quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Retrospecto - Diário da Quarentena

O amor é amálgama. Nos versos de Camões, "transforma-se o amador na cousa amada [...], em mim tenho a parte desejada". Na mecânica, uma liga entre dois sólidos não é possível sem energia. Pode ser energia térmica, que arde e aquece até derretê-los. Em um novo estado, as diferentes matérias combinam-se em como líquidos, para depois retornar ao sólido em uma nova composição, única e unida. Pode ser também energia mecânica. Nesse caso, é necessário atrito, muito atrito ou ainda choque, compressão e estresse dos materiais. Isso pode os fragilizar, alterar suas propriedades fundamentais e criar pontos de tensão para possíveis rupturas no futuro. A dor e o ardor que transmutam-se na tábua de esmeralda do amor foi genialmente explorado pelo poeta português: como se pode fazer bem se tão contraditório é?

Contraditório e romanesco foi o ano de 2020. Um ano que colocou o viver sobre uma nova perspectiva. O viver e o conviver. O efeito estupefacente da pandemia expôs as entranhas do sistema social sobre o qual o mundo boia, sobre o qual a frágil e vulnerável raça humana tem empilhado os maiores feitos ao longo dos séculos. A morte, o caos e a solidão mudam a forma das pessoas verem sua própria existência; mudam a forma das pessoas encararem a realidade que a cercam; mudam a forma de prospectarmos e olharmos adiante. A morte coloca tudo em perspectiva. Ela nos custa tudo, custa a vida. Para muitos, foi o que definiu o início da nova década.

No entanto, existe uma palavra melhor para definir o ano pandêmico: o estro dos grandes poetas, o "não querer mais que o bem querer". 2020 pôs o amor à prova, em escala global. O que foi posto em cheque não foi o amor poético e romantizado, aquele amor dos casais apaixonados e dos mestres da Academia de Atenas. A humanidade teve que encarar o amor real e pragmático, aquele que traduz-se em atos concretos, a ponta de lança das relações humanas. O amor que colocamos à prova foi o amor cristão original, o amor de caridade e entrega, a fraternidade em sua essência mais pura, o sacrifício pessoal na cruz para a salvação dos outros. É fazer valer, como sociedade, o artigo terceiro da declaração dos direitos humanos.

As escolhas se apresentavam na frente de cada um, amar ou não amar, a cada dia. O ato de isolar-se para proteger; o ato de privar-se do prazer para que se fosse permitido aos outros viver; o ato de abrir mão da alegria instantânea para que ela fosse compartilhada no futuro. Doação do imediatismo, doação do próprio ego. Essa foi a essência do amor pragmático de 2020. Muitos tiveram êxito, muitos fracassaram. De qualquer forma, ele transforma. Transformou as amizades, separou quem ama de fato e quem se ama de fato. Transformou as relações pessoais, valorizando o caloroso dentro do frio isolamento. Transformou a caridade: não se faz por alguém, se faz por todos. 2020 mostrou, acima de tudo, se estamos preparados ou não para amar.

Na pandemia, vemos nós próprios nos outros. É mais um poder do amor, nas palavras do poeta lusófono: um claro espelho, onde no outro vereis a vossa alma. Uma mistura de sentimentos que só faz sentido quando vivido e partilhado coletivamente. Passamos e estamos passando juntos pela avalanche, por mais que existam gigantes rolando pedras pela encosta para tentar nos derrubar. Aos poucos que ainda optam por amar, que 2021 traga o sino da esperança ao campanário do carneiro. De 2020, fica a saudade, principalmente daqueles que se foram, literal e figurativamente. Segundo Camões: "Enquanto houver no mundo saudade, quero que sempre seja celebrada".

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dissonante - Diário da Quarentena

 

Não à toa aquele era chamado Pavilhão de Aurora. Os vitrais prismáticos ao leste refletiam o raiar do amanhecer, de forma que o seu interior enchia-se de uma paisagem caleidoscópica de cores e imagens abstratas. Nada como direcionar de forma correta os raios solares para se ter um dos mais belos shows de luzes, causando inveja a qualquer diretor da West End. O espectro de cores invadia o palco do pavilhão, onde a pianista dedilhava. Era um espetáculo passageiro, menos de uma hora durante a alvorada. Sabendo disso, era nessa hora que ela entoava suas bachianas. De fato, ela apenas repetia inúmeras vezes a introdução do segundo concerto de Brandenburgo. Segundo a tradição austríaca, quando Bach a compôs, as estrelas se puseram a dançar no céu a valsa do quarto dia. As notas ressoavam nas paredes, as luzes e a música entrelaçavam-se como amantes platônicos, apaixonados e distantes, completando-se e jamais se tocando. No palco, a pianista solitária acertava cada nota, cada tom, cada tempo. Transbordava-se de êxtase em cada arpejo, e subia de tom como na escadaria de Jacó. Estava solitária no palco. Estava solitária em todo o teatro.

Naquela hora deveria ocorrer o concerto da alvorada. No final do ano, tocavam-se bachianas intercaladas com mestres russos, compondo a temática natalina da casa. As manhãs eram cheias de energia: o canto dos instrumentos, o espetáculo celeste e o calor do público compunham a tríplice. A pianista não se apresentava nesse horário, era exclusivo para a orquestra dos grandes mestres. Ela ainda não fazia parte desse seleto grupo e talvez nunca fizesse. Seu coração vivia nas teclas do piano como protagonista de sua existência e assim queria que ele fosse ouvido, sozinho, para encanto de um público entorpecido pelo soar do encordoamento sobre a tábua harmônica. Admirava os grandes solistas, os mestres do dedilhado e discípulos de Beethoven, aquele que ouvia com o tato. Poucas foram suas apresentações como vedete, em geral a um público diminuto e em horários pouco nobres. Minha nossa, mas como era diferente tocar sob o nascer do sol! Era ele, o astro de Hélio, o único que poderia roubar-lhe o protagonismo. Era como banhar de cristal uma escultura de um escultor barroco, preservando-a dos olhares alheios que a corroem. Tocava, então, para a plateia vazia.

Entrava no teatro ainda durante a madrugada, conhecia o macete para destravar a porta dos fundos sem precisar da chave. Tocava para ninguém, sempre as mesmas notas, todas as manhãs desde aquele outro dia. Tocava, na verdade, para o dia que raiava. Era a forma que tinha de unir-se ao sol e buscar forças no calor que ele emanava. Naquele outro dia, tudo lhe faltava: energia para sair da cama, motivação para dar passos, esperança de que o poço tivesse um fundo. Agora tocava, portanto, para o grande astro, que lhe enviava a mais bela luz para compor o espetáculo da manhã, cuja bachiana sonorizava a amálgama perfeita dos sentidos. Aquele outro foi seu dia da Normandia, o seu ataque final ao inimigo interno. Suas mãos tremeram quando levantaram o tampo daquele piano sobre o palco pela primeira vez. Havia meses que não tocava nenhuma nota, e as primeiras soaram como agulhas sobre uma ferida aberta, sem anestesia, sentindo suturar de forma pouco usual a úlcera em seu peito. Dentre todos os motivos, porém, em todas as manhãs ela tocava para ele. Sim, era para ele que tocava.

Quando ele a levou à primeira aula de piano, mal conhecia o instrumento. A menina estava apaixonada por aquelas teclas bicromáticas desde que o vira pela primeira vez em uma loja da cidade. Insistiu, e ele a apoiou. Ao longo da trajetória, ela pensou em desistir inúmeras vezes. Não tinha destreza nos arpejos e faltava-lhe dedos para tirar Schubert do papel. Ele a ensinou a fechar os olhos para os outros e atiçar os ouvidos aos sons das cordas do instrumento. Era o dedo que faltava à ela. A jovem pianista não pode se despedir daquele que esteve ao seu lado na fila das audições e na primeira fila de seu solo de estreia. A última fila que estiveram juntos foi a da UTI, após dias de espera por uma vaga. O mundo estava em colapso, o sofrimento daquele que amava dilacerava seu brio, sentia-se indefesa, impotente. O poder que sentia ao dobrar o piano às suas vontades era uma ilusão que não se traspunha à vida real. Ele sofria, faltava-lhe ar. Antes de assumir seu leito, disse à filha que guardasse suas lágrimas. Elas poderiam lhe ser úteis no futuro.

Naquele outro dia, quando viu o sol atravessar os vitrais sobre a plateia vazia pela primeira vez, já se fazia um mês que seu pai partira. Fora levado por aquele que paralisava o mundo. Para a pianista, no entanto, era a tristeza que a paralisava. Uma tristeza sem lágrimas. Apenas o mais profundo pesar e escuridão de pensamentos. Naquele outro dia, não saíra de casa com o intuito de renascer, mas de abandonar sua existência. Tiraria sua vida sobre o palco, como a apoteose do seu drama, o príncipe da Dinamarca escolhendo não ser. Naquela madrugada, com os comprimidos no bolso, abriu a porta dos fundos e adentrou o pavilhão como Anna Karenina, presa em seus próprios sentimentos de pesar. Seu posfácio precisaria ser musicado conforme os mestres a ensinaram. A arte, que é a libertação, pode ser o sofrimento e a desilusão de uma alma despedaçada. As primeiras notas saíram em um tom estranho, fora da bela forma que o alemão a compusera. Tecla após tecla, som após som, dor, dor, dor, dor. 

Hoje completam-se alguns meses daquele outro dia. Quando as luzes invadiram o palco, as notas, finalmente, entraram em harmonia. Foi aí que vieram as lágrimas. Represadas, vieram como seu pai havia previsto em seu último olhar, seu último sorriso. Vieram e lavaram. A sua tríade se completava: luzes, sons e lágrimas. Tocava a introdução, repetia e chorava, repetia e chorava. Quando a alvorada enfim se foi, levantou-se e saiu do palco. Voltaria no dia seguinte, e no próximo, e no posterior, até o dia de hoje e além. As lágrimas a tempo já secaram, o seu espetáculo da manhã era, agora, sua dose diária de morfina. Finalmente, hoje, tocava para si mesma e, sob a benção de Aurora, Hélio e Bach, atravessava o mundo dissonante, onde a dor, o medo e a esperança formavam a tríade da realidade. Ao final do amanhecer, fecha o piano e agradece ao público oco. Eles se veriam no dia seguinte.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O sino - Diário da Quarentena

 

Espera-se ansiosamente a quinta badalada. Isso representa, para o jovem operário, o fim de sua jornada de trabalho. Desde a primeira hora, na verdade, nada ocupa mais a mente do rapaz do que a perspectiva do fim. É na quinta badalada que seus problemas se encerram, se guardam nas gavetas do vestiário trancadas à chave. Era o milagre do sino. Na quinta badalada o rapaz estaria livre. Livre para que, na verdade? Livre, apenas. 

É lá fora que está a vida, não aqui. Lá as pessoas são alegres, sorridentes. Lá os casais trocam confidências e se amam despretensiosamente, sem regras de comportamento ou metas a bater. É lá que podemos dançar, beber, sair de nós e do nosso mundo, migrar para onde o tempo e o espaço não fazem tanto sentido. Aqui é o martírio, a prisão de Ícaro. A quinta badalada são as asas. Asas da liberdade e da morte.

Lá fora também está a morte. A violência, a dor. A dor é o caminho tortuoso. Morte sem dor pode ser um suplício, um lapso da existência em ruptura. A dor é a cruz. O poeta de Moçambique dizia que o mundo seria melhor se todos os mortos tivessem sido enterrados sorridentes. A morte é um processo degenerativo, morre-se em etapas. Primeiro morre a confiança, o afeto; depois se vão os amigos, a família, as âncoras; vão-se as horas, os dias, as luas e as luzes; por fim se vai a esperança e a fé. Quando nada mais resta, padece, finalmente, o corpo e a existência. Nesse processo, a dor toma o lugar do alegria; no leito derradeiro sobram-se poucos sorridentes. 

Os olhos jovens, no entanto, pouco enxergam da dor do oeste. O epílogo da existência é uma preocupação longínqua. A esperança arde, como as chamas do sexto círculo, chamando-os aos pecados do mundo que os aguardam. O trabalho é a prisão; o sino, a libertação. Esse é o dilema da esperança: enquanto ela se faz presente, o presente torna-se transitório. Em um presente transitório, pouco se faz para viver nele, no aguardo do futuro ideal construído no amálgama da esperança. Ela dá energia para prosseguir, suportar, mas pouca voz de comando à ação, à transformação.

O sino é a esperança. Tudo estará melhor após a quinta badalada. Basta o sino ressoar, chegar aos ouvidos dos trabalhadores, que a vida se inicia. O que fazer antes do sino? Não há antes. Há apenas o depois. E o mesmo se repete no próximo dia. E no seguinte. E no seguinte. A crueldade da esperança é a transitoriedade. Hoje ela é uma rocha, amanhã deve se metamorfosear para permanecer firme. O sino irá tocar, a liberdade chegará. Mas até o sol nascer mais uma vez. Na nova alvorada, espera-se o metal ressoar mais cinco vezes. 

O jovem caminha para casa, era o sexto badalar do sino. Sobe as escadas do prédio quando ouve-se a sétima. Come na oitava, banha-se na nona. Olha a noite escura pela janela, ouve-se os gritos distantes da cidade, décima. Na décima primeira o sono assoma-se. No abrir dos olhos, a esperança renasce, os grilhões estão novamente selados até a quinta badalada. Na quinta badalada o rapaz estaria livre. Livre para que, na verdade?

Livre, apenas.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Curtas I - Diário da Quarentena

 

Óculos com grau

Uma das minhas melhores aquisições recentes foram as lentes com grau para meus óculos escuros. Me permitiram ver com nitidez o azul da alvorada, o degradê do crepúsculo, experiência que me era apenas parcial antes delas. Nada me faz sentir mais pertencente a este mundo do que o raiar da aurora, que, de tempos em tempos, precisa-se tornar presente para recarregar minhas energias. Não só ela, na verdade. Um banho de descarrego no mar; a brisa fresca vinda do horizonte; a paisagem natural das montanhas. Preciso de um pouco de tudo isso. As novas lentes escuras me fizeram ver o que antes eram luzes e contornos borrados. Costumo ficar com elas até a noite cair por completo, observando o pôr do sol da varanda de casa, por de trás dos prédios. Outro dia me questionaram como eu enxergava à noite com elas. Olhei seu rosto com uma expressão de paz, apenas eu entendia. Pena que não conseguiu ler meu olhar, quando lhe dei a resposta.

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Invisibilidade

O livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão me mostrou como somos entregues a um mundo pré-moldado e acabamos nos encaixando e sofrendo com relações materiais e sociais que nos envolvem. Um soco no estômago! Eurídice e muitas mulheres poderiam ter sido, mas não foram, engolidas pelo padrão que esperavam delas, tornando-se invisíveis. Metaforicamente, a invisibilidade pode ser definida como tudo o que não é visto, não por sua inexistência física e translucidez visual, mas aquilo que não se vê simplesmente por não se olhar atentamente. A invisibilidade de Eurídice é, em partes, um auto-engano daqueles que olham e não querem ver. Isso é endêmico. Em uma era de informação rápida e pouco veraz, o filtro individual da invisibilidade nos ofusca o que não queremos saber, o que discorda de nós, o que nos desconforta. O racismo, a misoginia, o antagonismo, a doença, tudo pode se tornar invisível se decidirmos não querer ver. Pior é quando o fazemos de forma coletiva. Eurídice nos faz ver a pessoa que lá está, atrás da capa. Sempre há pessoas lá atrás.

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Ainda há tempo de sorrir

Rubem Alves diz que a beleza não elimina a tragédia, mas a torna mais suportável. Diz, não disse, pois ainda ressoa. A beleza é aquilo que perdura, uma mina de sorrisos. Ao mesmo tempo é a mais particular das percepções. A beleza do canto do bem-te-vi, do horizonte da cidade iluminada a noite, dos cabelos dourados da pessoa amada, do olhar caloroso da mãe. Cada belo detalhe que compõe o todo é como o caleidoscópio, em que a beleza é composta pelos caquinhos que formam os fractais. Quando os belos vitrais se quebram, podemos colher os cacos mais coloridos, fazendo a mais bela imagem no caleidoscópio. E é a nova beleza que nos faz sorrir e nos dá forças para refazer as janelas quebradas.

domingo, 23 de agosto de 2020

Mascarados - Diário da Quarentena

 

Segundo Nietzsche, algumas mensagens precisam ser escritas com sangue. Alguns cenários só podem ser retratados com pincéis rubros e úmidos, sobre uma tela manchada. A pura perversidade, fenômeno que Edgar Allan Poe descreve como um paradoxo da natureza humana, o agir pelo agir para um sádico deleite pessoal, essa precisa ser registrada como o filósofo alemão espera que façamos. Não há inocência na perversidade, é a moralidade oculta sob a névoa, o prazer de libertar-se e infligir o sofrimento e a dor. O paradoxo de Poe baseia-se em um sadismo intrínseco a todos nós, em que somos todos perversos em algum grau, mas a convivência nos força a controlar e condenar a perversidade como forma de satisfação individual. No entanto, o prazer move e, uma vez naturalizada, somos capazes da mais pura perversidade sem qualquer consciência moral e social que nos impeça de agir. A hipocrisia é a escora desse paradoxo, como o escritor inglês nos leva a avaliar, e não há imunidade contra ela. Quando menos esperamos, criamos um contexto, partejamos a hipocrisia e a perversidade apresenta-se para o regojizo coletivo.

Durante o carnaval, os principais aristocratas italianos vestiam suas máscaras e iam para as festas de rua. Trajando as pomposas ou mais discretas máscaras, os nobres protegiam suas identidades dos olhares invasivos e garantiam momentos de libertação dos protocolos sociais que os limitavam do prazer pelo prazer. Era a devassidão em sua essência, o anticatólica ocasião de deixar-se levar pelos impulsos da carne e pecar como nunca, no país berço da religião romana. Nesses bailes de máscaras, a perversão dos valores sociais vigentes era o que imperava, o anonimato era o passe livre. O pacto do carnaval era velado, todos sabiam o que se passava, todos sabiam das imoralidades e quebras de decoro que escondiam-se por baixo das fantasias. No entanto, a festa continuava ano após ano, semeando a mais pura hipocrisia entre aqueles que diziam-se inquisidores morais. Nas palavras de Rubem Alves, ser é perceber; não se vê e não se fala, não é.

As máscaras que na Itália ocultavam os olhos, hoje cobrem o nariz e a boca. É um bloqueio para a contaminação em massa do vírus que nos assola. Útil quando prudentemente empregada. Não obstante, é possível traçar um paralelo social que atravessa o velho mundo e chega às ruas das cidades brasileiras. O contrato social dos mascarados, como ouso chamar, enterra a frágil auto-quarentena em que tentávamos viver. Os números são os arautos da hipocrisia: as mortes pelo coronavírus não cessam, a pandemia não se apresenta sob controle e sabe-se que o isolamento e o distanciamento são nossas mais efetivas armas de combate para evitar a chacina. Mas os novos mascarados saem às ruas. Os foliões enchem os bares, aglomeram-se em churrascos, fazem festas e deleitam-se com o calor da convivência. Lotam shoppings, ruas, igrejas. O pacto velado repete-se — todos sabem, todos ignoram. Esse, porém, é mais perverso do que os dos aristocratas italianos, pois é um passe livre para que a morte chegue onde dificilmente chegaria e ceife a vida de inocentes pelo prazer e curtição alheia. Novamente, ser é perceber.

Faço meus os pequenos olhos de Drummond, incapazes de ver a realidade do "mundo que se esvai em sujo e sangue". A pandemia extrai de cada um de nós o suco da perversidade e da falta de empatia, escancarando os egoístas explícitos e revelando os egoístas vexados. O sangue com o qual se conta essa história é abundante e diverso, somando mais de uma centena de milhar de tinteiros. Não hei de sujar minhas mãos para que esse relato seja em vão. Serão lembrados todos, os que se foram e os que permitiram que fossem. Assim como no carnaval, após as festas vem a ressaca. O que Poe não deixa de destacar é que a perversidade deixa marcas profundas e dolorosas, tanto nos que sofrem, quanto nos que dela desfrutam. Marcas psicológicas individuais, marcas na convivência coletiva, marcas nas relações entre as pessoas. A quarta-feira de cinzas nos aguarda.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

O Rei Corona - Diário da Quarentena

Era tarde da noite quando aqueles dois homens cruzaram o Jardim Burle Marx, num tortuoso e descompassado caminhar alcoólico. A dessoante conversa entre os dois era praticamente inaudível entre os estridentes grunhidos, soluços e prantinas que a bebida — ou talvez os pensamentos soturnos e impudicos que afloravam com o álcool — fazia com que se misturassem à tentativa infeliz de comunicação. Para quem olhava de fora, a cena, que parecia um comum e triste um fim de noite no centro da capital federal, era cômica e vexatória, mesmo que, para os dois compadres, estivessem plenos de suas ações e entendiam-se como em uma comunicação morcegal particular.

Alguns minutos antes, tinham se alcoolizado em um bar clandestino nas vizinhanças da praça; clandestino pois não deveria estar aberto e recebendo seus leais e ébrios clientes. No entanto, a cidade, fechada para evitar a praga que se espalhava, contava com garagens semicerradas as quais, em seus interiores fechados, pouco ventilados e cheios de calor e contato humano, mantinham a vida boêmia dos trabalhadores urbanos ativa como se nenhuma doença mortal estivesse na porta ao lado. Não apenas se espalhava, mas causava danos irreversíveis àqueles que ousavam enfrentá-la ou minimizá-la. Aos que a subestimava, era a visita de Azrael em espírito que os aguardava para conduzi-los ao necrótico fadário. No entanto, os corajosos companheiros nada temiam sob seus farrapados uniformes laborais, apenas querendo descarregar a rotina sobre doses repetidas de cachaça e vodca baratas. As sirenes que colaram à porta foi o sinal de debandada e os sons das borrachas estralando sobre a carne proletária fizeram com que os homens tomassem seu caminho forçado rumo à noite clara do planalto. 

Abraçavam-se para se afastarem das trêmulas luzes coloridas da viatura na máxima velocidade que seus ébrios pés os permitiam, entrando em alamedas e vielas mal cuidadas, perdendo-se no escuro da noite brasiliense. Cessando-se, pois, a sirene distante, ficaram ao sereno os homens ao tentarem se recompor da fuga cinematográfica que imaginavam em suas mentes confusas e enérgicas. Em um daqueles estreitos caminhos de concreto, uma luz emanava de uma porta de enrolar semiaberta, chamando os dois companheiros como o canto da Iara a iludidos e sonolentos pescadores. O primeiro homem, o mais magro e atlético da dupla, esgueirou-se sob a porta e a abriu pelo lado de dentro, espaçando-a suficientemente para que seu baixo e atarracado companheiro pudesse se juntar a ele. O recinto era pequeno e mal iluminado, o que nada assustava os dois homens, que, com a visão levemente turva, não identificavam o fim do aposento e continuavam, a passos curtos e atrapalhados, seu caminho pelo sinistro cômodo. Vazio até então, uma escada íngreme descia até um porão, de onde emanava um forte cheiro de aguardente e atraía os alcoolizados companheiros como besouros à luz branca. No entanto, não estavam sozinhos naquele ambiente. 

À meia luz, um estranho grupo de pessoas sentava-se em uma mesa redonda, em um cenário mórbido, cercado de fuzis e outras armas de fogo. Ao lado da mesa, bandeiras nacionais manchadas de sangue espalhavam-se aos montes, cobrindo enormes e empilhados tonéis de cachaça de segunda linha. Crucifixos boiavam em poças que vazavam dos recipientes, além de dezenas de outros que pendiam de diversas formas diferentes entre os presentes, muitas vezes quebrados ou desfigurados. Sobre o homem ao centro da mesa, o crucifixo era invertido, apontando para a cabeça do sujeito, cujas órbitas afundavam-se em seu crânio, dando um ar caveirístico ao capitão da mesa, somado ao queixo marcantemente pontudo e peles escorridas sobre sua face. Claramente era o que ordenava e parecia tudo o que sabia fazer, esbravejando ao ares daquele porão apertado frases ininteligíveis, que fizeram os dois visitantes torcerem o nariz em estranheza. Ao avistá-los, o presidente da mesa gargalhou e pediu que se aproximassem, o que fizeram sem hesitação, visto ao insaciável desejo alcoólico da dupla.

Notaram, mas não se atentaram, a estranheza dos demais membros daquela reunião bizarra. O capitão presidente apresentou-se e os demais integrantes da reunião: — Sou o Rei Corona I, minha palavra é a lei, tá ok? Esse é a família real Corona e seus nobres servos —. A direita do Rei Corona, um sujeito rechonchudo com rosto incrivelmente redondo curvou-se ao ser apresentado como Príncipe Corona 02. Sua boca incrivelmente pequena causou estranheza aos dois convidados, que já embebedavam-se da cachaça servida em fálicas mamadeiras, servidas pelo sujeito apresentado como Príncipe Corona 01. Esse apresentava um rosto com aspecto excessivamente alaranjado, como uma cenoura bronzeada e sentava-se ao lado do último dos príncipes, o Príncipe Corona 03, cuja cisura militar contrastava com sua enorme e desfigurante testa, que ocupava dois terços de seu rosto. Além desses, o Rei apresentou os outros três membros da mesa como sendo o Duque Ipiranga, um velho com expressão de buldogue e com pelos grisalhos cobrindo grande parde de seu corpo; e as duas únicas mulheres da mesa como a Rainha Corona, uma jovem arrebitada e dissimulada que tossia sem parar e, finalmente, a Marquesa Elsa, baixinha e atrofiada, com enormes olhos e rugas profundas, adornada com dezenas de crucifixos e símbolos cristãos.

Além das doses excessivas de álcool, os presentes ofereceram cápsulas de algum tipo de droga, que, ao clamor caloroso do Rei, os dois homens ingeriram, sem bem ao certo saberem o porquê — e sem nenhum efeito posterior.  Com a palavra e em meio aos soluços, o mais alto dos convidados questionou ao rei algo que o incomodava: — Afinal, o senhor é Rei do quê? — Constrangido, o Rei ergueu-lhe a voz: — Entra na minha sala, interrompe minha reunião de salvação do país e ainda questiona meus domínios? Eu mando em tudo isso daqui, tá ok? Do europeu inverno do norte à riqueza do sul. Dos gados do oeste aos gados engravatados do leste —. Não convencido, o segundo homem dispara: — Certo, manda em tudo e não tem uma bebida de qualidade pra oferecer? —. O tom de deboche e afronta do convidado fez com que o Rei iniciasse um esbravejamento, enquanto aplaudido por todos na mesa (por exceção da impassível Rainha), e causando ainda mais gargalhadas dos amigos bêbados.

— Isso é uma afronta ao meu poder! Sou eu quem mando nessa p****! — O Rei, em sua ira, encarou com seus olhos afundados olhos o baixinho bêbado que, em um momento de epifania alcoólica, notou uma estranha semelhança: — Você não é rei coisa nenhuma! É o criador de emas do jardim da esplanada, não é rei nem de sua própria cadeira! Hahahaha!! —. O assombro do comentário percorreu todos os presentes: "Blasfêmia! Blasfêmia!" gritava a Marquesa; "Comunista, fuzila, fuzila!", vociferavam os Príncipes; "Privatiza, privatiza!", bravejava o Duque (a Rainha permanecia em silêncio e sem expressão). Em meio às risadas dos dois intrusos, o Rei sacou um revólver e, sem a menor destreza com o artefato, disparou e tentou atingir os recém-sentenciados inimigos da nação. Com o susto, os homens jogaram-se contra as barricas que se equilibravam ao redor da mesa, dando início a uma confusão generalizada. Tambores de cachaça caindo sobre a mesa, estourando e inundando o ambiente; diversos fuzis disparando com os impactos das barricas sobre eles; Príncipes tentando agarrar os bêbados que corriam desesperadamente para as escadas, nadando no álcool e nos comprimidos que nele boiavam.

Correndo ofegantes em direção a rua e deixando o portão para trás, os bêbados desabaram na calçada, conforme os gritos de agonia das disformes criaturas da reunião deixaram de ser ouvidas. Aliviados e gargalhando, os companheiros adormeceram sobre a sarjeta, desprovidos de qualquer senso de localização. O único som que ouviam, além dos pássaros noturnos do planalto é a própria tosse, que parecia estar começando a se apresentar.


—— Esse conto é uma releitura do conto alegórico "O Rei Peste", de Edgar Allan Poe

domingo, 19 de julho de 2020

Travessia - Diário da Quarentena


Aquela era outra vida. Uma vida alheia para qual eu me transportava. Nas shakespearianas palavas de Helena, era minha e não minha. Uma estranha fusão de sentidos, um amálgama de realidades na qual o outro me guia e eu o transformo. Não altero as palavras, mas complemento as lacunas que foram propositalmente lá deixadas para que fossem dinamicamente preenchidas com a experiência de cada um. Onde uns veem Capitu como a dama injustiçada, outros a veem como aproveitadora da inocência alheia. Não há sentido literal além do que as palavras reverberam, mas são os vazios que ressoam e completam a experiência. A genialidade do escritor negro não está no que ele escreveu, mas no que ele não escreveu e como não escreveu. Quando o leitor e o escritor encontram-se em sintonia, as histórias contadas vão além das palavras, das frases, das sentenças e aprofundam-se em um oceano de sentimentos, experiências, memórias.

O que a pesquisadora da linguagem Maryanne Wolf descreve como sendo um processo de leitura profunda utiliza diversos mecanismos e circuitos cerebrais para tornar as palavras lidas algo que sobrepuja o simples entendimento fonético e literal do texto. É um processo que vale-se do conhecimento pessoal de fundo para transformar o que é lido e extrair do texto seu real e amplo significado. Todo escrito tem, no mínimo, dois sentidos. O pensamento crítico e a empatia são frutos do processo de leitura profunda: o primeiro se desenvolve conforme nosso cérebro amadurece os mecanismos de correlação entre memórias que armazenam fatos, ideias e consequências, tornando-os mais imediatos enquanto lemos e tentamos compreender o que está escrito; o segundo, vem da união de experiências entre o leitor, o autor e o texto.

A leitura de um texto literário é um processo de auto-descobrimento ao viver em realidades diferentes, tornar-se pessoas diferentes. É a chance de sermos quem jamais seremos ou estarmos em lugares inalcançáveis e inóspitos. É compartilhar o embrulho, como versa Drummond, que todos carregamos, mas lidamos de formas distintas. Não basta ao escritor dizer tudo que o leitor precisa ouvir, mas instigar a criatividade para que, no fervilhar da curiosidade e imaginação, ele compreenda profundamente e com seus próprios sentimentos o que lá se disserta. 

A tristeza da quarentena é um chamado solitário na névoa para a experiência da leitura. Com uma redução no entretenimento, a socrática vida de contemplação clama por sua vez. Nas páginas dos livros, uma luneta estende-se para que possamos ver a realidade por uma ótica diferenciada. Ou ainda, que possamos escapar da realidade e nos transportarmos a um mundo que vive outros dilemas, outros desafios. Que possamos nos fortalecer com as experiências que não vivemos e trazer as lágrimas, o sangue, o sorriso alheio e fictício para transformar a vida real. Um auto-exílio que novamente nos remete ao poeta mineiro, a saudade do passado é a mesma, mas tudo parece diferente. 

Chegando aos cem mil mortos pelo vírus no Brasil, a leitura é minha válvula de escape. São grandes autores que atravessam os continentes e as gerações, que viajam no espaço até minha casa. Em uma era de restrições de mobilidade, as palavras ainda têm livre circulação e as ideias rompem as barreiras sanitárias sem qualquer risco de contaminação. Na verdade, me contaminam com suas ironias, alegrias, perversões e inocência; me fazem seguir em frente. Me fazem entender a barbárie do presente, colocar em perspectiva com as chacinas do passado e agradecer por prospectarem um futuro melhor. Como no jardim de Frances Burnett, ajudam-me a florescer as ideias, por mais doloroso que possa ser adentrar esse terreno. Sem cuidado, mata-se: empatia, criticidade, pessoas.

Tentando traçar meu (e nosso) caminho, Drummond novamente provoca: "Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos?". E se todos nós vivêssemos?

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Cartas - Diário da Quarentena


A carta havia chegado há algumas horas. Foi o próprio tio que a entregou. Na expressão marcada do velho, era difícil dizer que lá haviam boas notícias e no primeiro olhar já ficou claro o porquê. A mensagem recebida estava selada com o brasão no exército nacional. Aquela não era a primeira carta que chegava na casa com esse selo. Na verdade, ele era sempre predecessor de mudanças brutais na vida daquela família.

Seu pai, no auge da idade, recebeu a primeira, em uma tarde de inverno, quando seu tio era apenas um garoto. A avó, que recebeu a carta, olhava-a com curiosidade enquanto lia a mensagem de convocação às forças nacionais de pacificação das colônias. Ele se uniria ao batalhão ordinário de operações que seria encarregado de conter atos de rebeldia na África Central. Ele, operário como todos os homens da sua família, não teve escolha se não acatar o pedido da nação. Na época, com dois filhos pequenos, a pensão que sua família receberia seria o triplo do que ganhava na fábrica e seria um alívio necessário às dificuldades que pareciam se instaurar naquela casa. O plano era simples: seis meses de operação de pacificação, estabilização do território e retorno para casa. Estaria de volta antes do Natal, condecorado pelo exército e com uma possível carreira militar pela frente.

Poucas cartas foram trocadas durante aquele período. Os seis meses viraram vinte e as batalhas pareciam longe de terminar. O dinheiro foi bem vindo e a família conseguiu melhorar sua condição de vida, podendo reformar seu casebre e alocar confortavelmente todos os que ainda moravam ali. Mas não foi a reforma que abalou as fundações daquela residência, mas uma segunda carta, igualzinha à primeira. A diferença principal era seu conteúdo, um comunicado de desaparecimento. Houve um ataque das forças rebeldes e seu pai não havia sido visto desde então. As mensagens pararam de chegar e o silêncio se instaurou. Seu pai nunca mais foi avistado, as tropas nacionais restauraram a estabilidade na região ao custo de centenas de vidas militares e milhares de vidas de civis. Eternamente desaparecido, o exército nunca o considerou como morto, então não havia entrado para as estatísticas. Tinha sumido da história, apenas mais um que lutara pelo progresso do seu país, batalhara para manter uma região que jamais o beneficiaria e desparecera como um pária.

Para aquela família, no entanto o impacto foi estonteante. Perdia-se a grande referência de duas gerações. A avó enlutou-se por anos a fio até que ela mesmo se fora. O tio tivera que trabalhar o dobro e a mãe, criar duas crianças sob a sombra da tragédia. A perda jamais foi superada sob aquele teto. Foram anos para suturar-se a ferida que aquelas cartas haviam trazido, algo nunca esquecido por sua mãe. Quando estava no crepúsculo dos seus dias, viveu o suficiente para ver uma guerra continental se instaurando, mas não tanto para que visse a terceira carta chegar ao casebre. 

Aquela era endereçada ao seu irmão e continha termos que, mesmo nunca tendo lido a que seu pai outrora recebera, acreditava ter as mesmas palavras lá escritas. Era uma convocação para servir na grande guerra. Novamente, era a esperança de uma vida melhor que entregava a contrapartida. E ele foi. Deixou para para trás o que restou da sua família e partiu para as trincheiras. Dessa vez, sentia o drama do seu irmão como sua mãe o fez com seu pai. A ansiedade pelas cartas, o temor pelas novas táticas de guerra e tecnologias, as notícias de rebeliões em países vizinhos e cidades próximas. A instabilidade caótica que a terceira carta trouxe fora uma facada no peito, sobre uma ferida prévia que sequer havia se fechada completamente. 

As cartas do irmão eram assustadas, a rotina das trincheiras era insalubre e chocante. Não havia recursos o suficiente para todos e o estresse era permanente. Em algumas, relatava sobre a carnificina das batalhas e o sofrimento de ver seus amigos de expedição caírem mortos ao seu lado. Em outra, descrevia seu primeiro disparo, seu primeiro alvo inimigo, seu primeiro abate. Alguns meses depois, chegara o relato de sua primeira lesão incapacitante: havia perdido um olho pelos estilhaços de uma explosão. Para aqueles que ficaram na cidade, era a impotência que reinava. Foram meses de solidão e ansiedade, uniformes voltando para suas famílias sem os soldados. Aqueles que voltavam, eram totalmente diferentes dos que partiam, fisicamente e mentalmente. No casebre, seu tio tentava manter a esperança e a paz no meio da chacina. Garantia que aquela guerra manteria a paz e a estabilidade da nação, que poderiam manter seus empregos e seus costumes se saíssem vencedores, que teriam mais dinheiro do que o país jamais teve. Essas eram as promessas de sempre, prosperidade e estabilidade, promessas contrastantes a uma realidade instável e decadente.

Foi em uma manhã cinza que a luz voltou a se acender. Uma carta do seu irmão indicava seu retorno nas próximas semanas, porém a um alto curto. Tinha se incapacitado permanentemente, perdido um perna, e não poderia continuar a servir seu país em batalha. A mistura de dor e contentamento era estranha e a neblina adensou-se no casebre. Felicidade e angústia, alegria e incerteza. Mas o retorno esperado do seu irmão era a única notícia boa que ouvira naqueles tempos. 

Circulava a notícia de um outro inimigo nas linhas de frente. Um inimigo silencioso como a escuridão, que chegava sorrateiro e arrasava os batalhões. Um inimigo que não atacava só nas trincheiras, mas invadia cidades e incapacitava desde os mais pobres até os aristocratas. A gripe matava de ambos os lados, não fazia distinção das cores da bandeira ou dos gritos de ordem. Chegava, acamava e eliminava. Esse era um terror cotidiano que batia na porta ao lado, com notícias de vizinhos e comerciantes locais com a praga. No meio das novas notícias, tentava-se arrumar o casebre e avisar aos amigos sobre o retorno do soldado aleijado.

É dito que os ciclos são repetições de padrões e que conhecê-los pode ser uma forma de evitá-los no futuro. O que não se diz é que, embora elementos similares se repitam, cada um que vivencia um ciclo é diferente do outro. As experiências, as reações e até mesmo as consequências são diferentes. Naquele dia, a carta selada que o tio havia lhe entregado trazia uma familiar repetição da dor, mas com novos elementos. O irmão morrera de gripe, seu corpo havia sido incinerado junto com outras vítimas fatais da doença, ao lado do camburão que o traria para casa. Os olhos fixos à carta faziam parte de uma expressão já conhecida naquele casebre. Era o ciclo se fechando novamente, mas os diferentes detalhes mudavam tudo. O que perdurava era a dor, eterna e companheira dor.

Diferentemente do pai, o irmão entrara nos registros. Em algum lugar nas trincheiras, um oficial escrevia seu nome em uma linha de um dos cadernos oficiais de baixas. O caderno foi guardado em uma caixa-arquivo para ser enviado ao quartel central, onde seria depositado e talvez nunca mais lido. Nas páginas frias, ele seria mais um, apenas mais um.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Caminhando no escuro - Diário da Quarentena


Existem noites em que eu me perco no escuro. Normalmente acontece quando a sombra da Terra ofusca o brilho do luar. Ó, Diana, como fazes falta em minhas caminhadas noturnas, sempre desafiadoras no breu da periferia. Moro no morro, o ponto de ônibus é na avenida. Quase três quilômetros de subida separam meu corpo cansado do conforto da minha cama. Exausto, a subida é um martírio. Carrego o peso da rotina sobre os ombros e subo, muitas vezes sob o lapo da realidade. A Lua Nova apaga meu farol celeste e meus olhos se tornam mais atentos. Em tempos de pandemia, nossos olhos estão mais atentos do que nunca.

Mas, de fato, meus olhos sempre foram mais sensitivos que a média. Para mim, tratava-se de uma questão de sobrevivência. Naquele momento, era minha visão periférica que via as luzes à distância, se aproximando, piscando e reduzindo a velocidade. Mais perto e mais lento. Seguia-me, conforme eu escalava as calçadas irregulares. Não era a primeira vez que isso me acontecia. Talvez seja a sina do trabalhador, receber atenção especial da polícia quando por qualquer ato que seja. Ainda mais mascarado. Não há paz na minha pandemia. Não há quarentena para quem está na linha de frente.

Meu plantão no hospital ia até as três da manhã. Via, nos dias em que se passavam, o número de contaminados subindo. No início eram os hospitais particulares que se enchiam de doentes, ricos que contraíram a doença no exterior ou em alguma festinha badalada nos condomínios de luxo. Hoje são os lojistas, os faxineiros, os informais, aqueles que lutam todos os dias para sobreviver e, para isso, se expõem à morte. Esses eram os que lotavam minhas UTIs. Como enfermeiro responsável pelas operações de emergência, cada novo paciente era um aperto na alma. O fato é que todos estavam perdidos. Não há tratamentos e procedimentos precisos, não existe remédio ou cura milagrosa. Cada caso é um caso e a incerteza era a fonte da nossa ansiedade. Nossa saúde mental ia para o ralo e, a cada morte, um semblante de impotência encobria os corredores do hospital.

Aquela caminhada noturna era uma terapia. Meditava e desligava meus pensamentos da estressante rotina da madrugada. As vezes chorava sozinho, lágrimas gêmeas às das famílias que deixavam a UTI rumo ao crematório. Ao pingar no chão, cada lágima apenas juntava-se ao orvalho que umedecia a calçada. Tornava-se mais uma gota de água. Olhava, pois, para a Lua. O brilho nos meus olhos molhados ficava explícito sobre o raiar do luar e ele me fortalecia. Não há, Diana querida, dor que seu brilho não atenue; ferida do coração que ele não suture; lágrima que ele não evapore. Mas aquela noite, você não estava comigo.

O brilho sobre meu rosto, naquele momento, vinha da lanterna que o policial segurava. Mandou-me parar e desceu da viatura com a mão no coldre. Eram três, para ser preciso. Já sabia o que se passaria por aí. Sem máscaras, ordenaram que eu retirasse a minha. A contragosto, o fiz. A autoridade do rapaz fardado era sádica, descarregava pelas palavras o que não poderia descarregar com munição e a fisionomia de satisfação era plena. Empurrou-me contra a parede, me revistou, me insultou enquanto eu respondia com claro desgosto aos arrochos autoritários do trio. Tratava-se de um cabo de guerra com um barbante e eu sabia que é sempre do lado mais fraco que ele estoura. Quando respondi com ar de impaciência à décima segunda vez que o oficial duvidava de uma resposta, rompeu-se o fio e fui punido. 

Exatos oito chutes depois, a viatura tinha partido, eu estava atordoado e caído sobre os ladrilhos irregulares e manchados da calçada. As lágrimas que agora escorriam eram raiva e dor, mas não de incredulidade. Não era a minha primeira abordagem e não seria a última. Juntei minhas últimas forças e ergui-me. Levantei a cabeça sobre a penumbra e encarei a noite. Tudo ia melhorar, repetia. Não acreditava, mas repetia. A partir dali, cada passo era uma superação. 315 depois, estava na porta de casa. Entrei e dirigi-me ao meu quarto. Na porta ao lado, escutava o regougo da minha avó, era meu ritual escuta-la dormir antes de deitar. Naquele dia, escutá-la era ainda mais importante. Havia meses que não a abraçava. Quase nem nos víamos, mesmo morando na mesma casa. Era por mim, por ela e por todos aqueles que sofriam que eu resistia. A pandemia para mim era superação.

Em meus sonhos, ela veio me visitar. Com seu véu prateado, Diana me dizia que tudo iria ficar bem. Sob o luar, me metamorfoseava em um pássaro e a leveza de voar me fazia feliz. Não havia viaturas ou armas; não havia escuro ou trevas. Era tudo luminoso e cheio de esperança. Voava em direção à Lua, em direção ao inalcançável desejo de libertar-me de mim mesmo. Tudo ia ficar bem, ela dizia. Tudo ia ficar bem.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Em declínio - Diário da Quarentena


Quando costumava ler as epopeias gregas, acreditava que a jornada do herói tinha seu ápice em grandes desafios, como Hidras de múltiplas cabeças ou labirintos indecifráveis. Acreditava que devíamos ser plenos na coragem, encarando os desafios como guerreiros, sem nos esconder ou fugir do confronto. Jamais imaginaria, no entanto, que as sagas desse início de década se resumiriam a idas à padaria, ao supermercado, à farmácia. O elmo dos guerreiros helênicos seria substituído por uma máscara de pano. A fúria divina dos velhos contos seria agora representada por uma ameaça invisível. A tragédia moderna tem pouca relação com os teatros clássicos de outrora, mas o sentimento de fobia que ela nos trás é certamente mais real. Está acontecendo agora, a ameaça existe e é tangível. Ah, se eu possuísse as asas de Ícaro para que pudesse voar para longe dessa pseudo-realidade pandêmica. Foi ao abrir minha geladeira pela manhã que o pavor se instaurou, como Hércules ao abrir as portas do mundo inferior, em seu último trabalho. Não era Hades nem Cérbero que lá se encontrava, mas o vazio. O vazio nas prateleiras significava que seria necessário sair, enfrentar o mundo externo, abandonar as trincheiras.

Buscar as maçãs douradas de Hera poderia ser uma tarefa mais simples do que abastecer os mantimentos que me faltavam. Cada dia que passava rumávamos ao fim da pandemia, mas um fim doloroso. Como um Tratado de Versalhes à brasileira, as dúbias lideranças fingiam que o problema estava se resolvendo, flexibilizando o isolamento imposto, enquanto o povo se esforçava para crer na narrativa, tentando retornar a uma vida social normal. Enquanto isso o vírus, aquele ser indiferente à política humana, se beneficiava, sem a necessidade de qualquer tipo de articulação ou concessão. Sabemos onde um acordo de paz mal feito nos conduziu no passado. 

De qualquer forma, tive que sair. Equipei-me e escolhi o horário mais conveniente. Eram alguns quilômetros de caminhada que decidi encarar a pé, não arriscaria um táxi. Era um clima de fobia social já instaurado em mim que vinha à tona nas decisões mais simples. Queria evitar o contato, ser eficiente e prático nas minhas ações, uma tarefa por vez. Mas o trajeto foi doloroso. Foram dois quilômetros de inquietação e inconformidade. O comércio voltando precocemente às atividade estava lotado, apinhado de potenciais vítimas de uma nefasta necropolítica que faria Euristeu parecer um pai atencioso. Era o declínio da quarentena. Não um declínio no número de casos ou de taxas de mortalidade, mas um declínio moral, um egoísmo social, uma ignorância confusa com pitadas de sadismo.

O que diria Adorno se visse a cena que presenciei, não sei dizer, mas em algum grau se sentiria decepcionado. Aquele poderia ser o resultado de uma educação que deixou de questionar as bases da barbárie, uma falha estrutural da auto-reflexão crítica. Não era puramente ignorância inocente, mas uma negligência deliberada. A civilidade, segundo o que Freud evidenciou, é a causa principal das incivilidades. O mal-estar da cultura tangencia uma civilidade que não conhece e não respeita seus espaços sociais, objetificando os outros e menosprezando o seu papel como agente crítico no espaço público. Essa é uma das bases estruturantes de genocídios globais, como o holocausto e seus perversos campos de concentração. Adorno e seus pares, que lutaram para ver uma educação que questionasse e nos distanciasse da barbárie, se remexeriam no túmulo ao ver o que meus olhos não poderiam mais desver. Era triste e apavorante.

Chocado demais para absorver mais detalhes daquela cena, mantive minha rota e me abasteci dos suprimentos necessários para mais algumas semanas de isolamento. No caminho de volta, decidi evitar passar novamente pelo comércio. Algo tinha mexido comigo, como se meu lado freiriano tivesse se esvaído completamente. Não via salvação para aqueles que negavam enxergar a trave em seus olhos. Mas sentia pena, também. Talvez o principal motivo para desviar minha rota de regresso tenha sido evitar as lágrimas que provavelmente viriam. Retornei pela avenida, mais movimentada de carros, porém com menos agitação de pedestres. Entrei em casa, encostei minhas compras e desabei.

Ao final da missão, os heróis clássicos costumavam receber honra e liberdade. As vezes tesouros divinos ou a possibilidade de permanecerem vivos, além do clássico coração da princesa. O final da jornada costumava ser a glória. No meu caso, o que encontrei foi a desolação. O meu declínio de compostura soterrou-me sob o peso da quarentena, do isolamento, do distanciamento. Sozinho naquele cômodo, algumas horas se passaram até que me erguesse e voltasse ao mundo real. Com o filósofo alemão na cabeça, muni-me da frieza como a principal arma e abri mão de parte da minha sensibilidade e solidariedade. Era triste, mas necessário. 

Contei cada grama dos mantimentos que comprei naquela tarde. Olhando o calendário, calculei quando seria preciso sair de novo. Até lá, esperava um mundo melhor, uma esperança de Ulisses retornando de Troia. Que superpoderes me fossem dados para que eu pudesse realizar a próxima missão. Nem que o poder seja, simplesmente, o de não me importar.

Ou, talvez, o poder de não sentir medo.

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Meu inimigo - Diário da Quarentena


A lógica do inimigo é um dos alicerces de muitos grupos sociais que visam uma universalização das suas ideias. O jogo do maniqueísmo inicialmente categoriza os indivíduos e instituições em grupos antagônicos: o bem, representado pelo grupo no qual eu sou o membro característico; e o mal, representado pelos outros que divergem de mim em algum grau. O dualismo é uma forma primitiva do ser humano pensar e se relacionar com o mundo, uma forma simples e rápida de evitar ser devorado por um predador desconhecido. O que diverge do meu padrão de bom, é mal, consequentemente. A lógica do inimigo, no entanto, é ainda mais poderosa. Trata-se de atribuir ao mal uma face, um nome. É a síntese em ação. Ao resumir um grupo em uma personalidade, a semiótica atinge seu pico de fidelização, pois é fácil de lidar com um problema muito bem conhecido e definido. O mesmo vale para o grupo bom, tendo o herói como seu expoente, aquele que me representa. Não há fascista que resista aos encantos de uma história tão perfeitamente amarrada e alinhada com seus desejos sádicos e messiânicos. Para finalizar, é necessário desumanizar, atribuir ao outro as características mais baixas para que se possa justificar a barbárie e a eliminação.

Em tempos de quarentena, no entanto, os nós se desmancham e a dicotômica lógica de guerra permanente entra em crise. Como o psicanalista Gabriel Tupinambá sabiamente destaca, o coronavírus é um elemento de ruptura dessa lógica, um inimigo comum a todos, cujo surto é uma causalidade natural, sem alguém para ser diretamente responsabilizado. Sem um nome, a batalha contra o inimigo invisível que causa a Covid-19 torna-se estranha para aqueles que se alimentam do conflito permanente. A ciência é a principal arma e o conhecimento vai se construindo aos poucos, com muitos erros e mudanças de paradigma no caminho. A lógica do inimigo entra em parafuso e os alicerces sentem o terremoto. Não é mais possível sustentar-se somente na retórica, ações são necessárias se realmente espera-se poupar vidas. No desespero para salvar a narrativa, criam-se os inimigos virtuais, espantalhos recheados de boatos e sustentados pelo medo. Falsas responsabilidades são atribuídas, problemas menores são inflados e rostos são dados aos que querem o meu mal. Enquanto isso, o vírus se propaga.

Quando a caquistocracia se encontra com a necropolítica, os espantalhos ganham tamanho e surgem como um escudo para que os grupos neo-fascistas se isentem da responsabilidade e cumpram sua missão de limpeza social com ajuda do inimigo invisível. A velha lógica liberal é aplicada para que fique nas costas do indivíduo a decisão entre morrer ou viver, seremos unica e exclusivamente responsabilizados pelas nossas escolhas individuais. Simples, fácil de compreender, uma luva para o espantalho da morte. Meus inimigos agora são a China que liberou a praga, as lideranças locais que nos privam de nossas liberdades, a quarentena que congela a economia. Meus heróis são os remédios milagrosos, meu líder político que abre nossos olhos, a mídia alternativa que repassa as informações reais da "pandemia", sem filtros. Com isso a curva sobe, os hospitais lotam, os corpos se empilham, mas a responsabilidade não é mais minha, a culpa não é mais minha. São eles que trazem o inferno. Quando faço arminha com a mão, já diziam os ecos do Twitter, um dedo aponta o adversário e três apontam para mim.

Três meses de quarentena já se passaram e a tsunami brasileira está se formando. Um lamaçal de ódio e angústia somados com ansiedade e medo vem em alta velocidade para arrastar os corpos que se empilham. Enquanto isso a necropolítica se perpetua e os sonhos de Žižek para uma sociedade solidária parecem mais distantes no horizonte. 

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Mudanças - Diário da Quarentena


Do melhor estilo kafkiano, um belo dia o mundo despertou dos seus sonhos intranquilos com um vírus mortal e desconhecido se proliferando. O que foi uma novidade súbita para a população em geral, era uma mina terrestre para epidemiologistas chineses, que estudavam a instabilidade viral por conta do consumo de animais silvestres no mercado de Wuhan a muitos anos, com diversos estudos publicados. O que importa é que não estávamos nem perto de ter o preparo necessário para evitar a pandemia e as centenas de milhares de vidas perdidas. As mudanças desencadeadas pelo súbito surto ramificam-se em diversos níveis e os questionamentos surgem e ressurgem sobre como a vida se organizará pós-pandemia.

A primeira indagação é sobre o tempo, o senhor do destino. Por quanto tempo estaremos em uma situação de exceção, isolados e fechados em nossas casas e, principalmente, convivendo com nós mesmos, sem escapes? Por quanto tempo continuaremos correndo o risco de nos infectarmos e colocarmos em perigo aqueles que amamos? Por quanto tempo seremos cobrados pela nossa negligência? Segundo Bento Santiago, para aqueles que têm promessa a pagar na Páscoa, a quaresma é curta. Talvez as dívidas que acumulamos por anos estão, enfim, sendo cobradas, com altos juros. Nosso extrato está no vermelho e não há crédito de carbono que compense a devastação que continuamos a causar. Nas palavras de ambientalistas brasileiros, destruir habitats não é eliminar os vírus que neles vivem, mas selecionar os mais adaptados para proliferarem em outras espécies, como a humana. É unânime, infelizmente: esta é apenas uma de muitas crises virais que teremos causado, em nossa fome por progresso. Crises sempre geram angústia, ansiedade e nervosismo. Novamente nas palavras machadianas, crises sempre duram séculos pra quem as vive, por mais curtas que sejam.

Outro ponto de debate é o conflito entre solidariedade e egoísmo. O quanto devemos nos unir para que juntos possamos garantir a minha sobrevivência e de quem amo? Redes globais de solidariedade têm tomado maiores proporções, em especial por estarmos combatendo um inimigo que não tem interesses escusos que não seja a primitiva e inconsciente perpetuação do seu material genético. Žižek discute, em uma de suas obras mais recentes, como esse modelo de rede de colaboração é necessário para que estejamos preparados para futuras ondas como a que imergimos. Para esse tipo de crise, não há apenas uma nação prejudicada, ou classe, ou etnia. É um momento para questionarmos nossos hábitos de consumo e produção, como lidamos com investimentos estatais para o bem estar social e como a sociedade civil se organiza em escala global em prol da sua própria sobrevivência. Transpassando os Estados-nação, a união social para resistir a recessão que seguirá será um teste para uma versão moderna e contemporânea das Internacionais do século XX. Se essa crise causará uma implosão no sistema capitalista global, apenas ele, o senhor da esperança, poderá dizer. Mecanismos protecionistas e imperialistas esboçam movimentos para se sobressaírem em uma disputa global por recursos, embora essa ainda não seja a regra. Mas como Harari cirurgicamente destacou, se sairmos dessa mais desunidos e egoístas do que antes, quem venceu foi o vírus. E este poderá ter sido apenas o primeiro round.

Por fim, existe uma mudança que é definitiva e permanente. Uma mudança irreversível para todos que estão envolvidos nela. A morte é como o vento, invisível e implacável; uma brisa suave e refrescante para alguns, uma lâmina gelada e devastadora para muitos. O que o vento carrega, se vai no horizonte, vemos como uma intocável lembrança aquilo que jamais alcançaremos novamente. Citando Machado uma terceira vez e pedido desculpas por inverter a frase do seu defunto personagem, os mortos não choram, entretanto jamais voltarão a sorrir. Passam de trezentos mil o número de vidas encurtadas pela Covid-19. Trezentas mil famílias vítimas da tempestade, com sorrisos amados varridos pelo sopro da morte. Aceitar as estatísticas é ser cúmplice de um genocídio global; abster-se de agir é sujar as mãos de sangue.

A perspectiva é prosseguirmos na escalada e, dia após dia, sentimos a tempestade se aproximando cada vez mais. Que nossa humanidade fale mais alto que o barulho do vendaval.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

O antidiário - Diário da Quarentena


Querido Diário, são estranhos os dias que já se foram, assim como os que seguirão. Aliás, se me permite uma observação peculiar, são dias que não se parecem com dias de fato, como se estivessem fadados a não serem. Não serem, não existirem, não estarem. É estranho pensar em uma negação do que está sendo e que, pelo menos onde meus sentidos podem me confirmar, é a única coisa que sempre é e nunca deixa de ser. Pode parecer confuso, mas se você estivesse passando pelo que hoje passo, Diário, saberia que as secas e vazias páginas de seus antepassados são tão frívolas como a rotina pandêmica. Mas você, um Diário digital e moderno, não sentirá o vazio de não possuir conteúdo. Está inundado nele; é o próprio conteúdo. Se eu não escrevesse em você, você nem existiria de fato. E nisso você pode me compreender, definitivamente, e se assemelha aos dias de isolamento que vão passando: sem conteúdo, simplesmente deixam de existir.

Por isso o diário de quarentena é um antidiário, um diário que relata dias a serem apagados, dias que queremos que desapareçam história. Talvez você não queira, devido a sua existência depender da minha benevolência de relatar o que acontece ultimamente, que, em essência, é nada. O nada é tudo que eu tenho para relatar, se é que você me entende. Mas o que um mero amontoado de Bytes pode opinar em relação ao que está acontecendo? Não passa de uma porção de sinais elétricos que representam números de forma imprecisa e limitada. Números não opinam. Números se quer existem! A menos que você seja um diário antirrealista, que contesta a coerência entre a realidade externa e a percepção sensorial. Partindo de um antidiário, de nada eu duvido.

Não acho que um antidiário seja inútil, por mais que me pareça pouco efetivo na função convencional atribuída a um diário. Infelizmente é o que me resta. E nem  todo diário pode ser igual a você, então sinta-se minimamente privilegiado. É a elite dos diários, privilegiado desde a concepção, narrando apenas as percepções limitadas de um jovem igualmente privilegiado. Narrando não, registrando. Pois os diários não são narradores dos fatos, mas sim meros registros temporais do presente que se tornará passado de maneira fugaz. No seu caso, registro de passados presentes e futuros passados que se misturam e podem ser igualmente relatados como a falta de relato, a página em branco que não poderá ser novamente preenchida, perdida.

O sofrimento, o medo, a paralisia, essa é a receita da nulidade. Pitadas de incompetência e negacionismo são adicionadas à receita para realçar o sabor fúnebre. Planta-se negligência, colhe-se cadáveres. Se congela-se, não há amparo; se movimenta-se, brinca-se com a ruína. A ordem caquistocrata é o caos. A verdade é perdida e tudo torna-se permitido. O duplipensamento se mostra uma arma fatal e o disparo de palavras, mais perigoso que o de balas de fogo. O que aqui relato é algo sem precedentes na história humana e, escancarando minha arrogância, me reconheço como parte do exército combatendo pela vida. E o que eu estou fazendo, você, um diário desatento, pode estar se perguntando. Ora, anulando meus dias, desacelerando a existência, tornando nada o meu tudo. Preciso ser mais claro do que já fui nos últimos três parágrafos? Poupe-me, somos mais inteligentes que isso. Pelo menos estamos tentamos nos manter sãos, não é?

Querido Diário, quando escrevo essas palavras passamos de três mil mortes por coronavírus no Brasil. Três mil vidas que se foram e, assim como o número que as representam, não existem mais no nosso universo dos sentidos. Não podemos mais nos tocar, olhar, conversar, chorar, lamentar, existir e coexistir. Mas os números são frios; a morte arde. Estamos no início da escalada.

Querido Diário, infelizmente ainda teremos muito que conversar.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Isolamento - Diário da Quarentena


Isolar-se é manter distância, afastar-se, evitar o contato. Em um contexto de coronavírus, o isolamento físico é necessário e, até o momento, a única coisa que pode minimizar a chacina da pandemia. Grandes centros vazios, praças públicas e pontos turísticos ermos. Essa é a paisagem de 2020 para os centros urbanos. A reflexão insurgente nesse momento de contraste e solidão citadino cruza as ruas, avenidas, estações de transporte público e nos leva a mergulhar nas multidões que se aglomeravam no cotidiano das metrópoles. Afinal, o quanto o caos diário dos grandes centros realmente significava que as pessoas não eram solitárias?

A solidão, como o escritor Hunter Thompson melancolicamente pontua, nos acompanha do início ao fim de nossas vidas: nascemos e morremos sozinhos. Nessa trajetória convivemos com os outros e compartilhamos nossa solidão com a das outras pessoas. Dentro de uma sociedade, usamos e abusamos da companhia alheia, em maior parte para satisfazer nossos próprios anseios e saciar nossa faminta necessidade por deleites e regojizos. Freud pontua como um balanço entre o ego e o superego: utilizamos da convivência e interação interpessoal para suprir nossas necessidades primitivas de prazer e gozo. Como Karnal destaca em seu livro sobre a solidão, ela é um refúgio que nos protege e nos machuca, assim como a convivência nos acalenta e nos fere. Um dos possíveis poderes da internet e da revolução digital que a acompanhou é a efetivação dessas barreiras tênues entre solidão e conexão, criando elos virtuais efêmeros entre as pessoas, que pode ser totalmente cortado de forma unilateral, com o poder do block.

Em um momento em que as relações virtuais são tudo que restam, é possível perceber o impacto que a superficialidade da convivência urbana nos causa. Quando Antônio Xerxenesky relata uma relação instável entre a metrópole e a pessoa humana em seu romance As Perguntas (2017), faz questão de pontuar nas entrelinhas como o estresse e a sobrecarga da rotina isola e engolfa a protagonista em seus problemas e aflições. A válvula de escape é superficial, levando-a ao esoterismo e seitas que, de alguma forma, tentam acalentar e prover algum senso de união. 

Em um contexto de isolamento e pandemia, as plataformas virtuais e sociais nos apresentam, de forma não filtrada, um catálogo diverso de realidades paralelas para acreditarmos e seguirmos, tal qual o esoterismo da personagem de Xerxenesky. Somado a isso, a ausência do calor da interação física tende a nos levar a conexões virtuais mais profundas, as vezes escancarando a fragilidade da maior parte de nossos contatos cotidianos. Percebemos que nos afastamos de pessoas outrora próximas, sendo contaminados por centenas de relações superficiais que consomem nosso tempo e paciência, mas inflam nosso ego.

Assim como Brás Cubas confia sua ingenuidade e seu egoísmo ao seu amigo e filósofo Quincas Borba nos findares de sua vida terrena, tendemos a confiar nas informações que nos protegem, nos aproximar daqueles que nos dizem sim e nos afastarmos a la carte daqueles que nos negam. Bombardeado de informações e carentes de contato, a bolha da internet nos isola cada vez mais. Vivemos, enfim, com três tipos de isolamento simultaneamente em curso: a solidão natural humana, a solidão física e a solidão virtual.

Ainda longe de compreender a quarentena que hodiernamente vivo, vou dormir. Segundo o defunto autor, aliás, é uma forma interina de morrer. Xerxenesky sabiamente pontua: é a morte que coloca as coisas em perspectiva. 

Prossigamos.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Pelo binóculo - Diário da Quarentena


A acomodação é uma forma distinta de manifestação do medo. O medo, em suas múltiplas faces, se apresenta em situações que colocam em cheque nossa individual percepção sobre nós próprios. É um sentimento particular que nasce da nossa paralisia pessoal diante de situações e tende a nos levar, irracionalmente, a penosas atitudes inconsequentes. Heidegger destaca que o medo nos tira a capacidade racional de atribuir sentido e nos deixa à mercê das perspectivas impostas, além de aquém das nossas próprias reflexões. O medo nos leva a postegar o inevitável, minimizar as consequências danosas da inércia e distrair-nos com a banalidade. O medo da morte, como o filósofo dedicou parte dos seus escritos sobre, é o mais ardiloso, pelo decesso ser infalível e habitualmente distante. Prazos largos são fáceis de sobrescrever, como as palavras machadianas outrora destacaram: a nossa imaginação os faz infinitos.

Distante era a ameaça no vírus quando surgiu na China e forçou as autoridades a fecharem um dos maiores complexos urbanos do mundo. O fechamento completo acendeu o alerta vermelho pelo planeta, e forçou países ocidentais a tomarem decisões raríssimas em democracias liberais, como a limitação na circulação e fechamento de comércios e demais setores destacados como não essenciais. Batendo na porta, a solução foi agir rápido. Hesitar seria brincar com a morte alheia, um jogo custoso de decisões de olhos vendados. A ciência é o guia e a medicina, a infantaria regular, fadada ao ônus da linha de frente, encarando o medo da morte. Chegando ao Brasil, no nosso lado, a realidade distante parece presente e a inércia da sociedade civil apresenta-se mais uma vez.

O que esperar de lideranças negacionistas e egoístas, que evitam diálogo e adotam o confronto permanente? O que esperar daqueles que negam a articulação e tentam impor as suas verdades ideológicas ao desmontar as instituições, entre elas o sistema universal de saúde? 

Há uma semana quarentenado em casa, vejo uma descoordenação geral das forças que deveriam estar agindo de forma articulada para combater a ameaça à vida das pessoas. Estamos rumando para o olho do furacão, que chegará antes da ficha cair, em um curto prazo. Que o medo, independente da origem, não nos paralise e que tomemos as decisões racionais e fundamentadas.

E esperamos, por ora, que Keynes esteja errado para o longo prazo.