sábado, 31 de dezembro de 2016

Nas páginas de 2016


Em trezentas e sessenta e seis páginas foi escrito o romance de 2016. Talvez foram poucas. Talvez foram demais. Aquele que queríamos logo que iniciasse voando, mas que não vemos a hora de que dê seu último suspiro de despedida. Como um coelho, 2015 nos guiou para dentro deste misterioso ano, no qual caímos sem direção, rumo ao desconhecido. Ou será que nossa tempestade de expectativas nos fez pensar alto demais? Tão alto que a realidade futura não pode nos satisfazer? Agora, de fora deste planetinha isolado, conseguimos enxergar com mais clareza, o que hoje nos representa o velho.

O que 2016 deixou para nós? Fomos capazes de perdoar aqueles que nos injuriaram de alguma forma? Conseguimos romper as barreiras do mundo digital e trazer nossos sentimentos para, digamos, o mundo físico? Ou ainda a um mundo metafísico. O que 2016 representou para nosso estado de espírito? Para nosso equilíbrio emocional? Para nossa relação com o inexplicável? Fomos verdadeiramente felizes?

Não devemos ser como Romeu, clamando para que 2017 dê sentido a nossa vida. Talvez nos falte ousadia. Uma dose de loucura e desligamento do mundo, pelo menos de como o conhecemos. Pode nos faltar uma dose de rebeldia, roubar os planos tóxicos que orbitam sua vida e destruí-los para sempre. Ou ainda uma mudança de paradigma, no qual alguns anjos podem se mostrar demônios, o inferno pode-se tornar o céu e as mentiras, quem sabe, verdades. Talvez, mudando a perspectiva, aquelas estrelas tortas não poderão ter seu brilho desvelado?

Que olhemos o mundo com novos olhos em 2017, olhos de esperança e fraternidade, no qual o ódio não tem vez, no qual o amor prospere. Ao ano que passou, me resta um pedido de desculpas pelo inconveniente. Ao que está por vir, desejo que seja repleto de momentos que valham a pena serem vividos e que sejamos os autores e personagens principais do nosso próprio destino.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Os muros da sanidade


Era na Casa Verde que o Dr. Bacamarte mantinha os loucos. O sanatório de Itaguaí descrito no conto machadiano era a bancada de estudos do alienista. Nele, o médico internava quem achasse que possuía algum transtorno da normalidade, sejam psíquicos ou comportamentais. Baseado em uma lógica pouco científica, Bacamarte passou a hospitalizar todos aqueles que apresentavam qualquer discrepância do seu padrão de normal. Em certo ponto, atingiu mais de metade dos moradores da cidade fluminense. Eram os muros da Casa Verde que separavam os loucos dos não-loucos. Nas palavras de Foucault, cumpria o papel de um hospício, o de informar a todos o único lugar onde vivem os anormais.

Afinal, o que é ser louco? Para alguns, passar a noite na casa de um estranho que conheceu na balada é loucura; para outros, pegar um empréstimo para viajar com a família, mesmo sem saber se terá condições de pagar é loucura; para muitos, apaixonar-se é a maior das loucuras. Ao ser internada no sanatório de Villete após tentar se matar, Veronika se vê em um ambiente incomum. Lá, doentes mentais que precisam de acompanhamento se misturam com pessoas de mente sadia, mas que temem o mundo externo. O conforto que encontram dentro das paredes do hospital psiquiátrico é devido a liberdade da hipocrisia. Lá podem ser quem querem ser. Não precisam seguir padrões, não precisam fingir gostar ou não de alguém, não precisam omitir os sentimentos. Em Villete todos eram loucos, simplesmente por não precisarem forçar a ser o que os outros chamam de normal, mas que adoece a todos.

Paulo Coelho engenhosamente chamou essa praga de Amargura. A amargura que atinge aqueles adultos que reprimiram seus sonhos na juventude para seguir uma vida mundana comum e confortável, mas que olham os jovens lutando pelos seus desejos e os julgam desvirtuados. Aquela amargura do infeliz casal normal que olha com desprezo a enxurrada de felicidade de um casal gay anormal. A mesma amargura que vive naqueles que invejam a mulher que dorme com vários homens em uma única noite, mas que são limitados por suas religiões a fazerem o mesmo. Veronika, também afetada por esta doença, descobre neste ambiente sem barreiras a sua única cura: o amor pela vida e a vontade de viver intensamente cada dia, livre das amarras do socialmente correto e do filtro de hipocrisia que antes julgava suas ações.

Bacamarte conclui, após suas experiências fracassadas, que, de perto, todos são loucos. Para as freiras, são loucas as prostitutas e vice-versa. Nada além de mim pode ser considerado normal e, como comprova o alienista, eu sou desequilibrado aos olhos dos que me cercam. Veronika e Bacamarte descobrem suas próprias loucuras; para ela, significou sua liberdade; para ele, seu cárcere; para ambos, uma revelação de um novo mundo.

Sob o véu da loucura, oculta-se o regozijo. Quem são os loucos de fato? Aqueles que se libertam para a felicidade ou aqueles que a limitam, com medo do julgamento alheio? 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

MINIMUM - A Busca

Afinal, porque buscá-lo nos céus, nas laudas de um livro, nas palavras dos homens? Por qual motivo carecemos de evidências, grandes feitos, milagres? Seria a vida simples demais, banal demais para não enxergarmos em si o maior dos milagres? Seríamos vaidosos e egoístas em excesso para notá-lo através da grandiosidade do mundo que nos cerca? Continuamos seguindo à risca palavras vazias, enquanto demolimos sua obra, pregando o ódio, destruindo vidas, extinguindo a natureza, enterrando a paz.

sábado, 3 de setembro de 2016

Demônios modernos para o homem moderno


Escrito a partir de 1500 a.C., o livro mais vendido da atualidade também vigora entre os mais antigos da categoria e o mais longo a ser finalizado, aproximadamente 1600 anos até a versão que conhecemos atualmente. Mesmo três mil e quinhentos e poucos anos depois, a Bíblia continua sendo um livro de referência para a sociedade contemporânea, transcendendo o limite das religiões e moldando a base da moral e da ética ocidental como a conhecemos. Três mil e quinhentos anos atrás. O alfabeto com o qual escrevo esse texto, estava nos primeiros estágios do nascimento. Os caracteres que transmitem a mensagem da Bíblia hoje em dia datam de apenas algumas décadas de distância dos primeiros escritos do livro. O tempo parece não ser um problema para a imortalidade bíblica. A questão é entendermos o porquê.

As sagradas escrituras cristãs apresentam algumas características únicas, muito interessantes quando as olhamos de um referencial privilegiado: elas são um conjunto de linguagens, separadas por centenas de anos e diferentes estruturas sociais. E como uma linguagem, a Bíblia é uma ferramenta para se transmitir todo tipo de informação. Mostro-lhes um enxerto que descreve a ira de Deus Todo-Poderoso àqueles que não obedecem as suas regras, seguido por uma sequência de leis retiradas a dedo de alguns livros do Velho Testamento; moldo um perfil social específico. Em outro momento separo passagens de Jesus pregando o amor como bilhete de entrada no paraíso e uno-as com uma frase do Levítico que dita o amor homem-mulher como o verdadeiro amor de Deus; moldo outro grupo de pessoas. O que faz da Bíblia um livro único e imortal é o fato dela ser multi-interpretativa, muitas Bíblias em uma só, cada uma compatível com o perfil de alguém em algum período histórico.

A teologia da prosperidade é um exemplo contemporâneo, contrastando Pastores neopentecostais e padres Franciscanos, como se ambos seguissem diferentes ensinamentos, deuses diferentes. São duas visões do mesmo texto. Assim como grupos no Facebook, as religiões atraem pessoas que pensam de forma semelhante, interpretam as escrituras com um ponto de vista comum e ignoram aquilo que não as convém. Os cristãos querem e buscam o melhor dos dois mundos: onde os pecados são apenas aquilo que não fazem parte de seu comportamento e o caminho correto para o reino dos céus é o estilo de vida que levam. Uma cegueira intencional, na qual os demônios estão nos outros e não dentro de cada um deles; na qual a vaidade e o orgulho de serem os únicos convidados para a ceia do Senhor são apenas detalhes inconvenientes.

A Bíblia moldou (e ainda molda) o mundo, mas as sociedades têm um poder igualmente grande para dizer o que está lá escrito. É chocante pensar que o mesmo texto que guiou a Inquisição da Idade Média hoje arrasta multidões da Renovação Carismática. Não é difícil concluir que o mesmo pode ocorrer com os outros demais fundamentalismos mundo a fora. Basta um pouco menos de preconceito, um pouco mais de visão fora da caixa.

A Bíblia se mostrou, ao longo de inúmeras gerações, ser o mais poderoso dos escritos: Deus descrito pelas mãos de homens, para ser lido pelos homens e interpretado por grupos de homens. E a palavra de Deus é soberana; a palavra do Senhor é incontestável. Amém!

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O paradigma da existência


"Desculpe pelo inconveniente". Como um atendente de telemarketing mal-humorado de uma operadora telefônica, fingindo que se importa com o cliente que ligou para reclamar do corte de seu pacote de dados de internet, essa é a mensagem que Douglas Adams descreve como a Mensagem Final de Deus para Sua Criação. Um inconveniente, a fonte de todas as inconveniências, sem o qual não existiria nada que pudesse achar as outras coisas igualmente inconvenientes ou ainda mais inconvenientes do que ele próprio. Ou ela. A vida: a fonte de todos os problemas da Humanidade.

Problemas esses que se tornam problemas de fato pela irritante mania dos humanos de problematizarem situações que por si só não deveriam passar de acidentes existenciais não-problemáticos do universo, dentro do espaço infinitesimal correspondente a esse planetinha azul e branco que não tivemos o desprazer de nunca termos conhecido. Está claro, por exemplo, que não haveriam tantas guerras se as pessoas parassem de simplesmente seguir livros escritos a milhares de anos por diversos descendentes de primatas distintos (mesmo sendo da mesma raça) e começassem a observar mais atentamente o semelhante sendo esbofeteado do outro lado da rua, do tipo "Ah, poderia ser eu, não é?". É claro, também, que não haveriam tantos computadores quebrados e muitos reais desperdiçados se não existissem telas azuis em seus monitores, fato que, também por uma invenção humana, pode significar a perda de muitas horas de trabalho e paciência. Escavadeiras estão entre os outros possíveis exemplos, mas aí seria aprofundar muito o debate.

Resumindo, a vida é o maior dos inconvenientes. Porém, como não existe alternativa possível para resolver os empecilhos causados por ela, nos basta aceitá-la e acatar o pedido de desculpas da forma menos dolorosa possível, nem que isso inclua insônia, altas doses de Prozac e algumas sessões de terapia oriental com o mestre Xian Gu. Mesmo as formas de vida mais evoluídas do planeta, como os golfinhos e as formigas, não conseguem encontrar uma solução fácil para esquivarem-se da vida, seja enterrando seus companheiros ou mesmo piruetando por aí. Pelo menos as formigas não seguem rituais ultrapassados nem usam computadores, mas têm seus próprios problemas, como a melhor forma de carregar uma bala de Halls até a rainha ou ainda como construir um formigueiro deslumbrante, sem que nenhum idiota enfie seu sapato Louis Vuitton nele e destrua o trabalho de meses, como uma tela azul no mundo das formigas. Elas também são muito mais altruístas com seus colegas de espécie, diga-se de passagem, e não entendem de forma alguma o quanto um sapato Louis Vuitton do colega pode ser mais bonito que o seu Prada, mesmo ambos de modelo equivalente, mesmo ambos sendo de muito mal gosto.

Concluindo (isso se for possível concluir essa reflexão, dada a vastidão abrangente do horizonte desvelado por ela), seria de bom grado se os seres autoconscientes do universo conhecido aproveitassem da liberdade com a qual foram castigados a conviver e se desculpassem mais um com os outros, deixando de lado o seu minúsculo banquinho do orgulho, no qual insistem a ficar ajoelhados para não parecerem altos demais (mesmo cabeceando a cintura de um anão), e estendessem a mão às demais formas de vida que sofrem do mesmo destino: viverem até o momento de suas mortes. Quanto menos desagradável for essa trajetória, menos frustrado ficará o Criador e mais desnecessário será seu pedido de desculpas.

sábado, 23 de julho de 2016

A escolha de Julieta


Naquela noite em Verona eis que surgia Julieta, vestida de gala, na formosura de seus 14 anos; uma jovem mulher, como descrita pelo autor inglês. A festa que acontecia em um salão da mansão dos Capuletos era uma vitrine. O anfitrião solicitou a presença das grandes famílias da região e suas jovens donzelas com o intuito obscuro de provar ao conde Páris que nenhuma delas se equiparava a sua filha, a qual deveria ser sua prioridade como esposa. Julieta foi a festa a mando do pai; arrumou-se como ditava a tradição; portou-se como uma aristocrata italiana deveria agir; foi aprovada pelo conde, que a optara como futura mulher e com quem iria casar-se em breve, sem objeções. Julieta não escolheria seu destino, ele era ditado pelo homem chefe da família. Já enunciava sua Ama: "Se algum dia eu puder ver-te casada, Julieta, é tudo o que eu mais desejo. Um homem engrandece a mulher", completada pela jovem, "É uma honra com a qual jamais sonhei". No entanto, naquela mesma festa, irrompe-se Romeu.

O jovem Montecchio, metediço naquela noite, apaixona-se pela imagem da menina Capuleto. Ao abordá-la sente-se correspondido, trocando beijos em meio à multidão lá presente. Voltam a encontrar-se naquela mesma noite, quando Romeu a chama na varanda de seu quarto, a famosa cena do balcão, onde proferem juras de amor. Julieta, pela primeira vez, sente o gosto da independência. Casar-se com o rival de sua família é uma afronta ao pai, uma desonra aos Capuletos, mesmo assim ela segue em frente. Com o decorrer da peça, a jovem decide abandonar a família e a nobre vida de Verona para fugir com seu amor, uma dura decisão guiada pela paixão.

É senso comum dizer que a felicidade é diretamente proporcional à noção de liberdade de escolhas. Mas é fácil também percebemos a angústia que nos causa uma decisão com muitas opções. Quando nos restringimos, diminui-se a frustração de optarmos pelo errado, pois não tínhamos muito para onde fugir. No caso múltiplo, a variedade causa angústia, aflição e, após o erro, decepção e arrependimento. Será que Julieta teria escolhido Romeu se tivesse saído com Benvólio? Se tivesse passeado no bosque com Mercúcio? Se tivesse experimentado uma noite de amor com Baltazar? Assim como em toda a alta sociedade europeia do século XVI, Julieta teria um casamento arranjado e poderia se sentir extremamente feliz, pois estava dentro da conformidade, não seria marginalizada por ser diferente. Ao conhecer Romeu, suas possibilidades aumentaram, suas fronteiras expandiram e sua noção de felicidade não era mais a mesma.

Quem sabe, se o plano do Frei Lourenço tivesse sido um sucesso e o casal fosse viver longe de Verona, Julieta não se arrependesse. Talvez ela presumisse que seria mais feliz com o amante Montecchio, simplesmente por nunca ter vivido um momento de infelicidade em sua nobre vida. A felicidade é baseada em comparações. Vivemos momentos infelizes, esperando e idealizando aqueles que nos despertariam alegria. Julieta buscou a sua felicidade naquele instante, talvez de forma inconsequente, mas buscou. Não esperou cair do céu, não postergou. O presente é onde a vida acontece, não o incerto futuro.

Vivemos e temos apenas uma certeza, uma lição também transmitida por Shakespeare em sua peça. Ao ver seu amado morto aos seus pés, Julieta toma sua última decisão, a mais difícil de todas. Sua prova derradeira de amor, que não foi presenciada por seu esposo. Encarar a morte é o mais natural dos desafios, porém o mais perverso. Aceitá-la, uma questão de maturidade. Julieta a abraça, sem medo, sem receio. Seus atos nos ensinam uma valiosa mensagem, a que deveria ser lema para uma vida que vale a pena ser vivida: seja feliz, ou morra tentando.

terça-feira, 19 de julho de 2016

MINIMUM - Leitura

Sob uma campânula de cristal, abro um livro. Como em uma fenestra de um casarão, admiro o entorno, imerso em momentânea amnésia dos contratempos diários. Página, capítulo, binóculo, espelho. Reencontros com emoções esquecidas, soluções perdidas, paixões deslembradas. Leitura: um incêndio insulado no cerrado. Pós cinzas, a vida renasce. Uma válvula de escape: fujo de mim, para ver-me de fora. Fecho o livro, acendem-se as luzes, limpam-se as lentes. Tudo está mais claro; tudo está mais confuso.

sábado, 9 de julho de 2016

Quis custodiet ipsos custodes?


"Quem guardará os guardiões?". Em suas sátiras, Juvenal buscava descrever e escancarar os podres da sociedade romana dos dois primeiros séculos pós-cristãos. Envolto por um caos político, social e religioso, a Roma Antiga já sentia sua decadência, uma exaustão de um regime impopular e desacreditado. Ao questionamento do autor, Sócrates já havia proposto soluções. Mas o que sempre persiste é a objeção: afinal, quem nos protegerá daqueles que se denominam nossos protetores?

Imersos em uma crise de representatividade em escala global, o mundo clama por um sistema de liderança que transcenda esse sentimento geral de isolamento entre os governantes e a sociedade. Os Estados relutam, o povo sente.

Na imagem, as ruas voltam a mesma interrogação do poeta romano, em uma versão mais contemporânea. Quem irá vigiar os próprios vigilantes?

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Um povo de palha


Na Terra de Oz, o Espantalho é uma figura bastante peculiar. Acredita que ter um cérebro é a única coisa que pode fazê-lo um ser inteligente igual aos demais povos daquele mundo. Afirma-se ignorante durante todo o início da história, mesmo pensando e tendo ideias da mesma forma que os outros personagens cefálicos os fazem. Ao ser enganado pelo Mágico de Oz, o boneco de pano ganha um falso cérebro, um placebo, que o faz sentir-se inteligente, sem nem um neurônio a mais. Esse poder instantâneo recebido o torna um ser confiante de si e que tudo sabe, tudo pensa, prepotente em diversas situações. O simples fato de crer-se sabido o transforma, sem tirá-lo da mediocridade intelectual anterior.

Reflito, portanto, se não seria o Espantalho um retrato caricato da sociedade brasileira, uma criatura recheada de palha, com andar cambaleante, mas capaz de grandes feitos. O que seria de Dorothy sem seu fiel parceiro?

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Uma jornada de consciência


A energia é distribuída de forma desigual em nosso corpo, como dizem as tradições budistas. Permanecer calado em um momento no qual é desnecessário abrirmos a boca evita uma perda indevida do nosso qi, que poderá muito bem ser direcionado para outras partes da existência. Calar-se é um exercício de autocontrole e disciplina. Repetições de mantras, orações e salmos são estratégias de concentração e foco, adotadas por diversos povos ao redor do globo com um objetivo em comum, a reflexão e a autoconhecimento. A meditação hinduísta e o rosário católico, por exemplo, firmam um paralelo que fazem transcender aqueles que os tornam rotina de vida. Não necessariamente uma transcendência em fé, para um plano superior metafísico, mas para um novo estado de consciência, impulsionado pelos próprios desejos depositados em nossas preces. Para um cristão comum, o diálogo com Deus é um hábito, desnecessário a rigor: o Altíssimo de tudo sabe, tudo vê, não precisa ser informado de nada; necessário, no entanto, para o que o próprio orador, muitas vezes perdido no turbilhão de sentimentos, direcione e coloque ordem nos seus desejos e necessidades.

O silêncio, em inúmeros casos, é a atitude menos danosa dentro de uma vida social pacífica. Ter a coragem de se aventurar por dentro de si próprio pode significar uma viagem para além do seu orgulho, um teste de humildade. Ajoelhar-se perante seus problemas, ponderar atos e emoções, refletir sobre falar ou não falar, magoar ou não magoar, relevar ou perdoar. Perdoar a nós mesmos é o primeiro degrau na árdua escalada de perdoar o próximo. Nas brilhantes palavras de Leandro Karnal, o perdão está em reconhecer que o outro erra, assim como eu também o faço, nos tornando igualmente humanos.

O autocontrole necessário para uma meditação limpa, no entanto, não é para muitos. Em um presente que nunca estamos desconectados, em que a internet une os quatro cantos do mundo, é cada vez um trabalho mais árduo nos conectarmos somente a nós mesmos. Exige esforço, cansa mais do que descansa. É abrirmos mão do tempo que tanto sentimos falta, na correria do cotidiano, para ficarmos em um momento improdutivo, lançando mão de uma lógica mais empreendedora. Mas vale a observação: a autogestão, como chamam, pode ser o treinamento que falta para muitos que buscam relações sempre amigáveis com os demais seres sociais que o cercam.

Em interpretação livre, é necessário encontrarmos sentido em nós mesmos antes de contestarmos os outros. Um segundo olhando ao espelho pode ser mais revelador do que uma hora observando pela janela.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

O vazio das pessoas grandes


"As pessoas grandes são muito esquisitas", já indagava, meio confuso, o pequeno príncipe viajante. Mal sabia ele ser o início de uma das mais famosas e complexas aventuras que já nos foi relatada, pelas precisas palavras de Antoine de Saint-Exupéry, nos levando a uma jornada por inóspitos planetinhas e um desafiador universo de metáforas. Mais de 75 anos após a primeira publicação oficial, o livro mais vendido de 2015 ensina uma nova lição a cada nova leitura, principalmente quando apreciado em diferentes fases da vida.

"O Pequeno Príncipe" conta a história de nós mesmos, as pessoas grandes. Na figura do inocente e solitário principezinho, constrói-se uma narrativa simples nos diálogos, simples no simbolismo, mas um tapa na cara daqueles que, acostumados a enxergar apenas o mundo que os olhos os permitem ver, esquecem de usar o coração para entender suas próprias esquisitices. Cada personagem interage com o menino representando diferentes carências da existência humana, como muito bem descrito por Schopenhauer, originadas da falta de um "objeto" que nos satisfaz. A futilidade escancarada pelo viajante está exatamente em nossos desejos vazios e sem o sentido, na perspectiva virginal de uma pessoa pequena.

Ao trombarmos com o Rei que nada governa, Exupéry nos convida a viajarmos pela ilusão do poder e a necessidade de controlarmos tudo e todos ao nosso redor. O empresário ironiza nossa fixação doentia em possuir e enriquecer, ao ponto que o acendedor de lampiões nos convida a rir da mania que temos de burocratizar até as coisas mais simples de nosso cotidiano. Para uma criança leitora, os diálogos engraçados e lúdicos divertem; para as pessoas grandes, são um belo de um puxão de orelha. No que o tempo nos transformou, afinal? Qual preço pagamos pela maturidade?

O famoso diálogo com a raposa é um dos trechos mais impactantes de toda a obra. A personagem, necessitada de atenção, nos revela a cerne do que perdemos em nossa metamorfose da idade. Deixamos a sociedade nos rotular, fechados em um cabresto que nos permite ver apenas superficialmente, sem perspectivas. O que realmente importa exige esforço para ser visto. Devemos nos livrar dos vícios, dos sestros que a vida adulta nos impõe. O essencial só pode ser enxergado com o coração, é invisível aos olhos, não está na superfície. É intenso, mas exige esforço para ser desvelado. A raposa nos leva a diversas outras reflexões como a unicidade da amizade e a difícil tarefa de mantê-la eterna.

Cada capítulo, cada diálogo vale a pena ser lido. Para cada linha, dez entrelinhas diferentes para cada leitor. O que torna o livro grandioso é sua capacidade de se transformar a cada leitura, sem mudar uma única palavra de seu texto. Assim como a raposa, o autor nos ensina a entender sua obra: o que está escrito é um convite, a verdadeira história acontece dentro da nossa imaginação.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Dualismo taoísta



O mundo é dual. Talvez não no sentido proposto por Maniqueu, no qual uma parte é melhor ou superior a outra. Como diz a antiga filosofia chinesa, é um dualismo complementar, uma coexistência entre opostos que formam o todo. Somente o equilíbrio do Tao gera a paz, mas ele só pode ser alcançado quando deixamos de olhar o lado oposto de dentro do nosso, mas quando passamos a enxergar nossas próprias opiniões com a cabeça do outro.

O simbolismo por trás do tei-gi é incrivelmente revelador. Ambas as partes, yin e yang, contrastam de forma singular: preto e branco são completamente opostos, causando um efeito de disparidade, como se em nada se relacionassem. No entanto, o yin floresce dentro do yang, assim como o inverso, e ambos ocupam a mesma área no desenho, nenhum prevalecendo sobre o outro. O "s" na interface central é um sinal de flexibilidade dos limites e a sensação de rotação completa a harmonia: yin e yang girando em relação a um centro comum.

Olhando em um contexto contemporâneo, ainda podemos extrair muito dessa filosofia milenar. O que, se pararmos para pensar, é bem assustador.

domingo, 6 de março de 2016

Elos imaginários


Em uma época em que nossas supostas ideologias tendem a ser tão variadas em um mesmo grupo social, as pessoas se esquecem de valores humanos que são (ou deveriam ser) universais. O direito à vida e à liberdade transcende qualquer posicionamento político, social e religioso. Pelo menos deveria ser assim. O que se nota, no entanto, é uma inversão desses conceitos básicos ao atribuir conexões inexistentes entre alguns direitos fundamentais e vertentes políticas específicas. Isso acontece, em grande parte, relacionando o que é incômodo aos opositores e o confortável, aos aliados.

Ao negligenciar a existência de assuntos importantes e complexos que devem ser amplamente debatidos, como racismo e homofobia, simplesmente por preferir liberalismo econômico do que um estatismo intenso é a mais pura ignorância para se manter na zona de conforto. Ou, talvez, uma descarada falta de ética. Basta pensar um pouco para perceber que posicionamento econômico, como no exemplo acima, não apresenta relação alguma com garantia dos direitos humanos. Mas continuamos a insistir nesse tipo de conexão ilusória, efeito direto de reversões cognitivas.

Fácil de notar, difícil de desconstruir. Ao inverter-se os valores, surgem baboseiras como racismo reverso, cristofobia, heterofobia entre outras que não valem palavras. Inverter o opressor com o oprimido é uma ótima estratégia de vitimismo: sou sofredor de uma repressão que é causada por aqueles que eu massacro. Minhas cabeças de gado estão fugindo sem controle e destruindo meu lindo abatedouro.

Negar a opressão é oprimir ainda mais. Não é apenas ignorância, é falta de caráter e compaixão.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Meu sonho



Nesta noite eu sonhei
Que estava em um jardim
Minhas bonecas eram rosas, as flores eram jasmins.
De repente acordei,
E não era nada assim,
Fiquei triste e pensando nas minhas rosas e jasmins

-- V.C.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Um escafandro insulado


Somos solitários dentro de nós mesmos. Vivemos em uma sociedade insociável, sozinhos, cercados de outros seres igualmente solitários. O eu é mais importante. Eu sou o único existente. Apenas eu devo ser feliz. Eu preciso, eu quero, eu sei, eu amo. Nem mesmo o enfático amor é capaz de mudar nossa natureza, por mais forte e poderoso que ele parece ser. O amor te desperta sofrimento devido a atitudes alheias; te alegra, uma felicidade que aparenta vir de fora, mas que pertence apenas a ti; te aquece ao ponto de ebulição dos sentimentos; te dá forças. Diz-se que o amor é a forma mais próxima de sentir empatia, dentro deste isolamento profundo e particular.

Amar é sentir-se bem ou mal consigo mesmo, olhando, vivendo e interagindo superficialmente com os outros. Nada é realmente íntimo. Tudo que é sentido não passa de uma ilusão: imaginamos que a emoção é transmitida, quando esta simplesmente tem origem nos pélagos mais internos de nossa alma. Um mundo virtual, no qual somos tentados a compreender como unido e harmonioso um universo dado por um amontoado aleatório de coisas sem sentindo, solitárias na imensidão do espaço e fadadas a existirem sozinhas, com pouquíssima aproximação, por quanto a eternidade as permitir.

Eu posso mudar o mundo! Tenho o poder de esculpir a realidade. Uma realidade criada por uma mente fértil e apaixonada. O mundo que vejo através dos meus olhos, que interpreto com meus sentidos é extraordinariamente singular. É apenas meu! Faço dele o que eu quiser e desfaço quando bem entender. Tudo existe, porém nada é real.

Porque não conseguimos compreender com clareza algo que é somente nosso?

sábado, 9 de janeiro de 2016

Os erros de nossa intuição


Um dia desses, meu pai estava lendo seu jornal diário e analisava uma reportagem sobre o ativismo LGBT e sua influência atual na política do país. Estava claramente intrigado com o que estava lendo, seja lá o que passasse em sua mente. A matéria continha ilustrações, imagens do grande evento da comunidade na Avenida Paulista, a vulgarmente conhecida "Parada Gay". A foto panorâmica apresentava a avenida lotada, com bandeiras, faixas e muitas cores. Era possível ver pessoas até onde a lente da câmera nos permita. Encarando friamente a fotografia, ele, na maior sinceridade e espontaneidade que um homem nos seus 50 anos poderia ter, me fez uma pergunta curiosa. "Porque será que existem tantos gays hoje em dia?". A pergunta foi claramente retórica. Respondi com um sorriso, e continuei minhas atividades. Como ele não esperava resposta, manteve o seu calmo ritmo de leitura do jornal, esquecendo a indagação após alguns segundos. Eu, por outro lado, não esqueci.

O questionamento do meu pai foi realmente poderoso, carregado de informações que podem ser tiradas se olhado de maneira aprofundada. A retoricidade da pergunta deixa claro que, alguns décimos de segundos atrás, outra pergunta surgiu em sua mente: "Existem mais gays hoje do que no passado?". Claramente seu cérebro respondeu com um sonoro sim. Mas se realmente pararmos e olharmos a pergunta, notamos que ela é extremamente difícil de ser respondida de forma rápida. Quantos LGBTs existiam no passado? Quantos realmente de assumiam publicamente? Quais os indícios que o número de gays é maior agora? Dados? Quais dados? De fontes confiáveis? Todas essas perguntas podem ser solucionadas, mas demandariam um esforço muito maior do que meu pai empregou ao analisar rapidamente a situação. O que ele fez, no entanto, é algo que acontece a todo momento em nossa vida e não nos damos conta disso.

Responder a uma pergunta do tipo "Eu recebo mais informações sobre o ativismo LGBT do que antigamente?" é uma tarefa muito mais simples do que a pergunta original. O cérebro do meu pai (que é um homem com muita experiência de vida e conhecimento agregado, longe de ser ignorante) inconscientemente substituiu a pergunta original por algo mais simples, como a mostrada acima, dando a falsa impressão que elas eram equivalentes. Esse processo de troca descrito é conhecido por especialistas como Heurística da Substituição. Achamos que estamos respondendo a pergunta original, quando na verdade estamos resolvendo uma muito mais simples, mas que nossa intuição não consegue diferenciar da original. Apenas conscientemente percebemos que a tarefa inicial pode ser muito mais trabalhosa e profunda do que imaginávamos.

Em alguns casos (na maioria deles), a substituição nos poupa esforço cognitivo e nos permite fazer análises mais práticas de situações cotidianas. Contudo, quando tratamos de assuntos mais sérios, a heurística pode ser a fonte de vários erros e nos levar a conclusões completamente equivocadas sobre diversos assuntos. Eu mesmo me confrontei com a seguinte situação, ao ler comentários de notícias no Facebook: "Estamos nos tornando mais intolerantes?". Prontamente respondi que sim, estamos ficando cada vez menos dispostos a aceitar o diferente, baseado nos discursos de ódio que exalavam das publicações da rede social. Esqueci, por um minuto, das barbaridades da Idade Média contra os hereges, da exclusão social feminina na revolução industrial ou mesmo das brutais repressões de opiniões da ditadura em nosso país. Não passou pela minha mente que minha avó era julgada e proibida de sair de calça na rua ou que meu avó jamais seria respeitado se o vissem chorando em público. Fui enganado pela minha mente, sem me dar conta, porque decidi responder a uma pergunta do tipo "Estou mais exposto a opiniões intolerantes?". Mais simples, mais intuitiva, porém diferente da original e com a resposta inversa.

Tiramos conclusões precipitadas o tempo todo, seja lendo uma matéria do jornal, vendo um anúncio publicitário ou conversando com um estranho. Nossa intuição é rápida, prática e trabalha sem esforço. Nosso consciente é lento, demanda atenção, mas é muito mais preciso, porque é o único capaz de aplicar nossos conhecimentos de maneira lógica para chegar a uma conclusão. Quanto mais percebemos isso, melhor é nossa tomada de decisão e menos somos enganados por nosso cérebro.

O primeiro passo para entendermos o mundo é entendermos nós mesmos.