momentos do cotidiano, quando abrimos mão da análise lógica e crítica para caminhos mais fáceis de compreensão do mundo. Um cristão que milita favorável a pena de morte pode ser hipócrita a ponto de não ser de fato um cristão ou pode usar de forma inconsciente o duplipensamento, realmente crendo nas duas vertentes, convivendo com a lógica contraditória inerente a elas. 

Não é preciso divagar para entender o quanto a Londres do Grande Irmão se mostra nos dias atuais, em um sítio constante à democracia e na ascensão do obscurantismo de massa. Utilizando a confirmação como viés predominante em narrativas recheadas de teorias de conspirações globais, o duplipensamento aflora. Quando a lógica cai para planos inferiores, a hipocrisia perde espaço por se tratar de algo mais facilmente refutável, pois nela o que é dito levianamente não existe nem mesmo na realidade paralela daqueles que os proferem. No entanto, pessoas com duplipensamento são fundadas sobre a rocha da certeza, da absoluta certeza de que não há problema de tratar como lógica a anti-lógica. Assim como dois mais dois são cinco, o caminho para a democracia plena é a repressão, o caminho para se libertar é a se submeter, o caminho para o amor eterno é o ódio ao diferente e o caminho para o conhecimento é a negação ao conhecimento. Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão.

Numquam obliviscar, Ignorância é Força.

domingo, 12 de maio de 2019

Como proteger o poder do povo?


Dentro da cabine de votação somos apenas um. Não importa sua renda, sua cor, sua idade, sua origem, seu gênero. Na frente da urna sua decisão tem o mesmo valor que a de qualquer outro cidadão, do empresário ao operário. O sufrágio universal garante que o resultado das votações reverbere a vontade da maioria, ao mesmo tempo que a base institucional garante a não supressão de vozes minoritárias. Dessa forma, a sociedade democrática se mantém estável e evoluindo, promovendo um debate saudável e, dentro de suas limitações, permitindo o progresso na qualidade de vida dos seus atores sociais. A democracia garante a pluralidade de ideias e estilos de vida ao mesmo tempo que abre espaço para o debate e o contraste de ideologias. Entre elas há sempre disputas de interesses e, no final, chegam a um ponto comum de equilíbrio, composto por concessões feitas por ambos os lados. As regras explícitas e implícitas do jogo democrático são os remos do estilo de vida ocidental e são nelas que baseiam-se os princípios de direitos humanos universais assinados e adotados pelas principais democracias do planeta. No entanto o que se vê é um esforço multilateral para fragilizar e desestabilizar as frágeis bases sobre as quais a democracia se sustenta, uma briga de poder e hegemonia que resulta em uma polarização cancerígena e destrutiva para aqueles grupos que decidem comprá-la.

As democracias são regidas por regras escritas e também por acordos sociais não escritos. A constituição é a regra básica da democracia e  serve como o carro guia dos valores morais e humanos da sociedade da qual ela é a carta magna. As leis que regem os Estados são os limitantes absolutos do jogo político e que evitaria, em teoria, exageros danosos por parte dos integrantes das diversas cúpulas institucionais. Porém, vale destacar que são as regras não escritas que permitem de fato a saúde do sistema democrático. Partidos políticos, organizações sociais, veículos midiáticos e grupos empresariais são importantes peças no tabuleiro democrático e que apresentam papeis que nem sempre são determinados pela constituição. Os partidos políticos possuem líderes bem articulados que concorrem a cargos de alta patente eleitoral; a mídia denuncia abusos de poder e dá voz a pluralidade de ideias; as organizações sociais e empresariais protegem os interesses de grupos de cidadãos da sociedade civil. Este frágil equilíbrio institucional é determinante para a manutenção do Estado democrático e tudo leva a crer que é muito fácil desbalancear essas relações de influência, com danos expressivos.

As redes sociais, por exemplo, mostram claramente o que um novo agente social é capaz de fazer com os elos democráticos. Desde a sua popularização, Twitter, Facebook, YouTube, Whatsapp etc. são tidos como fontes centrais de disseminação de informações sem qualquer filtro institucional. Não há uma redação jornalística ou um time de repórteres para avaliar a divulgação de quaisquer informações com base no bom senso democrático e os indivíduos munem-se do poder destrutivo de uma mídia desregulada. O resultado é a pós-verdade em uma casca de noz: a quantidade de informações disponíveis torna humanamente impossível a distinção entre os fatos e a ficção e fortalecem narrativas de nicho que transcendem os acordos implícitos das democracias. A ascensão a extrema-direita pelo mundo é um reflexo de como a mídia paralela empodera outsiders com desprezo absoluto pelas instituições estabelecidas e semeiam o caos nas democracias ocidentais.

Outsiders em ascensão flertam com o autoritarismo em diversas escalas e ameaçam a paz democrática ao desdenharem o establishment sem um projeto robusto de fortalecimento dessas instituições. O autoritarismo se inicia com a negação da política dita tradicional, utilizando até os limites da constituição para atropelar os adversários, com golpes de poder totalmente embasados em premissas legais mas que ferem os acordos democráticos não escritos. O outro passo é sua expansão dos ataques ao judiciário e tentativa de tomar as rédeas das instituições que legitimam absurdos legais. Por fim, tratar seus oponentes ideológicos como inimigos mortais que devem ser eliminados, construindo uma rede de calúnia e destruição de reputações a qualquer custo, envenenando o poço e atacando pessoalmente aqueles cujas opiniões são minimamente divergentes.

Esse flerte pode ser visto em países como o Brasil, EUA, França entre outras democracias que desenham caminhos muito similares aos traçados por Venezuela, Turquia, Hungria, Russia etc. A destruição das bases democráticas de forma gradual é a principal forma com que elas morrem, não mais com golpes de estado ou intervenções militares sangrentas. A grande dúvida é como proteger esses regimes de caírem em desgraça. O primeiro passo pode ser a identificação por todos os agentes sociais e políticos de que essa ruína está em andamento, evitando que figuras autoritárias prosperem no caos. O fortalecimento do coletivismo e empatia devem ser mecanismos incentivados pelos grandes influenciadores de massa assim como a busca pela verdade e contorno do obscurantismo. No entanto, as grandes bolhas sociais virtuais podem ser a principal barreira dessas ações de contingência.

O pensamento crítico está fora de moda e os extremos parecem cada vez mais distantes. Em um oceano de informações as democracias naufragam e são muitos os falsos capitães assumindo o leme de encontro ao iceberg. É dever de todos os tripulantes tomar o controle e evitar a tragédia ou apenas tocaremos os melancólicos violinos enquanto os privilegiados se salvam e todos os outros se afogam.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

As bases das sociedades



O que aconteceria se, subitamente, a espécie humana desaparecesse da face da Terra? O que de fato perpetuar-se-ia existindo no nosso planeta mãe? As milhões de toneladas de plástico que lançamos por ano nos oceanos e os grandes centros de concreto continuariam sendo uma realidade palpável para os seres que continuassem vivendo. Nossas fazendas e pecuária seriam remodeladas com o fim dos agrotóxicos e intervenção das colheitadeiras em suas vastas extensões pelo globo. Algumas bactérias talvez voltassem a prosperar, outras espécies domésticas talvez não tivessem a mesma sorte. Mas o que seriam das culturas, das religiões? Grandes organizações como a Apple e a Microsoft ainda existiriam? Qual seria o destino das identidades nacionais, das organizações políticas, do capitalismo, do socialismo? Esses questionamentos podem ser o passo inicial para uma discussão sobre o que é factualmente, fisicamente real e o que existe apenas em um imaginário coletivo humano, fruto das ficções imaginativas de uma sociedade de primatas que convive unida a alguns milhares de anos.

Especialistas na história do desenvolvimento da espécie humana comumente atribuem a capacidade de construir narrativas como o principal elemento na evolução da espécie e que garantiu o grande sucesso que os Homo sapiens obtiveram desde o seu surgimento, nas savanas da África central. Essas narrativas poderiam ser das mais simples, que garantiriam a sobrevivência do indivíduo (como associar um arbusto se movendo com um possível predador na espreita e, com essa narrativa em mente, se preparar com antecipação aos movimento da criatura) ou das mais complexas, que manteriam a coesão social (como o poder sobrenatural para alguns membros da tribo, proporcionando a capacidade de comandar e ditar as regras de um agrupamento humano). Essas características moldam a forma com que o ser humano convive em sociedade e é marcante em nossa espécie até os dias atuais. Grandes empresas, Estados, nações e religiões compartilham do mesmo ventre da Ficção Científica, teorias conspiratórias e hipóteses acadêmicas: são construções narrativas que as pessoas criam diariamente como tentativas de explicar e organizar ideias e, indiretamente, os agrupamentos humanos no qual elas se encontram.

Um exemplo característico é o dinheiro. Moedas como o Dólar, Euro e Real apresentam valores relativos entre si, que caracteriza, entre outros, o poder de compra de cada possuidor e visa regulamentar o comércio internacional. No entanto o dinheiro em si não possui valor. Não é como uma fruta, com seu potencial calórico que é parte da sua estrutura física, ou uma pedra, cujo peso e forma existem, quer você queira ou não; o dinheiro possui aquele valor única e exclusivamente porque criamos uma narrativa em comum que atribui a ele determinado poder de troca e, como sociedade, todos adotamos essa narrativa como verdadeira. De forma similar podemos expandir esse raciocínio para os esportes, para as nações (afinal, o que é a crença nacionalista se não a adoção de uma narrativa que delimita ficcionalmente as pátrias) e também para os regulamentos e legislações.

De fato, as narrativas são mais influentes para os humanos da modernidade do que, digamos, os "fatos reais". Pessoas e sociedades humanas adotam para si diversas narrativas que convivem em harmonia, nem sempre de forma lógica, há de se destacar. Posso ser cristão e cientista, ambientalista e nacionalista, posso ser de direita e democrata. Ou todos esses juntos! Narrativas comuns garantem que as sociedades se mantenham coesas, como a crença em um líder ou em uma divindade, e também podem ser (e são) utilizadas para extorquir e manipular uma quantidade igualmente grande de pessoas. Tudo depende dos elementos narrativos que as compõe.

Discute-se que vivemos na era da pós-verdade, onde as narrativas têm maior poder do que os fatos em si em sua forma bruta. No entanto, uma vertente do pensamento aponta que essa era sempre existiu, desde a Revolução Cognitiva, portanto nunca houve uma época na qual essa tal verdade era regra, na qual ela guiava a sociedade humana. O que há hoje é uma overdose de Narrativas, exigindo dos indivíduos uma análise muito mais criteriosa dos seus elementos do que nunca antes. Talvez, como alguns afirmam, além das capacidades evolutivas desenvolvidas ao longo da existência da nossa espécie. Um grande debate se levanta, uma vez que temos consciência da volatilidade e fragilidade das bases narrativas que sustentam nossa sociedade e nossos indivíduos: como evitar que não sejamos sufocados por essa infinitude de narrativas? Ou ainda, como filtrá-las sem destruir as sociedades humanas como as conhecemos?

O fato é que a as rachaduras estão aparentes e as bases narrativas que nos guiaram na virada do século estão próximas a ruir, seja pelos avanços da tecnologia (computação e biomedicina) quanto pela fragilidade das estruturas de poder nas quais éramos imersos. Quais Narrativas, portanto, nos guiarão pelos próximos cinquenta anos?

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Oceano


A pontualidade do sino da basílica era sempre incontestável. No exato momento em que os ponteiros se unem aos céus, doze sonoras badaladas reverberam-se sob o sol em seu apogeu e a cidade é alertada que metade do dia já se fora. Toda manhã, a velha freira segue uma rotina meticulosa: inicia-se após seu café matinal, com o cântico de seus salmos diários e preparação do altar para as celebrações do dia. Faltando vinte minutos para as onze, a senhora parte para a preparação da sopa, de acordo com o que manda o cardápio recebido pela pastoral dos desamparados. O preparo é finalizado após uma hora e dez minutos, tempo o suficiente para que ela suba até o campanário e encha a moderna cidade com os gritos do bronze cintilante. A sopa então é servida aos abrigados nos fundos da catedral sendo o próprio desjejum vespertino da senhora que o preparou. Tudo conforme planejado, sempre regrado e seguindo a palavra. Uma vida de privações e fé absoluta.

Ao ouvir o sino ressoando, a jovem olha aflita no relógio para confirmar o que seus ouvidos negam-se a acreditar. Estava atrasada. Estava sempre atrasada. Entrando no táxi, tinha menos de trinta minutos para cruzar a cidade e chegar nas portas do cliente. O negócio era importante para seu futuro e um vacilo qualquer poderia colocar em risco toda a carreira brilhante que a jovem engenheira sempre sonhou. No entanto, o trânsito é o mais cruel algoz dos retardatalhos e a passageira tinha picos de ansiedade a cada novo engarrafamento que aparecia em sua frente. Era o caos, um tornado de acontecimentos. Uma vida de oportunidades e nervos a flor da pele.

A modernidade líquida é um imenso oceano. Uma vastidão de oportunidades e de mistérios, com tempestades avassaladoras e ventos capazes de guiar até os menores dos barcos para alguma direção. No meio da imensidão das águas modernas, a atenção volta-se para tudo e, ao mesmo tempo, perde-se de maneira muito veloz. Enquanto enxergar as margens pode limitar nossas destinos, o horizonte aberto é capaz de angustiar até as mentes mais centradas e determinadas. Afinal, seja na superfície, seja nas profundezas, onde vale a pena pular do barco e ousar a nadar?

Talvez a mente humana não seja capaz de absorver todas as informações que é submetida todos os dias, a todo momento. Litros e litros de dados de fontes variadas inundam o cérebro e dar atenção para cada um deles pode ser uma tarefa além das capacidades de uma pessoa média.  Filtrar toda essa enxurrada poluída é um grande desafio para manutenção da sanidade e o ponto de partida pode ser a compreensão do que está efetivamento sob possível controle e o que será incapaz de ser alterado. Lidar com os atingíveis e dedicar menos esforço cognitivo aos distantes pode garantir um mastro sólido para ser direcionado pelos ventos incertos do futuro. Esse processo, no entanto, apenas pode ser realizado quando lança-se mão do poder humano de escolha. Escolhas e abdicações, os mais dolorosos de uma vida de liberdades. Dádivas e maldições do livre-arbítrio.

As decisões são os lemes, elas guiam, elas levam a um caminho. Uma vida de privações de liberdades pode significar uma existência sem escolhas e, por consequência, livre das frustrações acarretadas por elas; gozar de uma vida de liberdades pode significar um cotidiano atolado em angústias e arrependimentos, pois cada nova escolha é uma renúncia a tudo que um dia poderia ter sido. Escolher quais marés navegar pode nos guiar para o paraíso ou para o abismo enquanto um rio, sem decisões de rota, tem sempre um curso fixo, com nascente e foz. No oceano da modernidade, as escolhas pesam pois elas estão cada vez mais presentes e necessárias.

Ao final da tarde, a freira arruma seu quarto, separa suas novas roupas de cama, reza o rosário e descansa, pensando na vida eterna. No início da madrugada, a jovem desliga o celular, tomas suas cápsulas tarjadas e dorme, pensando no dia de amanhã. Ambos os pares de olhos fechados significam que o dia já se foi, e as experiências vividas jamais serão recuperadas ou revisitadas. São essas experiências as ilhas em que o barco das nossas vidas deseja atracar, portos seguros no oceano; são essas experiências que, no final das contas, fazem com que navegar valha a pena.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Cegueira


Criaturas obscuras circundam o lado de fora das janelas cerradas. O medo e a paranoia tornam abafado o lado de dentro. Uma visão, um simples relance tem o poder de tornar as pessoas ensandecidas, capazes das maiores atrocidades a si e aos mais queridos que estejam em seu caminho. Não se sabe a forma que essas criaturas têm, muito menos de onde vem o poder de adentrar na mente das pessoas e causar tal deterioração. Os mais crédulos não arriscam, os céticos duvidam da existência; entre a paranoia e o risco, os sobreviventes se fecham em suas campânulas escurecidas, sem contato com outros, sem visão do mundo externo. O medo se perpetua e vence.

No lado externo, cavaleiros de olhos vendados encaram o inimigo oculto. Os supostos cruzados de vendas nos olhos buscam combater os maiores males que já infligiram a sociedade humana. Sem direção, mas com um claro objetivo, os cruzados se armam contra o gigante que esperam encontrar, como Dom Quixote e seu épico combate contra os moinhos de vento. Do lado interno, surgem boatos e conspirações que alimentam cada vez mais o terror e o medo que impedem as pessoas de buscarem novos ares. A bolha negra e ofuscante encolhe-se e aperta, sufocando os vestígios de sanidade que qualquer um possa ousar em manter. Dentro dela, perpetua-se a ideia de que nada existe no exterior senão a morte e o apocalipse; nada é mais assustador do que aquilo que não se pode ver; nada se quer tanto evitar do que o próprio desconhecido.

Diz-se que a ficção e a vida compartilham de uma sutil conexão que, em momentos delicados, podem se confundir a ponto de tornarem-se indistinguíveis. Coberto pelo véu do obscurantismo, grandes aglomerados humanos são capazes de cegarem-se deliberadamente por medo do que não se compreende. Uma perigosa cegueira moral que é potencializada em comunidades de pessoas demograficamente separadas, buscando confirmar o seu viés lógico a todo custo, nem que isso demande de uma vida de privações e isolamento. São pelas janelas que a luz da realidade pode entrar, esclarecendo o ambiente e permitindo que se descubra regiões antes sob a penumbra. Janelas que permanecem fechadas com barreiras que evitem o contato com o diferente, com o novo, com o que pode causar um dano imensurável, mas que nunca foi visto pelos vivos e nunca pode ser descrito com precisão.

A coragem e a garra dos cruzados são admiradas pelos isolados da luz, passando a torná-los heróis capazes de um poder e influência jamais imaginados para tais pessoas. A conspiração ganha, a ilusão domina e todos passam a ser guiados por cegos em um mundo multicolorido. A luz capaz de direcionar e esclarecer se encontra totalmente coberta. Apenas as conversas com os iguais mantêm e alimentam a possível ilusão, sem nenhum deles de fato conhecer a criatura que os assombra.

Uma batalha se instaura: uma guerra pela liberdade, pelo fim do medo, da paranoia. Para tal, o trajeto é árduo e as águas são tortuosas. No entanto, deve-se ouvir, ouvir muito bem. E quando chegar a hora, no momento em que tudo que que deveria ser ouvido foi previamente escutado, deve-se abrir os olhos. Só assim é possível obter a direção correta.

Só abrindo os olhos que se pode enxergar as verdadeiras cores do mundo.