sábado, 4 de fevereiro de 2023

Performance


Extenuados e dopados. Absortos na exaustão, no esgotamento físico e em uma irreal desconexão neural. Um mergulho irresponsável às profundezas da capacidade humana de manter a sanidade. Buscar e expandir um limite elástico, atingir um infalível ponto de ruptura. Sob efeitos de cafeína e de antipiréticos, estamos em busca do limite, aquele que nos ensinaram ser inalcançável e sempre distante o suficiente para tornar-se indistinguível do futuro previsível. Não sente-se o corpo pulsar energia e disposição no agir, mas seu antônimo, um dreno de potência, uma singularidade do não-poder. Sob o apoio e o clamor dos demais, somos motivados a nos sentir dessa forma, como se o vigor e a pura contemplação fossem luxos restritos aos desocupados e vagabundos. Dessa forma, é possível sentir a deterioração do bel-prazer, por mais que nada que nos conduz a essa condição de ressaca existencial seja imposta em oposição a nossos desejos. Muito pelo contrário, nos jogamos ao nosso próprio abismo.

Byung-Chul Han atribui ao “poder fazer” a responsabilidade de querer o inalcançável. Isto é, a um excesso de positividade e auto-cobrança, que nos torna escravos de nós mesmos, pois nos é apresentada uma falsa ilusão de ilimitação. As condições exploratórias de servo e senhor, que por mais de milênio se impunha como a principal forma de submissão e controle de uns sobre os outros, agora torna-se inerente às próprias pessoas, sendo cada um, ao mesmo tempo, a vítima e o réu. Essa dialética individual aflora como uma autocobrança, uma autoexploração consciente, na qual as supostas liberdades do indivíduo o faz pensar superpoderoso, sendo suas vitórias e fracassos decorrentes apenas de suas atitudes. Han contrapõe essa liberdade positiva aos grilhões negativistas de um mundo boomer que pautava-se na imposição externa de regras de comportamento, em que a possibilidade de falar “não” era existente. Nesse caso, o ilimitado poder fazer era sobrescrito por um dever imposto, havendo sempre a ameaça deste ser desafiado por indivíduos ou coletivos que sentiam essa negatividade como um parasita, uma reação de auto-defesa.

Nessa relação de contradição interior que leva a exaustão, esconde-se, como em outros momentos da história, uma luta de narrativas e visões ideologizadas de sociedade. Impor a lógica do poder fazer como uma maneira de impulsionar o desempenho e a performance individual é uma das formas mais evoluídas do fetichismo dominante, criando um isolamento quase à vácuo entre o performante e os reais assorbentes do valor do trabalho. É um mundo dos sonhos para aqueles que buscam, no alheio, sua fonte do valor. É bem claro, portanto, que o fetiche, nesse caso, não apenas transforma os obstáculos em desafios, os problemas em oportunidades e as crises em criatividade, mas altera de forma diametral a relação dialética, fazendo do sujeito oprimido o próprio agente exploratório, enquanto este culpabiliza-se por nunca atingir seus objetivos ditos individuais. O auto-algoz não se dá conta, afinal, de que a liberdade que o direciona ao esgotamento é socialmente imposta de forma a maximizar a geração do valor, escondendo as reais conquistas do trabalho daqueles que sentem-se na ilusão de, finalmente, depois de séculos, ser donos do seu valor.

Seja empreendedor, um investidor em oportunidades de risco, trabalhe enquanto eles dormem, desperte a melhor versão de si. A overdose tóxica de positividade exaure a alma, desgasta o agir e deteriora o pensar. Crie metas, seja ambicioso, supere os recordes, performe e cresça. Cresça e faça crescer. Faça ficar maior, ainda maior, e sob seus ombros, mais pesado, cada vez mais pesado. E queira ser feliz. E busque ser feliz. Sempre feliz. Porque a tristeza, o ócio, a improdutividade são perdas. E ninguém quer perder. Nesse carrossel, pisoteia-se quem deixa de rodar para contemplar o seu entorno. É preciso se manter em movimento.

sábado, 7 de janeiro de 2023

Isso não é uma crônica

Há tempos que não desengaveto um lápis e um papel para escrever. Não que me falte lápis ou papel. Ou assunto. Ou paciência. Certo, talvez falte um tanto de paciência. Mas aqui estou, para retornar ao meu antro de escritor amador. Amador não só porque eu amo escrever (o que não necessariamente seja sempre verdade), mas talvez porque o amadorismo me isente de parte da responsabilidade com as palavras que disparo. Afinal, o atirador de facas deveria ser mais responsável do que o engolidor de espadas. Mas, enfim, mesmo sem papel ou caneta, agora totalmente digital e sem atritos, volto a afiar minhas ideias.

Já digo que isso não é uma crônica. O que me coloca em uma posição de não-cronista, muito mais confortável. Isso porque, sendo um não-cronista, eu posso relatar não-fatos, elaborar não-ideias, ser um não-narrador de uma não-história. E que leveza é o não ser! Lembro que a não muito tempo tínhamos um não-presidente, líder de um não-governo. Claro que não durou muito, o povo é carente. É gostoso, é ebriante, é acalentador escutar um sim!

Eu poderia, sim, me colocar na posição de cronista, mas isso me daria muito trabalho. Imagine, saber que um leitor desavisado estaria esperando algo de mim e dos meus parágrafos? Não tenho essa intenção! Receba essa não-crônica como um presente. Curiosamente, há algumas semanas, encontraram um presente rosa na frente de uma agência bancária na região. Logo chamaram a guarda municipal, que não quis se comprometer em analisar o pacote misterioso. Chamaram a polícia, então, que não quis se comprometer. Chamaram os bombeiros, por sua vez, que não quiseram se comprometer. Nisso vieram o departamento de trânsito, a TV, as rádios, os curiosos, os medrosos. Todos assumindo a não-responsabilidade por aquela caixa super assustadora. Tudo só se resolveu cinco horas depois, quando o esquadrão antibombas chegou da capital e identificou o pacote como um enfeite de Natal que caiu da parede de uma loja nas redondezas e foi deixado na infeliz posição da calçada por um transeunte noturno.

Se eu fosse um cronista, afinal, poderia dizer que a diferença entre um presente e uma bomba é apenas uma questão geográfica e, talvez, social. Ou poderia afirmar que são os presentes mais inesperados que podem virar nosso dia de cabeça pra baixo. Ou ainda dar uma lição de moral sobre a importância de ter amizades com os colegas lojistas das redondezas. Mas não vou fazer nada disso. Como eu disse, esse texto é um presente. E, assim como a maior parte dos presentes que ganhamos sem querer, altas são as chances de não servirem para nada e acabarem esquecidos em uma gaveta empoeirada.

De qualquer forma, é bom estar de volta, imerso novamente nesse processo criativo de transformar divagações e epifanias em algo minimamente legível e coeso. Talvez em breve eu escreva uma crônica de fato, com um começo sem graça, um desenvolvimento não muito inovador e um final óbvio e insosso. Por enquanto, fiquemos com essa, um ode ao não ser, que acaba definindo muito sobre nós. Enfim, uma certeza temos: mesmo sendo essa uma não-crônica, você, leitor, permanece leitor. E se existe algum valor nessas palavras, é porque, acima de tudo, você as concedeu esse mérito. Como um punhado de areia, uma vez lançado ao ar, perdemos o controle do seu destino. Pode voar pra bem longe e perdermos de vista. Ou pode voltar diretamente na nossa cara.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Carta a uma mortal


É difícil negar que a morte não tem sua beleza. O tinir das lâminas, os cânoros daqueles que sofrem e desferem os golpes, o perfume de sangue no ar, tornando ébria a mais pura das criaturas. Eu não sou um assassino. Mas presenciar o massacre da minha família me tornou frio. Frio como uma rocha dos cantos mais sombrios de Insweal, onde o sol não alcança e o medo rebrota.

Não sentia medo da morte. Não sinto. Não sou como você, eu nasci para a vida. Nasci para o brilho do leste, alimentando-me do nascer da manhã após uma noite desfrutando dos prazeres féericos. Ser mortal é viver olhando para o abismo, é a certeza do fim. Me diga, como é ser a mais fraca das criaturas, que nasceu pra servir? Criatura tão inócua e facilmente manipulada? Como é amar um mundo que está te sufocando e te matando a cada segundo? Não sinto medo, mas aprendi a respeitar e a odiar a morte. 

É dificil amar, mas o ódio me alenta. Ou, pelo menos, não sei amar sem odiar. Amava e odiava meu pai, Dain, Baleskin. E odiava amar a mim mesmo. Acima de tudo, odeio minha fraqueza. Um rei não pode ser fraco, submisso a nada nem ninguém. Por isso eu nunca quis a coroa, a supremacia de um grande rei feérico é um poder que algema. Meu maior medo é a minha própria fraqueza. 

Somos tão diferentes, vil mortal, mas nosso receio do futuro, nossas dubiezas do porvir nos entrelaçam mais que a coroa me permite admitir. Também quero encontrar meu lugar no mundo, por mais certo que os outros me fazem sentir que ele está. Olho ao redor e vejo o que não tenho, introjeto o desprezo e devolvo em vitupério. Você tem o que não tenho, um motivo, uma busca, tempo.

Valorize a finitude do tempo, a efemeridade das experiências. Por mais irônico que seja, ser uma mortal insignificante te afasta da angústia feérica do eterno, da perfeição intangível. E liberte-se dos fantasmas do passado e do temor do futuro. Mais vale um instante de êxtase e liberdade legítima do que uma eternidade taciturna, mesmo que nas torres mais luxuosas do palácio. 

Verba volant,
Grande Rei C. G. de Elfhame

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Inspirado no livro O Principe Cruel, de Holly Black

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Aquele que corta a terra

Naquela hora do dia, quando as sombras eram longas, certa era a companhia das três mulheres. A terra-mãe, ó bela e dourada Oxum, me fizera imortal e cuidara de mim com ternura, para que desse vida aos seus filhos e filhas, durante décadas, séculos. Meus cantos ecoam através das árvores, atraindo as caças e os caçadores, amigos e inimigos, que de mim retiram sua energia vital. A verdade, grande mãe, é que a imortalidade é a resignação do tempo. Passo, mas continuo; nasço e morro no mesmo instante, vendo por mim transitarem as mais belas criaturas mortais, zombando com a intensidade de uma alma passageira. Intenso sou quando Oxumaré me visita, mas não com o fervor da vida fugaz, não com a pujança daqueles que sabem que se vão. A muriçoca busca em minhas fronteiras onde despojar seus ovos. Sabe que são apenas poucos seus dias nos ares e logo retornará à terra, aos braços de Aiê, mas deve completar sua missão e deixar sobre os ares seus descendentes. Serão eles sua eternidade, uma eternidade que eventualmente se acaba, mas nas gerações se perpetua. Intenso é seu movimentar, na impetuosa busca pela continuidade.  Eu, no entanto, sempre estive e sempre estarei lá; passo, mas continuo. Se não es tu, donzela dourada, para acompanhar-me na imortalidade, seria solitário em uma dança contínua e enfadonha, cortando a terra com a mesma lâmina d'agua em todos os nascimentos do sol e da lua. Não tenho ovos nem descendentes, mas de mim depende toda a progenitura dessa terra, a minha missão é estar e partilhar. 

No entanto, minha bela Oxum, mulheres como aquelas faziam-me sentir a vida além das minhas raias. Na alvorada, cada uma trazia consigo um jarro de barro. Aproximavam-se de mim com respeito, curvavam-se de joelhos e enchiam o jarro com a fresca água da manhã. A algidez do meu toque aliviava as dores das mãos das senhoras, que pareciam ter semelhante idade. A musculatura de cada dedo relaxava ao me sentirem, penetrando suavemente sobre as feridas nas articulações e na palma de suas mãos. A vibração dos seus corpos reduzia-se, e a calma das margens os inundava. A experiência da perpetuidade, você compreende, deu-me a perspectiva do sofrimento, apenas as mais vividas criaturas conseguem o compreender. Aquelas mãos são de pessoas que sofrem. Os cortes que diariamente lavo não alimentam suas crias, sua boca. São cortes da exploração. Enquanto aquelas mulheres possuem dezenas, dezenas não possuem uma esfoladela que seja. Mas o meu toque matutino é o alívio às dores da labuta. Retornam com os jarros cheios, adentram a trilha que as reconduz de onde vieram. 

Voltam a mim quando as sombras são curtas, agora com o cesto de panos coloridos. Concordamos, donzela dourada, que as cores são os mais claros sinais de cisão entre as pessoas. As vibrantes cores daquelas roupas contrastavam com as desbotadas e surradas vestes das lavadeiras, que redobravam a delicadeza das mãos calejadas ao esfregar suavemente os tecidos. Claramente não é a delicadeza da mãe ao amamentar um bebê, ou do toque carinhoso à pessoa amada. Era uma delicadeza do medo, não natural. Um rasgo nos panos poderia ser retribuído com um às costas, o que claramente temiam as senhoras. Nesse momento, porém, não era incomum que adentrassem de corpo cheio às minhas águas, banhando-se de forma quase ilegal, fora dos olhos daqueles a quem serviam. Ah, mas como era revigorante, com eram quentes e arredondadas aquelas formas, energia pulsante adentrando a placidez das margens rasas. O sol as dourava e eu as sentia. Compartilhávamos naquele momento a plenitude, a eternidade de um segundo, momento em que toda a onipresença do tempo resumia-se ao contato entre dois filhos da terra-mãe, mesclando a calmaria ao padecimento. Sentia, de forma quase imediata, o raro sorriso dos seus rostos; as lágrimas, por outro lado bem mais comuns, eram uma frequente adição as minhas várzeas.

Naquele outro dia, no entanto, não vieram. No seguinte, vieram duas. Tocaram-me como de costume, ao encher o vaso, e eu senti a frieza das outrora peles escaldantes. A frieza da perda, minha nobre Oxum, sinto em todos os seres vivos. Sinto no lobo que perdeu a ninhada ao caçador, ou no pássaro que lesionou as asas e perdeu os ares, ou ainda no girassol que perdeu sua primeira pétala após seus dias ensolarados. Mas as perdas humanas eram distintas. Algumas não lhe eram perdidas, eram-lhe tiradas. Das trivialidades mortais como comer ou dormir, à totalidade da vida. Eram ceifadas pelos seus iguais. Essas eram perdas mais gélidas, rompiam-se os elos da espécie, a unidade de ser. Nos conectamos naquela manhã, e nos comunicamos. Poucos são os que ainda me compreendem, as vozes das águas apenas ressoam naqueles que param e ouvem com todos os seus sentidos. Mas, por mais fantástico que pareça, elas me ouviram, e eu as ouvi. Não choro, mas absorvo as lágrimas com pesar. Nos abraçamos, eu, as mulheres e a mata, enquanto os jarros vazios padeciam ao nosso lado. 

Das minhas nascentes á foz, grande mãe, as criaturas pulsam de formas distintas. Mas a morte, essa pulsa apenas nos que estão vivos. Talvez um dia eu saiba o que é o fim, talvez aqueles a qual sirvo me matem de forma vagarosa, até não sobrar um único fio de água sobre meu o leito. Até lá, mantenho a experiência das mulheres, que continuaram sendo três pelos longos anos seguintes que as duas senhoras me visitaram diariamente. Pode ser esse sentido do fim, um afluente. Desaguamos nossa vida nos outros e, na seca, nos eternizamos nas águas que fluíram de nós ao manancial.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Retrospecto - Diário da Quarentena

O amor é amálgama. Nos versos de Camões, "transforma-se o amador na cousa amada [...], em mim tenho a parte desejada". Na mecânica, uma liga entre dois sólidos não é possível sem energia. Pode ser energia térmica, que arde e aquece até derretê-los. Em um novo estado, as diferentes matérias combinam-se em como líquidos, para depois retornar ao sólido em uma nova composição, única e unida. Pode ser também energia mecânica. Nesse caso, é necessário atrito, muito atrito ou ainda choque, compressão e estresse dos materiais. Isso pode os fragilizar, alterar suas propriedades fundamentais e criar pontos de tensão para possíveis rupturas no futuro. A dor e o ardor que transmutam-se na tábua de esmeralda do amor foi genialmente explorado pelo poeta português: como se pode fazer bem se tão contraditório é?

Contraditório e romanesco foi o ano de 2020. Um ano que colocou o viver sobre uma nova perspectiva. O viver e o conviver. O efeito estupefacente da pandemia expôs as entranhas do sistema social sobre o qual o mundo boia, sobre o qual a frágil e vulnerável raça humana tem empilhado os maiores feitos ao longo dos séculos. A morte, o caos e a solidão mudam a forma das pessoas verem sua própria existência; mudam a forma das pessoas encararem a realidade que a cercam; mudam a forma de prospectarmos e olharmos adiante. A morte coloca tudo em perspectiva. Ela nos custa tudo, custa a vida. Para muitos, foi o que definiu o início da nova década.

No entanto, existe uma palavra melhor para definir o ano pandêmico: o estro dos grandes poetas, o "não querer mais que o bem querer". 2020 pôs o amor à prova, em escala global. O que foi posto em cheque não foi o amor poético e romantizado, aquele amor dos casais apaixonados e dos mestres da Academia de Atenas. A humanidade teve que encarar o amor real e pragmático, aquele que traduz-se em atos concretos, a ponta de lança das relações humanas. O amor que colocamos à prova foi o amor cristão original, o amor de caridade e entrega, a fraternidade em sua essência mais pura, o sacrifício pessoal na cruz para a salvação dos outros. É fazer valer, como sociedade, o artigo terceiro da declaração dos direitos humanos.

As escolhas se apresentavam na frente de cada um, amar ou não amar, a cada dia. O ato de isolar-se para proteger; o ato de privar-se do prazer para que se fosse permitido aos outros viver; o ato de abrir mão da alegria instantânea para que ela fosse compartilhada no futuro. Doação do imediatismo, doação do próprio ego. Essa foi a essência do amor pragmático de 2020. Muitos tiveram êxito, muitos fracassaram. De qualquer forma, ele transforma. Transformou as amizades, separou quem ama de fato e quem se ama de fato. Transformou as relações pessoais, valorizando o caloroso dentro do frio isolamento. Transformou a caridade: não se faz por alguém, se faz por todos. 2020 mostrou, acima de tudo, se estamos preparados ou não para amar.

Na pandemia, vemos nós próprios nos outros. É mais um poder do amor, nas palavras do poeta lusófono: um claro espelho, onde no outro vereis a vossa alma. Uma mistura de sentimentos que só faz sentido quando vivido e partilhado coletivamente. Passamos e estamos passando juntos pela avalanche, por mais que existam gigantes rolando pedras pela encosta para tentar nos derrubar. Aos poucos que ainda optam por amar, que 2021 traga o sino da esperança ao campanário do carneiro. De 2020, fica a saudade, principalmente daqueles que se foram, literal e figurativamente. Segundo Camões: "Enquanto houver no mundo saudade, quero que sempre seja celebrada".

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Dissonante - Diário da Quarentena

 

Não à toa aquele era chamado Pavilhão de Aurora. Os vitrais prismáticos ao leste refletiam o raiar do amanhecer, de forma que o seu interior enchia-se de uma paisagem caleidoscópica de cores e imagens abstratas. Nada como direcionar de forma correta os raios solares para se ter um dos mais belos shows de luzes, causando inveja a qualquer diretor da West End. O espectro de cores invadia o palco do pavilhão, onde a pianista dedilhava. Era um espetáculo passageiro, menos de uma hora durante a alvorada. Sabendo disso, era nessa hora que ela entoava suas bachianas. De fato, ela apenas repetia inúmeras vezes a introdução do segundo concerto de Brandenburgo. Segundo a tradição austríaca, quando Bach a compôs, as estrelas se puseram a dançar no céu a valsa do quarto dia. As notas ressoavam nas paredes, as luzes e a música entrelaçavam-se como amantes platônicos, apaixonados e distantes, completando-se e jamais se tocando. No palco, a pianista solitária acertava cada nota, cada tom, cada tempo. Transbordava-se de êxtase em cada arpejo, e subia de tom como na escadaria de Jacó. Estava solitária no palco. Estava solitária em todo o teatro.

Naquela hora deveria ocorrer o concerto da alvorada. No final do ano, tocavam-se bachianas intercaladas com mestres russos, compondo a temática natalina da casa. As manhãs eram cheias de energia: o canto dos instrumentos, o espetáculo celeste e o calor do público compunham a tríplice. A pianista não se apresentava nesse horário, era exclusivo para a orquestra dos grandes mestres. Ela ainda não fazia parte desse seleto grupo e talvez nunca fizesse. Seu coração vivia nas teclas do piano como protagonista de sua existência e assim queria que ele fosse ouvido, sozinho, para encanto de um público entorpecido pelo soar do encordoamento sobre a tábua harmônica. Admirava os grandes solistas, os mestres do dedilhado e discípulos de Beethoven, aquele que ouvia com o tato. Poucas foram suas apresentações como vedete, em geral a um público diminuto e em horários pouco nobres. Minha nossa, mas como era diferente tocar sob o nascer do sol! Era ele, o astro de Hélio, o único que poderia roubar-lhe o protagonismo. Era como banhar de cristal uma escultura de um escultor barroco, preservando-a dos olhares alheios que a corroem. Tocava, então, para a plateia vazia.

Entrava no teatro ainda durante a madrugada, conhecia o macete para destravar a porta dos fundos sem precisar da chave. Tocava para ninguém, sempre as mesmas notas, todas as manhãs desde aquele outro dia. Tocava, na verdade, para o dia que raiava. Era a forma que tinha de unir-se ao sol e buscar forças no calor que ele emanava. Naquele outro dia, tudo lhe faltava: energia para sair da cama, motivação para dar passos, esperança de que o poço tivesse um fundo. Agora tocava, portanto, para o grande astro, que lhe enviava a mais bela luz para compor o espetáculo da manhã, cuja bachiana sonorizava a amálgama perfeita dos sentidos. Aquele outro foi seu dia da Normandia, o seu ataque final ao inimigo interno. Suas mãos tremeram quando levantaram o tampo daquele piano sobre o palco pela primeira vez. Havia meses que não tocava nenhuma nota, e as primeiras soaram como agulhas sobre uma ferida aberta, sem anestesia, sentindo suturar de forma pouco usual a úlcera em seu peito. Dentre todos os motivos, porém, em todas as manhãs ela tocava para ele. Sim, era para ele que tocava.

Quando ele a levou à primeira aula de piano, mal conhecia o instrumento. A menina estava apaixonada por aquelas teclas bicromáticas desde que o vira pela primeira vez em uma loja da cidade. Insistiu, e ele a apoiou. Ao longo da trajetória, ela pensou em desistir inúmeras vezes. Não tinha destreza nos arpejos e faltava-lhe dedos para tirar Schubert do papel. Ele a ensinou a fechar os olhos para os outros e atiçar os ouvidos aos sons das cordas do instrumento. Era o dedo que faltava à ela. A jovem pianista não pode se despedir daquele que esteve ao seu lado na fila das audições e na primeira fila de seu solo de estreia. A última fila que estiveram juntos foi a da UTI, após dias de espera por uma vaga. O mundo estava em colapso, o sofrimento daquele que amava dilacerava seu brio, sentia-se indefesa, impotente. O poder que sentia ao dobrar o piano às suas vontades era uma ilusão que não se traspunha à vida real. Ele sofria, faltava-lhe ar. Antes de assumir seu leito, disse à filha que guardasse suas lágrimas. Elas poderiam lhe ser úteis no futuro.

Naquele outro dia, quando viu o sol atravessar os vitrais sobre a plateia vazia pela primeira vez, já se fazia um mês que seu pai partira. Fora levado por aquele que paralisava o mundo. Para a pianista, no entanto, era a tristeza que a paralisava. Uma tristeza sem lágrimas. Apenas o mais profundo pesar e escuridão de pensamentos. Naquele outro dia, não saíra de casa com o intuito de renascer, mas de abandonar sua existência. Tiraria sua vida sobre o palco, como a apoteose do seu drama, o príncipe da Dinamarca escolhendo não ser. Naquela madrugada, com os comprimidos no bolso, abriu a porta dos fundos e adentrou o pavilhão como Anna Karenina, presa em seus próprios sentimentos de pesar. Seu posfácio precisaria ser musicado conforme os mestres a ensinaram. A arte, que é a libertação, pode ser o sofrimento e a desilusão de uma alma despedaçada. As primeiras notas saíram em um tom estranho, fora da bela forma que o alemão a compusera. Tecla após tecla, som após som, dor, dor, dor, dor. 

Hoje completam-se alguns meses daquele outro dia. Quando as luzes invadiram o palco, as notas, finalmente, entraram em harmonia. Foi aí que vieram as lágrimas. Represadas, vieram como seu pai havia previsto em seu último olhar, seu último sorriso. Vieram e lavaram. A sua tríade se completava: luzes, sons e lágrimas. Tocava a introdução, repetia e chorava, repetia e chorava. Quando a alvorada enfim se foi, levantou-se e saiu do palco. Voltaria no dia seguinte, e no próximo, e no posterior, até o dia de hoje e além. As lágrimas a tempo já secaram, o seu espetáculo da manhã era, agora, sua dose diária de morfina. Finalmente, hoje, tocava para si mesma e, sob a benção de Aurora, Hélio e Bach, atravessava o mundo dissonante, onde a dor, o medo e a esperança formavam a tríade da realidade. Ao final do amanhecer, fecha o piano e agradece ao público oco. Eles se veriam no dia seguinte.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O sino - Diário da Quarentena

 

Espera-se ansiosamente a quinta badalada. Isso representa, para o jovem operário, o fim de sua jornada de trabalho. Desde a primeira hora, na verdade, nada ocupa mais a mente do rapaz do que a perspectiva do fim. É na quinta badalada que seus problemas se encerram, se guardam nas gavetas do vestiário trancadas à chave. Era o milagre do sino. Na quinta badalada o rapaz estaria livre. Livre para que, na verdade? Livre, apenas. 

É lá fora que está a vida, não aqui. Lá as pessoas são alegres, sorridentes. Lá os casais trocam confidências e se amam despretensiosamente, sem regras de comportamento ou metas a bater. É lá que podemos dançar, beber, sair de nós e do nosso mundo, migrar para onde o tempo e o espaço não fazem tanto sentido. Aqui é o martírio, a prisão de Ícaro. A quinta badalada são as asas. Asas da liberdade e da morte.

Lá fora também está a morte. A violência, a dor. A dor é o caminho tortuoso. Morte sem dor pode ser um suplício, um lapso da existência em ruptura. A dor é a cruz. O poeta de Moçambique dizia que o mundo seria melhor se todos os mortos tivessem sido enterrados sorridentes. A morte é um processo degenerativo, morre-se em etapas. Primeiro morre a confiança, o afeto; depois se vão os amigos, a família, as âncoras; vão-se as horas, os dias, as luas e as luzes; por fim se vai a esperança e a fé. Quando nada mais resta, padece, finalmente, o corpo e a existência. Nesse processo, a dor toma o lugar do alegria; no leito derradeiro sobram-se poucos sorridentes. 

Os olhos jovens, no entanto, pouco enxergam da dor do oeste. O epílogo da existência é uma preocupação longínqua. A esperança arde, como as chamas do sexto círculo, chamando-os aos pecados do mundo que os aguardam. O trabalho é a prisão; o sino, a libertação. Esse é o dilema da esperança: enquanto ela se faz presente, o presente torna-se transitório. Em um presente transitório, pouco se faz para viver nele, no aguardo do futuro ideal construído no amálgama da esperança. Ela dá energia para prosseguir, suportar, mas pouca voz de comando à ação, à transformação.

O sino é a esperança. Tudo estará melhor após a quinta badalada. Basta o sino ressoar, chegar aos ouvidos dos trabalhadores, que a vida se inicia. O que fazer antes do sino? Não há antes. Há apenas o depois. E o mesmo se repete no próximo dia. E no seguinte. E no seguinte. A crueldade da esperança é a transitoriedade. Hoje ela é uma rocha, amanhã deve se metamorfosear para permanecer firme. O sino irá tocar, a liberdade chegará. Mas até o sol nascer mais uma vez. Na nova alvorada, espera-se o metal ressoar mais cinco vezes. 

O jovem caminha para casa, era o sexto badalar do sino. Sobe as escadas do prédio quando ouve-se a sétima. Come na oitava, banha-se na nona. Olha a noite escura pela janela, ouve-se os gritos distantes da cidade, décima. Na décima primeira o sono assoma-se. No abrir dos olhos, a esperança renasce, os grilhões estão novamente selados até a quinta badalada. Na quinta badalada o rapaz estaria livre. Livre para que, na verdade?

Livre, apenas.