Naquela manhã, acordei repentinamente de um pesadelo. Era cedo e as primeiras luzes da manhã ainda se esforçavam para adentrar o quarto, através das amplas venezianas da parede. A sensação de retorno a realidade daquela forma é estranha, uma mistura mal calibrada entre desorientação, hipersensibilidade e uma boa dose de náusea. Os míseros raios do sol pareciam grandes labaredas de fogo, prontas para se alastrarem sobre meu corpo anestesiado, que acabava de retornar de uma viagem. E que viagem! Normalmente meus pesadelos não se diferenciavam muito de cenas de filmes que assistia naqueles tempos. Quedas de arranha-céus no centro de Nova Iorque, perseguição por Serial Killers nas florestas de Sherwood, problemas com munição no meio de guerras, e por aí vai, sem nunca entrar muito no campo da criatividade. Mas naquele dia algo tinha realmente me incomodado.
Após alguns segundos de tortura sensorial, finalmente consegui reunir forças e me dirigir ao banheiro. Abri a porta, meio cambaleante, e debrucei-me sobre a pia. Ter sonhos lúcidos é raridade. Pesadelos lúcidos, certamente não lembro a última vez. Era o centro de uma grande cidade pré-moderna, certamente grandiosa como Londres na iminência da Revolução Industrial, mas com arquitetura que remetia-se aos grandes mercados árabes da idade das trevas. Peguei um punhado de água gelada e atirei em meu rosto, tentando eliminar o suor resultante daquela perturbadora experiência noturna. O espelho ajudou a recuperar parte da minha noção espacial, estava retornando lentamente a um estado de mínimo autocontrole. Camelos e cavalos estranhamente andavam lado a lado, carregando enormes árvores em seus lombos com um grande vigor. De todos os lados, homens, mulheres, macacos, cães, girafas formavam o caótico e bizarro ambiente, todos emitindo sons igualmente incompreensíveis.
Os problemas de desorientação matinal são prontamente resolvidos com café, o qual fiz questão de preparar com o dobro de pó naquele dia. O local parecia um mercado, porém não identificava nada que estava à venda. Neste ambiente tumultuado, todos pareciam se entender e se comunicar normalmente. Todos, menos eu. Andava de um lado para o outro, mas nada fazia sentido: não existiam placas nem um vestígio sequer de escrita; as vestimentas eram feitas de palha, e as construções, de ouro e carvão; os transeuntes se ajoelhavam quando algum rato ou inseto estava por perto, em um estranho gesto de reverência. Fui inundado por um sentimento de estranheza crescente, a medida que as pessoas começaram a se dirigir a mim, primeiro com os olhares, seguidos por aqueles ruídos estranhos. Corria o quanto podia, mas estavam por toda a volta. Meu coração acelerou. Tropecei e caí na escuridão de um buraco.
Nem mesmo o café mais forte estava surtindo efeito. Quanto mais eu despertava, mais claros ficavam os momentos desesperadores que frutificaram da minha imaginação alguns minutos atrás. Ao levantar do abismo, o mundo se transfigurou. Estava no centro financeiro de São Paulo, na Avenida Paulista. Tudo parecia normal, altos prédios, grande movimento de carros. Mas só me dei conta disso depois de despertado. Em meus devaneios, nada fazia sentido, novamente. As roupas pretas dos homens, os artefatos dourados nos pulsos das mulheres, aquelas luzes que faziam as pessoas pararem e se deslocarem, enormes veículos de aço que não colidiam, mesmo andando lado a lado. O que era tudo aquilo? O coração acelerou, o ar escapava dos meus pulmões, o mundo começou a girar. Caí de joelhos, sem ação e acordei com um solavanco.
Minha cabeça latejava sem parar, os detalhes daqueles momentos distópicos não paravam de ir e vir dos meus pensamentos. Tudo pareceu tão real, mas tão estranhamente caótico. Ou, pelo menos, para mim. O quão frágil é a ordem da nossa vida? Um gole após o outro e a amargura do café sem açúcar colidia com a acidez do meu estômago vazio, reforçando a náusea que ainda incomodava. Dirigi meu olhar com cautela ao relógio na parede. Os ponteiros giravam como sempre, seguindo o mesmo padrão de sempre. Um padrão que não faria sentido para mim, parado naquela avenida movimentada. Eu não o conhecia. Não conseguiria comprar uma mercadoria sequer naquele bazar, jamais aceitariam meu dinheiro e eu nunca o gastaria com o que quer que estivessem vendendo. Que valor o Real tem para quem não acredita nele? Que significado os sinais de trânsito têm para os que nunca pisaram em uma cidade contemporânea?
Fui até a varanda, precisava de algo mais forte. Duas doses de whisky depois e eu não sabia mais o que fazer. Minha mente pulsava a mil, mas meu corpo parecia não responder. E se todos os seres humanos simplesmente desaparecessem do planeta? Que destino teriam as leis, as regras, as religiões? O que aconteceria com as hierarquias da sociedade, com as empresas multinacionais ou com as joias em nossos cofres? O que seria do capitalismo, do comunismo, da política? Nada. Tudo se dissolveria junto, como se nunca tivessem sequer existido. Numa tentativa desesperada, terminei a última dose de café misturando-a com o destilado. Me sentia cada vez pior, em uma espécie de entorpecimento mental. Um baque de realidade. Ou um baque de imaginação. Nossa realidade não forma-se apenas de elementos físicos e objetivos. O que a faz ter sentido e ordem é intocável, faz parte de um imaginário coletivo. O pânico de estar fora dele é um sentimento jamais experimentado por mim. Me senti fraco, desamparado como nunca antes.
Novamente, sucumbi ao meu colchão. Dormiria até recuperar meu vigor novamente. Talvez conseguisse um atestado médico para abonar aquele dia no trabalho. Um pedaço de papel para me impedir de perder bits em minha conta bancária. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. Com este mantra, fui pouco a pouco desacelerando. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O efeito do café já cedia, o whisky me apagava, pouco a pouco. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O que é a realidade se não um conjunto de mentiras em que todos acreditam? Nada é verdade. Nada é verdade.
Após alguns segundos de tortura sensorial, finalmente consegui reunir forças e me dirigir ao banheiro. Abri a porta, meio cambaleante, e debrucei-me sobre a pia. Ter sonhos lúcidos é raridade. Pesadelos lúcidos, certamente não lembro a última vez. Era o centro de uma grande cidade pré-moderna, certamente grandiosa como Londres na iminência da Revolução Industrial, mas com arquitetura que remetia-se aos grandes mercados árabes da idade das trevas. Peguei um punhado de água gelada e atirei em meu rosto, tentando eliminar o suor resultante daquela perturbadora experiência noturna. O espelho ajudou a recuperar parte da minha noção espacial, estava retornando lentamente a um estado de mínimo autocontrole. Camelos e cavalos estranhamente andavam lado a lado, carregando enormes árvores em seus lombos com um grande vigor. De todos os lados, homens, mulheres, macacos, cães, girafas formavam o caótico e bizarro ambiente, todos emitindo sons igualmente incompreensíveis.
Os problemas de desorientação matinal são prontamente resolvidos com café, o qual fiz questão de preparar com o dobro de pó naquele dia. O local parecia um mercado, porém não identificava nada que estava à venda. Neste ambiente tumultuado, todos pareciam se entender e se comunicar normalmente. Todos, menos eu. Andava de um lado para o outro, mas nada fazia sentido: não existiam placas nem um vestígio sequer de escrita; as vestimentas eram feitas de palha, e as construções, de ouro e carvão; os transeuntes se ajoelhavam quando algum rato ou inseto estava por perto, em um estranho gesto de reverência. Fui inundado por um sentimento de estranheza crescente, a medida que as pessoas começaram a se dirigir a mim, primeiro com os olhares, seguidos por aqueles ruídos estranhos. Corria o quanto podia, mas estavam por toda a volta. Meu coração acelerou. Tropecei e caí na escuridão de um buraco.
Nem mesmo o café mais forte estava surtindo efeito. Quanto mais eu despertava, mais claros ficavam os momentos desesperadores que frutificaram da minha imaginação alguns minutos atrás. Ao levantar do abismo, o mundo se transfigurou. Estava no centro financeiro de São Paulo, na Avenida Paulista. Tudo parecia normal, altos prédios, grande movimento de carros. Mas só me dei conta disso depois de despertado. Em meus devaneios, nada fazia sentido, novamente. As roupas pretas dos homens, os artefatos dourados nos pulsos das mulheres, aquelas luzes que faziam as pessoas pararem e se deslocarem, enormes veículos de aço que não colidiam, mesmo andando lado a lado. O que era tudo aquilo? O coração acelerou, o ar escapava dos meus pulmões, o mundo começou a girar. Caí de joelhos, sem ação e acordei com um solavanco.
Minha cabeça latejava sem parar, os detalhes daqueles momentos distópicos não paravam de ir e vir dos meus pensamentos. Tudo pareceu tão real, mas tão estranhamente caótico. Ou, pelo menos, para mim. O quão frágil é a ordem da nossa vida? Um gole após o outro e a amargura do café sem açúcar colidia com a acidez do meu estômago vazio, reforçando a náusea que ainda incomodava. Dirigi meu olhar com cautela ao relógio na parede. Os ponteiros giravam como sempre, seguindo o mesmo padrão de sempre. Um padrão que não faria sentido para mim, parado naquela avenida movimentada. Eu não o conhecia. Não conseguiria comprar uma mercadoria sequer naquele bazar, jamais aceitariam meu dinheiro e eu nunca o gastaria com o que quer que estivessem vendendo. Que valor o Real tem para quem não acredita nele? Que significado os sinais de trânsito têm para os que nunca pisaram em uma cidade contemporânea?
Fui até a varanda, precisava de algo mais forte. Duas doses de whisky depois e eu não sabia mais o que fazer. Minha mente pulsava a mil, mas meu corpo parecia não responder. E se todos os seres humanos simplesmente desaparecessem do planeta? Que destino teriam as leis, as regras, as religiões? O que aconteceria com as hierarquias da sociedade, com as empresas multinacionais ou com as joias em nossos cofres? O que seria do capitalismo, do comunismo, da política? Nada. Tudo se dissolveria junto, como se nunca tivessem sequer existido. Numa tentativa desesperada, terminei a última dose de café misturando-a com o destilado. Me sentia cada vez pior, em uma espécie de entorpecimento mental. Um baque de realidade. Ou um baque de imaginação. Nossa realidade não forma-se apenas de elementos físicos e objetivos. O que a faz ter sentido e ordem é intocável, faz parte de um imaginário coletivo. O pânico de estar fora dele é um sentimento jamais experimentado por mim. Me senti fraco, desamparado como nunca antes.
Novamente, sucumbi ao meu colchão. Dormiria até recuperar meu vigor novamente. Talvez conseguisse um atestado médico para abonar aquele dia no trabalho. Um pedaço de papel para me impedir de perder bits em minha conta bancária. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. Com este mantra, fui pouco a pouco desacelerando. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O efeito do café já cedia, o whisky me apagava, pouco a pouco. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O que é a realidade se não um conjunto de mentiras em que todos acreditam? Nada é verdade. Nada é verdade.