sábado, 28 de janeiro de 2017

Um mundo imaginário



Naquela manhã, acordei repentinamente de um pesadelo. Era cedo e as primeiras luzes da manhã ainda se esforçavam para adentrar o quarto, através das amplas venezianas da parede. A sensação de retorno a realidade daquela forma é estranha, uma mistura mal calibrada entre desorientação, hipersensibilidade e uma boa dose de náusea. Os míseros raios do sol pareciam grandes labaredas de fogo, prontas para se alastrarem sobre meu corpo anestesiado, que acabava de retornar de uma viagem. E que viagem! Normalmente meus pesadelos não se diferenciavam muito de cenas de filmes que assistia naqueles tempos. Quedas de arranha-céus no centro de Nova Iorque, perseguição por Serial Killers nas florestas de Sherwood, problemas com munição no meio de guerras, e por aí vai, sem nunca entrar muito no campo da criatividade. Mas naquele dia algo tinha realmente me incomodado.

Após alguns segundos de tortura sensorial, finalmente consegui reunir forças e me dirigir ao banheiro. Abri a porta, meio cambaleante, e debrucei-me sobre a pia. Ter sonhos lúcidos é raridade. Pesadelos lúcidos, certamente não lembro a última vez. Era o centro de uma grande cidade pré-moderna, certamente grandiosa como Londres na iminência da Revolução Industrial, mas com arquitetura que remetia-se aos grandes mercados árabes da idade das trevas. Peguei um punhado de água gelada e atirei em meu rosto, tentando eliminar o suor resultante daquela perturbadora experiência noturna. O espelho ajudou a recuperar parte da minha noção espacial, estava retornando lentamente a um estado de mínimo autocontrole. Camelos e cavalos estranhamente andavam lado a lado, carregando enormes árvores em seus lombos com um grande vigor. De todos os lados, homens, mulheres, macacos, cães, girafas formavam o caótico e bizarro ambiente, todos emitindo sons igualmente incompreensíveis.

Os problemas de desorientação matinal são prontamente resolvidos com café, o qual fiz questão de preparar com o dobro de pó naquele dia. O local parecia um mercado, porém não identificava nada que estava à venda. Neste ambiente tumultuado, todos pareciam se entender e se comunicar normalmente. Todos, menos eu. Andava de um lado para o outro, mas nada fazia sentido: não existiam placas nem um vestígio sequer de escrita; as vestimentas eram feitas de palha, e as construções, de ouro e carvão; os transeuntes se ajoelhavam quando algum rato ou inseto estava por perto, em um estranho gesto de reverência. Fui inundado por um sentimento de estranheza crescente, a medida que as pessoas começaram a se dirigir a mim, primeiro com os olhares, seguidos por aqueles ruídos estranhos. Corria o quanto podia, mas estavam por toda a volta. Meu coração acelerou. Tropecei e caí na escuridão de um buraco.

Nem mesmo o café mais forte estava surtindo efeito. Quanto mais eu despertava, mais claros ficavam os momentos desesperadores que frutificaram da minha imaginação alguns minutos atrás. Ao levantar do abismo, o mundo se transfigurou. Estava no centro financeiro de São Paulo, na Avenida Paulista. Tudo parecia normal, altos prédios, grande movimento de carros. Mas só me dei conta disso depois de despertado. Em meus devaneios, nada fazia sentido, novamente. As roupas pretas dos homens, os artefatos dourados nos pulsos das mulheres, aquelas luzes que faziam as pessoas pararem e se deslocarem, enormes veículos de aço que não colidiam, mesmo andando lado a lado. O que era tudo aquilo? O coração acelerou, o ar escapava dos meus pulmões, o mundo começou a girar. Caí de joelhos, sem ação e acordei com um solavanco.

Minha cabeça latejava sem parar, os detalhes daqueles momentos distópicos não paravam de ir e vir dos meus pensamentos. Tudo pareceu tão real, mas tão estranhamente caótico. Ou, pelo menos, para mim. O quão frágil é a ordem da nossa vida? Um gole após o outro e a amargura do café sem açúcar colidia com a acidez do meu estômago vazio, reforçando a náusea que ainda incomodava. Dirigi meu olhar com cautela ao relógio na parede. Os ponteiros giravam como sempre, seguindo o mesmo padrão de sempre. Um padrão que não faria sentido para mim, parado naquela avenida movimentada. Eu não o conhecia. Não conseguiria comprar uma mercadoria sequer naquele bazar, jamais aceitariam meu dinheiro e eu nunca o gastaria com o que quer que estivessem vendendo. Que valor o Real tem para quem não acredita nele? Que significado os sinais de trânsito têm para os que nunca pisaram em uma cidade contemporânea?

Fui até a varanda, precisava de algo mais forte. Duas doses de whisky depois e eu não sabia mais o que fazer. Minha mente pulsava a mil, mas meu corpo parecia não responder. E se todos os seres humanos simplesmente desaparecessem do planeta? Que destino teriam as leis, as regras, as religiões? O que aconteceria com as hierarquias da sociedade, com as empresas multinacionais ou com as joias em nossos cofres? O que seria do capitalismo, do comunismo, da política? Nada. Tudo se dissolveria junto, como se nunca tivessem sequer existido. Numa tentativa desesperada, terminei a última dose de café misturando-a com o destilado. Me sentia cada vez pior, em uma espécie de entorpecimento mental. Um baque de realidade. Ou um baque de imaginação. Nossa realidade não forma-se apenas de elementos físicos e objetivos. O que a faz ter sentido e ordem é intocável, faz parte de um imaginário coletivo. O pânico de estar fora dele é um sentimento jamais experimentado por mim. Me senti fraco, desamparado como nunca antes.

Novamente, sucumbi ao meu colchão. Dormiria até recuperar meu vigor novamente. Talvez conseguisse um atestado médico para abonar aquele dia no trabalho. Um pedaço de papel para me impedir de perder bits em minha conta bancária. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. Com este mantra, fui pouco a pouco desacelerando. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O efeito do café já cedia, o whisky me apagava, pouco a pouco. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O que é a realidade se não um conjunto de mentiras em que todos acreditam? Nada é verdade. Nada é verdade.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Mas o que é isso?

 

O fato mais curioso em relação ao inexplicável é que ele é impossível de explicar. Alguns tentam: olham em livros, nas estrelas, em baixo do sofá ou até em revistas de fofocas sobre sub-celebridades decadentes da web, mas a resposta não está em lugar nenhum. Primeiramente porque o inexplicável é tão inexplicavelmente irresponsível que não se sabe nem ao certo qual é a pergunta. Em segundo, mesmo que encontremos uma resposta minimamente convincente sobre uma pergunta que ninguém sabe qual é, ninguém vai se convencer, porque ninguém sabe ao certo qual é pergunta que estão tentando convencê-las de sua corretude. E o ciclo continua até que ele se rompe, do nada, quando alguém consegue uma explicação plausível.

Nada, ao contrário do que muitos pensam, pode representar uma infinidade de coisas. Quando sua esposa aparece do nada em casa e te surpreende com a amante, certamente ela veio de algum lugar concreto, com informações concretas sobre seus contatinhos e morrendo de vontade de despedaçar sua cabeça em uma parede de concreto. Quando uma pessoa desequilibrada responde que "tudo está bem, não aconteceu nada", muito provavelmente as coisas que lhe aconteceram transcendem uma capacidade racional de interpretação dos sentimentos alheios, por isso é mais fácil utilizar o "nada" como trunfo e escapar dessa situação constrangedora, voltando a um isolamento depressivo interno e com tendências mortalmente suicidas. Encontrar uma explicação do nada para um evento inexplicável pode significar, entre várias coisas, todas as coisas possíveis de terem algum significado conhecido, já que ela simplesmente veio do nada.

Basta uma explicação ser descoberta para que um fato deixe de ser inexplicável. Podemos dizer, sem muitas dificuldades de entendimento, que todos os fatos cuja explicação é conhecida já foram, em algum momento da sua existência, inexplicáveis. A não existência de um fato exatamente inexplicável remete-se a mania pouco divertida dos seres humanos de tentarem fazer com que tudo tenha sentido, desde coisas banais como uma lógica nos números da loteria até situações realmente relevantes, como o porquê da torrada cair sempre com a manteiga para baixo ou a origem do penteado do Trump. Se a explicação não existe basta criarmos uma qualquer, utilizando o mínimo de bom senso possível, espalharmos nas redes sociais que, do nada, milhares de pessoas estarão tornando-a verdade.

A verdade é, assim como o explicável, algo que sempre vai existir, inclusive e principalmente quando ninguém sabe ao certo sobre o que estão querendo explicar de fato. Atrás das explicações bizarras e das verdades esdrúxulas sempre existirá uma legião de fantoches humanos, que farão as portas se doerem em suas fibras de madeira por terem a capacidade cerebral comparada a desses homo sapiens que engolem qualquer asneira para, incrivelmente, não se acharem asnos dentro do seu mundinho onde tudo tem que fazer sentido, na maior parte das vezes de acordo com seus princípios preexistentes.

Estudiosos, do nada, surgem com explicações extremamente complexas e fatigantes sobre acontecimentos simples e cotidianos. Pseudo-estudiosos da internet, do nada, surgem com explicações surpreendentemente simples e fáceis para os acontecimentos mais complexos do universo (notemos que "do nada" apresenta significados extremamente distintos em ambos os contextos). Em ambos os contextos falamos de seres humanos: um deles com muita curiosidade e entusiasmo para quebrar esse ciclo; outro totalmente desconfortável por estar preso dentro dele e com medo do que está fora de sua aconchegante casinha de boneca. Inexplicavelmente, da mesma espécie animal. Inexplicavelmente, tão diferentes.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O sonho do Faraó




Em uma noite, o Faraó teve um sonho. Um sonho estranho, com um significado obscuro. Logo, recorreu a todos os sacerdotes e sábios do reino do Egito, mas ninguém soube explicar seus devaneios noturnos. Se Freud fosse chamado para prestar explicações ao Rei diria que seu sonho foi uma expressão do seu inconsciente, desvelando seus desejos e aspirações mais profundas. Se o Faraó tivesse contatado Jung, por outro lado, ele o aconselharia a prestar atenção nos sinais e nos símbolos que estavam presentes em suas visões. Para este outro, os sonhos mostram a realidade que o cercava, uma expressão do inconsciente coletivo, de forma simbólica. Infelizmente para o Rei do Egito, ele viveu muitos milênios antes dos psicanalistas. Teve, então, que recorrer, como sua última esperança, ao hebreu José, filho de Israel.

Deus age através dos fatos, dos acontecimentos. Eis a grande barreira da fé: a sensibilidade de vislumbrar a ação divina nas coisas mais corriqueiras do cotidiano. Aqueles que alcançam a plenitude da fé conseguem observar as situações terrenas com os olhos de Deus. José tinha este dom e usou-o para ganhar a confiança do Faraó e sair do encarceramento que o mantivera isolado por vários anos. Com uma visão que deixaria Jung orgulhoso, o hebreu observou os símbolos presentes nos sonhos do Rei e os analisou no contexto social do povo Egípcio. Com isso, José adotou uma política pública adequada, que salvou o povo da miséria e da fome iminente.

Para os antigos, os sonhos eram a forma com que Deus se comunicava diretamente com as pessoas. Utilizando uma abordagem junguiana, podemos entender os sonhos como uma expressão daquilo que nos permeia socialmente, mas não são ações deliberadas: o famoso inconsciente coletivo. Esta coletividade interfere no que cada um sente e deseja. Nossos sonhos são reflexos do que acontece em nossas vidas, do que entramos em contato dia após dia.

Somos permeados por milagres. Muitos deles, não somos capazes de compreender. Em alguns isso gera frustração, ódio. Mas, assim como José nos ensina, um dos objetivos da fé é a abertura ao inexplicável, não como algo misterioso ou obscuro, mas como um horizonte de possibilidades a serem exploradas sem medo, pois a trilha divina é uma estrada esburacada, com pedágios e sem retornos, mas que nos leva onde devemos chegar.

Talvez nos falte uma dose de humildade, para os ajoelharmos perante ao desconhecido e deixarmos que ele nos guie através de nossa caminhada. Ou talvez nos falte certa coragem para isso.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Um brilho que a todos pertence


Romper preconceitos é uma tarefa que demanda um grande esforço cognitivo. Isso se deve ao fato de termos, de maneira deliberada, que livrar-nos de uma primeira impressão construída de forma associativa por nosso inconsciente. Nossa visão do mundo é moldada, a princípio, por uma série de conexões e padrões que temos em nosso cérebro. Talvez isso seja o grande motivo de sucesso da raça humana: não precisamos de instintos naturais que nos guiem por toda a vida; nós construímos um próprio modelo do mundo que nos cerca, e tentamos encaixar as informações externas que recebemos a ele. E esse modelo se atualiza com o decorrer da nossa existência. Mesmo sendo fundamental para os seres humanos, esse sistema pode nos causar impressões incorretas do que está ao nosso redor, em alguns casos. Daí surgem os preconceitos; por isso ele demanda mais do nosso cérebro para ser desconstruído.

Estamos cada vez mais individualistas e solitários, um fruto da modernidade líquida em que imergimos. Isso faz com que interpretações pessoais do mundo ganhem força, em detrimento das coletivas. Basta nos unirmos com pessoas que pensam como nós em diversos pontos, com poucas divergências que favoreceriam algum tipo de debate, um enclausuramento social. Voilà! Temos o contexto menos ideal para eliminarmos os preconceitos, e o habitat perfeito para que eles se fortaleçam.

Rowling nos instiga a esse debate no seu romance Morte Súbita. A autora best-seller constrói, no pequeno e tradicional vilarejo de Pagford, uma trama costurada ao redor da personalidade de cada um que compõe a história. JK cria uma bolha: dentro dela os moradores mais antigos da vila lutam contra o crescimento de um bairro de periferia em suas fronteiras. O enredo é pleno de análises comportamentais, tratando desde problemas familiares até polarização política. Mas a grande lição que se tira é, nas palavras da própria autora, a dificuldade de "enxergar o brilho de Deus em todas as pessoas". O bloqueio de olhar através de um filtro que nos cerca e nos colocarmos no lugar dos outros, para assim entendermos como parte da sociedade chega nas situações mais marginais da vida humana.

No desenrolar dos acontecimentos, entramos em contato com um universo cheio de preconceitos e inflexões, regido por um reacionarismo cego, que acaba afetando negativamente a vida de todos que o compõe. Uma cegueira muito comum além da ficção das páginas de Rowling. Uma cegueira que elimina a humanidade daqueles que comentem atrocidades. Afinal, não nascemos pré-programados para matar, para roubar. Viemos todos ao mundo com o mesmo brilho. O que nos faz apagar?

A mensagem passada pela autora não é única, muito menos original. Mas é difícil de ser entendida: exige compaixão, caridade e ternura. Obviamente, muito mais árdua de ser colocada em prática. Romper preconceitos doí, estar errado doí, sair do conforto da bolha doí muito. Estamos prontos para suportar essa dor pelos outros?