Era tarde da noite quando aqueles dois homens cruzaram o Jardim Burle Marx, num tortuoso e descompassado caminhar alcoólico. A dessoante conversa entre os dois era praticamente inaudível entre os estridentes grunhidos, soluços e prantinas que a bebida — ou talvez os pensamentos soturnos e impudicos que afloravam com o álcool — fazia com que se misturassem à tentativa infeliz de comunicação. Para quem olhava de fora, a cena, que parecia um comum e triste um fim de noite no centro da capital federal, era cômica e vexatória, mesmo que, para os dois compadres, estivessem plenos de suas ações e entendiam-se como em uma comunicação morcegal particular.
Alguns minutos antes, tinham se alcoolizado em um bar clandestino nas vizinhanças da praça; clandestino pois não deveria estar aberto e recebendo seus leais e ébrios clientes. No entanto, a cidade, fechada para evitar a praga que se espalhava, contava com garagens semicerradas as quais, em seus interiores fechados, pouco ventilados e cheios de calor e contato humano, mantinham a vida boêmia dos trabalhadores urbanos ativa como se nenhuma doença mortal estivesse na porta ao lado. Não apenas se espalhava, mas causava danos irreversíveis àqueles que ousavam enfrentá-la ou minimizá-la. Aos que a subestimava, era a visita de Azrael em espírito que os aguardava para conduzi-los ao necrótico fadário. No entanto, os corajosos companheiros nada temiam sob seus farrapados uniformes laborais, apenas querendo descarregar a rotina sobre doses repetidas de cachaça e vodca baratas. As sirenes que colaram à porta foi o sinal de debandada e os sons das borrachas estralando sobre a carne proletária fizeram com que os homens tomassem seu caminho forçado rumo à noite clara do planalto.
Abraçavam-se para se afastarem das trêmulas luzes coloridas da viatura na máxima velocidade que seus ébrios pés os permitiam, entrando em alamedas e vielas mal cuidadas, perdendo-se no escuro da noite brasiliense. Cessando-se, pois, a sirene distante, ficaram ao sereno os homens ao tentarem se recompor da fuga cinematográfica que imaginavam em suas mentes confusas e enérgicas. Em um daqueles estreitos caminhos de concreto, uma luz emanava de uma porta de enrolar semiaberta, chamando os dois companheiros como o canto da Iara a iludidos e sonolentos pescadores. O primeiro homem, o mais magro e atlético da dupla, esgueirou-se sob a porta e a abriu pelo lado de dentro, espaçando-a suficientemente para que seu baixo e atarracado companheiro pudesse se juntar a ele. O recinto era pequeno e mal iluminado, o que nada assustava os dois homens, que, com a visão levemente turva, não identificavam o fim do aposento e continuavam, a passos curtos e atrapalhados, seu caminho pelo sinistro cômodo. Vazio até então, uma escada íngreme descia até um porão, de onde emanava um forte cheiro de aguardente e atraía os alcoolizados companheiros como besouros à luz branca. No entanto, não estavam sozinhos naquele ambiente.
À meia luz, um estranho grupo de pessoas sentava-se em uma mesa redonda, em um cenário mórbido, cercado de fuzis e outras armas de fogo. Ao lado da mesa, bandeiras nacionais manchadas de sangue espalhavam-se aos montes, cobrindo enormes e empilhados tonéis de cachaça de segunda linha. Crucifixos boiavam em poças que vazavam dos recipientes, além de dezenas de outros que pendiam de diversas formas diferentes entre os presentes, muitas vezes quebrados ou desfigurados. Sobre o homem ao centro da mesa, o crucifixo era invertido, apontando para a cabeça do sujeito, cujas órbitas afundavam-se em seu crânio, dando um ar caveirístico ao capitão da mesa, somado ao queixo marcantemente pontudo e peles escorridas sobre sua face. Claramente era o que ordenava e parecia tudo o que sabia fazer, esbravejando ao ares daquele porão apertado frases ininteligíveis, que fizeram os dois visitantes torcerem o nariz em estranheza. Ao avistá-los, o presidente da mesa gargalhou e pediu que se aproximassem, o que fizeram sem hesitação, visto ao insaciável desejo alcoólico da dupla.
Notaram, mas não se atentaram, a estranheza dos demais membros daquela reunião bizarra. O capitão presidente apresentou-se e os demais integrantes da reunião: — Sou o Rei Corona I, minha palavra é a lei, tá ok? Esse é a família real Corona e seus nobres servos —. A direita do Rei Corona, um sujeito rechonchudo com rosto incrivelmente redondo curvou-se ao ser apresentado como Príncipe Corona 02. Sua boca incrivelmente pequena causou estranheza aos dois convidados, que já embebedavam-se da cachaça servida em fálicas mamadeiras, servidas pelo sujeito apresentado como Príncipe Corona 01. Esse apresentava um rosto com aspecto excessivamente alaranjado, como uma cenoura bronzeada e sentava-se ao lado do último dos príncipes, o Príncipe Corona 03, cuja cisura militar contrastava com sua enorme e desfigurante testa, que ocupava dois terços de seu rosto. Além desses, o Rei apresentou os outros três membros da mesa como sendo o Duque Ipiranga, um velho com expressão de buldogue e com pelos grisalhos cobrindo grande parde de seu corpo; e as duas únicas mulheres da mesa como a Rainha Corona, uma jovem arrebitada e dissimulada que tossia sem parar e, finalmente, a Marquesa Elsa, baixinha e atrofiada, com enormes olhos e rugas profundas, adornada com dezenas de crucifixos e símbolos cristãos.
Além das doses excessivas de álcool, os presentes ofereceram cápsulas de algum tipo de droga, que, ao clamor caloroso do Rei, os dois homens ingeriram, sem bem ao certo saberem o porquê — e sem nenhum efeito posterior. Com a palavra e em meio aos soluços, o mais alto dos convidados questionou ao rei algo que o incomodava: — Afinal, o senhor é Rei do quê? — Constrangido, o Rei ergueu-lhe a voz: — Entra na minha sala, interrompe minha reunião de salvação do país e ainda questiona meus domínios? Eu mando em tudo isso daqui, tá ok? Do europeu inverno do norte à riqueza do sul. Dos gados do oeste aos gados engravatados do leste —. Não convencido, o segundo homem dispara: — Certo, manda em tudo e não tem uma bebida de qualidade pra oferecer? —. O tom de deboche e afronta do convidado fez com que o Rei iniciasse um esbravejamento, enquanto aplaudido por todos na mesa (por exceção da impassível Rainha), e causando ainda mais gargalhadas dos amigos bêbados.
— Isso é uma afronta ao meu poder! Sou eu quem mando nessa p****! — O Rei, em sua ira, encarou com seus olhos afundados olhos o baixinho bêbado que, em um momento de epifania alcoólica, notou uma estranha semelhança: — Você não é rei coisa nenhuma! É o criador de emas do jardim da esplanada, não é rei nem de sua própria cadeira! Hahahaha!! —. O assombro do comentário percorreu todos os presentes: "Blasfêmia! Blasfêmia!" gritava a Marquesa; "Comunista, fuzila, fuzila!", vociferavam os Príncipes; "Privatiza, privatiza!", bravejava o Duque (a Rainha permanecia em silêncio e sem expressão). Em meio às risadas dos dois intrusos, o Rei sacou um revólver e, sem a menor destreza com o artefato, disparou e tentou atingir os recém-sentenciados inimigos da nação. Com o susto, os homens jogaram-se contra as barricas que se equilibravam ao redor da mesa, dando início a uma confusão generalizada. Tambores de cachaça caindo sobre a mesa, estourando e inundando o ambiente; diversos fuzis disparando com os impactos das barricas sobre eles; Príncipes tentando agarrar os bêbados que corriam desesperadamente para as escadas, nadando no álcool e nos comprimidos que nele boiavam.
Correndo ofegantes em direção a rua e deixando o portão para trás, os bêbados desabaram na calçada, conforme os gritos de agonia das disformes criaturas da reunião deixaram de ser ouvidas. Aliviados e gargalhando, os companheiros adormeceram sobre a sarjeta, desprovidos de qualquer senso de localização. O único som que ouviam, além dos pássaros noturnos do planalto é a própria tosse, que parecia estar começando a se apresentar.
—— Esse conto é uma releitura do conto alegórico "O Rei Peste", de Edgar Allan Poe