quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

A grife Apple: da inovação ao luxo


Em meados da década de 1970, Steve Wozniak construiu seu primeiro computador para uso pessoal. Estudante da Universidade da Califórnia, o jovem Woz assumia a vanguarda da inovação digital em uma das regiões mais fervorosas para a computação nos Estados Unidos, o Vale do Silício. Em parceria com um colega alguns anos mais jovem, Steve Jobs, os dois garotos venderam seus bens mais preciosos e arrecadaram a incrível quantia de 1300 dólares, o suficiente para que Wozniac e Jobs projetassem o que é considerado por muitos o primeiro modelo de um computador pessoal acessível ao mercado, o Apple I. Desse ponto a empresa dos Steves decolou. Modelo após modelo, os computadores da Apple dominavam cada vez mais um mercado que eles próprios criavam, sempre buscando o novo, o inovador, a tecnologia de vanguarda. Jobs declarava explicitamente que a base da sua companhia era de ditar tendências tecnológicas, buscando soluções simples para facilitar a vida das pessoas. Esse era o mantra do fundador da empresa. Hoje, aparentemente, uma ideologia que mostra-se apenas particular de seu patrono.

A Apple sempre foi uma empresa de inovações. Inovadora não necessariamente significa que era original em todos os seus produtos. Jobs, Woz e seus colegas eram conhecidos como os Piratas do Vale do Silício, por sua ousadia em aproveitar as ideias desenvolvidas nesse ambiente fértil do florescer de novas tecnologias em seus dispositivos. O mouse, por exemplo, utilizado pela primeira vez em um computador pessoal no Apple Lisa, não era de propriedade criativa (nem patente) de um dos fundadores da empresa da maçã. No entanto, foi com a inserção do roedor nessa versão do computador no mercado que o modelo do apontador cartesiano se popularizou, tornando-se indispensável para o uso moderno de PCs. O caráter inovador da Apple era de tomar as rédeas da tecnologia e dominar o mercado com base nisso. A genialidade de Jobs ia muito além de desenvolver dispositivos e chips poderosos: ele conhecia como popularizar, tornar acessível e revolucionar o mercado da computação mundial. Foi assim com o Apple I; foi assim com o iPhone; foi assim com o iPad. Mas a macieira não colhe mais dos mesmos frutos.

Toda essa retrospectiva é a base para um debate interessante sobre o destino da empresa de smartphones mais famosa do mundo e, como consequência, o rumo do mercado de informação no planeta. Neste final de ano, Tim Cook anunciou o mais novo mobile da companhia, o iPhone X, com um preço base assustador de mil dólares. Para uma comparação direta, a maior concorrente da Apple, a Samsung, tem seu mais moderno smartphone por 200 dólares a menos. O que o CEO da maçã nos quis dizer com isso, afinal? Sem nenhuma grande novidade que justificasse o preço elevado do dispositivo, a Apple se projeta a um novo nível, além de suas origens, além do Vale do Silício. De olho nos números de seus concorrentes coreanos e chineses, a empresa de Cook assume o poder sobre sua marca e toma uma decisão que pode ser a última grande inovação da companhia: elevar-se (ou rebaixar-se) ao lado de grandes grifes mundiais. Uma cartada genial de uma empresa criadora de mercados. Afinal, qual outra marca produz portáteis de luxo?

Há alguns anos a maçã mordida ganhou um valor de status social além do que poderia sequer ser imaginado por Wozniak, nem em seus sonhos mais capitalistas. No revés de grandes companhias de inovação como a Tesla ou o Google, a Apple nos chama a atenção de como o mercado é dominador sobre a produção de conhecimento tecnológico. Uma lição importante que pode-se tirar do anúncio da empresa de Cupertino é, acima de tudo, como a tecnologia (principalmente na computação) dia após dia abandona suas origens inclusivas e life-changing de grandes mentes como Linus Torvalds e se curva aos índices que sobem e descem em Wall Street. Nesse contexto, podemos refletir sobre o que a informação se tornou e como o mercado de dados é um negócio cada dia mais lucrativo e invasivo; como as pessoas passaram a valorizar a computação como instrumento de ostentação e autoafirmação, nos moldes de joias e carros esportivos; e acima de tudo, o que pode nos aguardar, já que nos entregamos cotidianamente a essas empresas em troca de algum novo tipo de conforto que dizem poder nos propiciar.

E que acreditamos, quase sempre, sem questionar.

                       ---- Publicado originalmente pelo autor em <http://penseegratis.org/>

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Muita informação, pouco cérebro


Não é novidade que nossa vida deixou de ser particular há um tempo. Propagandas personalizadas enquanto navegamos na rede, sugestões de onde passar o sábado a noite ou as férias de verão são apenas alguns exemplos sutis de como nosso cotidiano é constantemente monitorado, uma versão orwelliana de não-ficção. Em 2013, Edward Snowden apenas escancarou uma verdade indigesta, que insistíamos em esquivar: podemos ter nossa vida totalmente mapeada apenas com nosso uso corriqueiro da Internet. Foi nesse mesmo ano, no entanto, que a cidade americana de Boston sofreu um dos maiores atentados terroristas de sua história, com a explosão de duas bombas durante a tradicional maratona. Essa sequência de acontecimentos revela uma realidade que apequena o Grande Irmão que nos observa. Geramos toneladas virtuais de bytes de informação a cada milissegundo em todo o planeta, mas não chegamos nem perto de processar todos esses dados e extrair alguma informação relevante de todos eles.

Essa avalanche de dados que geramos todo dia, em nossos mais de 5 bilhões de dispositivos móveis, é conhecida como Big Data e é o mais novo desafio na era contemporânea da computação. A grande dificuldade no processamento do Big Data reflete uma das características da sociedade informatizada pós-moderna que resume-se na rápida obsolescência e perda de relevância de tudo que geramos. Os dados digitais são o exemplo mais ilustrativo desse processo. Do que adianta a mim como empresa saber se meus clientes pretendiam comprar meus produtos em 2011? Quem gostaria de receber sugestões de onde comer no almoço as cinco horas da tarde? Do que importa a NSA (agência de segurança estadunidense) identificar o plano do atentado de Boston nas redes dois meses após o incidente? No processamento do Big Data o importante é o agora, análise imediata de informação. Coletar e armazenar esses dados é etapa mais simples do processo. Entender o que eles significam em conjunto, em grande escala é um obstáculo que nem os gênios da ficção científica puderam prever.

Para entendermos na prática a dificuldade em realizar a interpretação do Big Data, podemos usar uma ferramenta gratuita do Google que registra as tendências de busca em sua plataforma ao longo dos anos, o Google Trends. Comparando as tendências para os termos “Lula”, “Geraldo Alckmin” e “Tiririca” encontramos picos de nos anos de 2006, 2008, 2010, 2014, por exemplo. Nos últimos anos, por outro lado, esses termos aparecem em alta por diversos momentos aleatórios. A análise desses dados é trivial para um humano brasileiro e politizado. Os pontos principais de citações e buscas na internet relacionados aos nomes dessas personalidades deve-se ao fato de que esses anos são datas eleitorais e esses indivíduos, políticos. Além disso, o turbilhão político de instabilidade que o país vive atualmente é refletido no padrão de buscas do Trends, observando os dados dos últimos anos. Parece simples, mas ensinar um software a realizar essa análise sem intermédio humano, cruzar todas as informações relevantes (e descartar as relações inúteis) transcende o limite da simplicidade, é extremamente complexo de ser realizado, especialmente em tempo real. Finalmente, é necessária uma análise das conclusões obtidas. Mais buscas recentes de nomes de políticos significa necessariamente que o brasileiro tem se tornado mais engajado politicamente? Dado o histórico dos anos eleitorais, o brasileiro só se interessa por política em períodos de eleição? Nossos algoritmos antropólogos ainda estão distantes de chegarem a esse socrático grau de interpretação.

O que a CIA pôde nos mostrar em 2013 (e continua demonstrando, se olharmos atentamente) é que, mesmo com acesso aos maiores bancos de dados do planeta, a maior parte dessa informação não passa de pulsos elétricos em transistores dentro de um computador. Assim como um livro para um analfabeto, as informações estão lá, esperando para serem lidas. Como um jogador de truco que consegue ver todas as cartas do oponente e mesmo assim perde várias partidas, a informação bruta pouco interessa sem que seja conectada e aplicada de forma adequada ao contexto a que pertence. O Big Data apresenta um horizonte praticamente infinito de novas descobertas quanto ao comportamento do gênero humano, podendo mudar profundamente as sociedades modernas. Imagine viver em um mundo cujas suas experiências cotidianas são adequadas aos seus gostos pessoais, em tempo real? A matéria prima existe, flutua sobre nossas cabeças, basta uma fábrica bem equipada para transformá-la em um produto. Ou nos transformar nesse produto.

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terça-feira, 12 de setembro de 2017

A Terra é plana!


Sentado sobre a areia da praia, voltado para o oceano que se abre na minha frente, consigo avistar o horizonte, uma linha reta se estende por todo o meu campo de visão, demarcando os limites entre o céu e o mar. Uma visão semelhante do mundo tinha Aristóteles e Pitágoras, mirando o Mediterrâneo, por volta dos 300 a.C. A sensação é óbvia: estamos sobre um tablado, um piso de comprimento infinito, exceto por algumas montanhas ou ilhas no caminho. Nosso sistema sensorial age, nosso cérebro processa a perspectiva captada por nossos olhos e tira sua primeira conclusão, a terra é plana! Porém, meu caro leitor, você pode ficar surpreendido como sua mente é falha e amadora, principalmente para questões não triviais, e como um pouco de esforço cognitivo pode alterar a visão que temos do mundo e das situações cotidianas. Nesse caso vamos conversar sobre o planeta e, assim como os Gregos antigos, superar o impulso involuntário de planificar nosso globo mãe.

    → Por que a terra é plana?

Basicamente o cérebro humano é o mesmo desde a Idade da Pedra. De lá para cá pouco se alterou na biologia do órgão comandante da nossa espécie, desde nossos tempos de caçadores e coletores primitivos. Reagimos rapidamente aos estímulos provenientes de eventos externos sem muita reflexão sobre o que está realmente acontecendo. A seleção natural fez sua parte: os Sapiens que agiam dessa forma sobreviveram aos ataques de leões na savana e passaram seus genes adiante, enquanto os pobres retardatários viraram alimento dos felinos e sua falta de reflexos morreu com eles. Nossos ancestrais detectavam com facilidade movimentos nos arredores, seja uma pedra prestes a cair de um penhasco ou o local no gramado onde o coelho saltador pousaria após o pulo, pronto para ser apanhado. Em outras palavras, a física newtoniana era de entendimento imediato da nossa espécie primitiva. Felizmente herdamos essa capacidade, o que nos permite dirigir um carro em alta velocidade ou andar de bicicleta sem dificuldades, por exemplo. Mas nossa compreensão da macrofísica e da nanofísica, dos grandes corpos celestes ao núcleo dos átomos, é pouco intuitiva e exige esforço cognitivo, capacidade de abstração e grandes doses diárias de matemática.

Em um país onde o conhecimento de matemática aplicada não excede 4% da população, fica clara a tendência de aparecimento dos terraplanistas. Eratóstenes mediu o raio do planeta experimentalmente a 2200 anos em um experimento simples (vale uma pesquisa no YouTube, não?), mas que transcendia o ceticismo. Estações do ano, passagem dos dias, fazes da lua, por exemplo, são observadas/sentidas a todo instante pelos seres sencientes do planeta azul. No entanto, a compreensão básica das leis da inércia [3], formação dos astros e gravitação deve ser compreendida com base em experimentos realizados e replicados por milhares de cientistas ao longo dos anos e em modelos matemáticos muito bem definidos. Entendido, não sentido.

    → Por que dizem que a Terra é redonda?

Não é necessário nada além de uma leitura do primeiro módulo de mecânica clássica para concluir que a terra plana viola alguns dos princípios básicos da física Newtoniana (momentos de inércia e efeito giroscópico são boas leituras). Aristóteles e seus contemporâneos já tinham como certa a ideia da esfericidade do planeta, conceito que expandiu-se durante o período helenístico e perdurou até a modernidade (pesquisas contemporâneas destacam que mesmo durante a Alta Idade Média, na eclosão da revolução científica, quando os heliocentristas eram perseguidos pela Igreja, os intelectuais da época admitiam que o formato grego do planeta fazia sentido). É em um contexto de pós-verdade que tentaram passar um rolo compressor sobre a Terra.

Nossas ideias e visões do mundo são formadas com base em nossas emoções e sentimentos. Ratificá-las ou refutá-las é um trabalho cognitivo posterior e deve ser realizado de forma consciente. No momento da modernidade em que vivemos (em especial com a ascensão das redes sociais e da internet) juntar-se a um grupo de indivíduos com ideias semelhantes as suas é algo realizado automaticamente por algoritmos internos das grandes redes, tornando plausível a validação de ideias absurdas. É dentro dessas bolhas que a terra plana e outras teorias conspiratórias ganham força: unindo a pós-verdade e indivíduos pouco dotados de conhecimento científico de qualidade, em ambiente enviesado para confirmação das ideias e falta de confronto de opiniões.

    →  Faça você mesmo!

É dito aos ventos que a internet não criou os idiotas, mas uniu e deu voz a eles. Porém nenhuma hipótese deve ser descartada antes de ser testada. Por isso proponho um desafio aos terraplanistas: formule um novo modelo ao nosso adorado planeta Terra. Sobre esse novo modelo, aplique os conceitos da Física conhecidos e expanda o conhecimento da humanidade sobre o nosso lar. Francis Bacon já dizia que conhecimento é poder. Enquanto os recursos naturais e as vidas humanas são limitadas, o conhecimento pode expandir-se infindavelmente. Cientistas não temem a dúvida, por mais indigesta que ela pareça, por ser fundamental para a expansão do saber científico. A certeza, na maior parte dos casos, é uma limitação. Por isso, meu caro conspiracionista, não é a mim que você deve se dirigir e tentar convencer, mas toda a humanidade e a comunidade científica. Alguns fizeram isso, como Galileu, e mudaram o mundo. Quem garante que você não pode fazer o mesmo?

                       ---- Publicado originalmente pelo autor em <http://penseegratis.org/>

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Fendas na normalidade


Em sua recém-lançada trilogia para o público jovem, Ransom Riggs introduz ao mundo o seu universo fantástico. Baseado em sua coleção de fotos antigas, o autor relata as aventuras vividas por um grupo de crianças peculiares, cada uma apresentando alguma característica que as diferem dos seres humanos, digamos, convencionais. Os personagens são únicos e caricatos: um menino invisível convive diariamente com uma garota de força sobre-humana e um rapaz que é constantemente assolado por sonhos agoureiros, além de diversas outras personalidades presentes ao longo da trilogia. A trama principal circunda exatamente as peculiaridades de cada um e a dificuldade da inserção e aceitação das crianças em sociedade. O universo peculiar, no entanto, apresenta locais seguros, as fendas temporais, onde as personagens encontram refúgio e que, ao decorrer da história, vão desaparecendo e deixando-os desamparados perante o mundo real. A grande questão levantada pelo autor não poderia ser mais clara: como uma minoria pode ser aceita em sociedade fora do seu "gueto social"?

O preconceito é um dos grandes males da modernidade. Presente em todas as fases da existência da raça humana, o pré-julgamento alheio ganhou escala global e grande poder de disseminação com o advento da internet, em especial com a força da pós-verdade em um ambiente em que todos têm voz. A internet e as redes sociais uniram o preconceito ao anonimato, dando poder ao ódio aos diferentes, que antes ficava restrito àqueles que teriam coragem de se expor e, eventualmente, serem publicamente reprimidos. As crianças peculiares viviam isoladas, não por conta de se comportarem de forma diferente das crianças comuns, mas por alguns traços (por exemplo, característica física) que causava medo às pessoas não peculiares com as quais entravam em contato. O medo, uma das grandes bases do ódio, origina o preconceito. O medo é passional e irracional e não pode ser vencido sem uma grande dose de esforço cognitivo.

Como bem destacou Daniel Kahneman em seu grande livro Rápido e Devagar - duas formas de pensar, tomamos a maior parte de nossas decisões de forma automática, sem utilizar a nossa consciência, que entra somente em uma análise posterior das situações, se necessário. Essa condição nos diz muito sobre o processo de construção do preconceito, que ocorre com base nos sentimentos e, como já destacado, no medo que o diferente pode causar aos ignorantes. A tríplice do preconceito é clara: medo gera ódio, que é fortalecido pela ignorância. O preconceito de qualquer espécie, seja racismo, homofobia, antissemitismo é uma expressão de ódio poderosa, pois une as pessoas ao redor de um "inimigo" comum, disseminando a desinformação, fortalecendo a pós-verdade e eliminando o senso crítico, a única forma de quebrar o ciclo vicioso.

As doces crianças peculiares sofrem na pele a rejeição da sociedade, principalmente antes de serem resgatadas para as fendas temporais, com inúmeros casos de violência e torturas, físicas e psicológicas. É fácil fazer paralelo com a realidade. Homossexuais podem ser gays, desde que não sejam efeminados ou demonstrem afeto público, pois não tem o direito de serem livres, já que eu me reprimi durante toda a vida; negros podem trabalhar e serem meus amigos, mas ator negro, advogado negro e médico negros são incompetentes e foram colocados lá por cotas, já que esses papéis de destaque na sociedade só podem ser dos brancos por mérito; os peculiares podem existir, desde que trancados dentro de casa, pois tenho medo que meu estilo de vida que eu pertenço e domino seja ameaçado de alguma forma.

Se a falta de conhecimento é uma das bases do preconceito, apenas a informação pode romper essas barreiras de convivência e mostrar que, no fundo, todos temos nossas peculiaridades e que, como Ransom Riggs bem destaca, a única coisa que impede que vivamos pacificamente em sociedade é o desconhecimento. Cada vez mais as fendas temporais se dissolvem e os peculiares ganham seu espaço. Cada vez mais o preconceito deve perder o seu.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Poética


Ser poeta é um dom, eu diria. Escrever poemas não é uma tarefa fácil. Digamos que os poetas conseguem algo que muitos têm bastante dificuldade, colocar no papel seus sentimentos, de uma forma que não só agrade aos leitores, mas a ele próprio. O que seria do mundo se todos nós fôssemos poetas? Se todos tivessem a facilidade de expressar nossos sentimentos e liberar nossas angústias de maneira que não precisássemos guardá-las em nossos corações e deixando-as nos consumir de dentro pra fora, até afetar todos ao nosso redor? Bom, todos nós temos um lado poeta, com certeza. Fazemos poesia o tempo todo, seja com palavras amorosas para quem temos afeto ou apenas com pensamentos estranhos que vão e vêm. Sem nos darmos conta, nossa mente virou um livro de poesias, tão bonitas e profundas como as obras mais geniais de Drummond, mas tão inalcançáveis como os grandes sonhos de Vinícius de Moraes. Sentimentos são tão indescritíveis que, às vezes, quando paramos para refletir sobre eles, não chegamos a nenhuma conclusão. Sentimentos devem ser sentidos, não pensados. Por isso que admiro os poetas, não só por conseguirem fazer com que palavras (simplesmente palavras) ilustrem, mesmo que vagamente, seus sentimentos mais profundos e indelicados, mas também por tornar esse pequeno universo que ronda suas mentes, um motivo para que nós tentemos (e muitas vezes, consigamos) entender o nosso.

         --- TEXTO PUBLICADO EM MARÇO DE 2014

terça-feira, 4 de julho de 2017

A pós-moderna arte da guerra


Há cerca de sessenta mil anos, coabitavam o planeta duas populosas espécies humanas. Os europeus Neandertais disputavam recursos e território com os Sapiens, cuja expansão territorial já era expressiva e que não tardaria a conquistar os quatro cantos do planeta. Muitas são as teorias sobre o que teria causado a extinção dos Neandertais, desde uma erupção vulcânica que assolou o velho continente no período superior do pleistoceno até a falta de capacidade de adaptação às mudanças no ambiente em que habitavam, principalmente na península ibérica. Porém um aspecto interessante dos últimos séculos dessa raça humana foi a difícil convivência com seus irmãos Sapiens. Violentos, agressivos e inteligentes, nossa raça oprimiu e intimidou de forma unipolar os Neandertais, a ponto de sermos apontados como peça chave da extinção, não apenas destes, mas de inúmeras outras espécies com as quais convivemos ao longo da jornada rumo ao monopólio. Os Sapiens eram implacáveis nas batalhas, impiedosos nas vitórias e dominadores de recursos e territórios.

Parece estranho pensar nos homens pré-sedentários como similares a nós. Aprendemos a cultivar o solo, procriar animais, modelar o espaço em que vivemos. Levantamos cidades, fábricas; criamos códigos de conduta e mitologias diversas. Somos um povo diferente, exceto por um detalhe extremamente importante: dentro de nós, de cada núcleo de cada célula dos nossos tecidos dos nossos órgãos, somos praticamente idênticos aos velhos coletores e caçadores de outrora. Nosso DNA, a fórmula mágica do sucesso da nossa espécie, mantêm-se praticamente intocável ao longo dos milhares de anos que nos separam dos nossos antepassados paleolíticos. Em essência continuamos os mesmos. Os mesmos implacáveis, impiedosos e dominadores que fomos com os Neandertais. Mas agora nossas batalhas são outras.

Por volta de 500aC, nos meados da China feudal, Sun Tzu relatava suas estratégias de batalha em um best-seller mundial, A Arte da Guerra. Os escritos do general deveriam ser lidos de forma literal, como um guia de como se posicionar em combate, como contra-atacar e planejar seus cercos durante um período de guerras. O fato do manual chinês continuar sendo transcrito, traduzido e recomendado reforça ainda mais uma das ideias mais lugar-comum nos dias atuais: a vida moderna é uma eterna batalha. Os inimigos, nesse caso, são as demais peças do sistema que dita a nova modernidade (ou pós-modernidade, se couber a definição), os outros. Os outros são os colegas de trabalho, as grandes empresas de marketing, o gerente da seu escritório, os bancos, os governos, os vizinhos, os familiares. Todos os que podem interferir em seus planos de vida, te puxar para baixo, te dizer que não. Em outras palavras, a batalha da modernidade é do meu eu contra quem não me dá apoio.

O individualismo e o senso de independência social plantado, regado e resguardado pelo status-quo do capitalismo fluido é a base da ideia de que todos podemos qualquer coisa, desde que sejamos competentes o suficiente para vencer nossos próprios obstáculos, nem que isso custe o bem estar dos outros. Como Sun Tzu dizia, o objetivo principal da guerra é a paz, ninguém quer batalhar para sempre, mas todos queremos a vitória. A paz de uns (como as mulheres curdas nos ensinam bem) pode representar a desgraça de muitos. Mas os outros são os outros. Como o general já salientava, é necessário conhecê-los, visando explorar seus pontos vulneráveis, mas jamais expor os seus de forma demasiada. Os outros são aqueles que queremos trabalhando para nós, que queremos comprando nossos produtos, que dizemos que nos importamos, mas que devem ficar do outro lado do muro. Batalhas não são consensuais, guerras não são democráticas. Ou são um massacre do mais fraco ou um massacre generalizado. Sempre há muitas baixas.

Contra os Neandertais, a luta era espécie contra espécie; a luta já foi tribo contra tribo, reino contra reino, empresa contra empresa, família contra família. A fragmentação do coletivismo e o fortalecimento da identidade individual incorpora-se com o predadorismo da meritocracia desigual e torna o viver na nova modernidade um desfio de sobrevivência. O que o general chinês descrevia como campo de guerra, que deveria ser reconhecido e desbravado antes dos confrontos, hoje pode ser abstraído aos escritórios, estações de ônibus e redes sociais. O que outrora significava batalhar por territórios, hoje resume-se a buscar relevância; recursos pilhados equivalem-se aos likes. O que era um confronto de exércitos, hoje um confronto de indivíduos. Sempre lutamos por poder. O quanto isso se difere dos nossos antepassados?

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A vida, uma ordem a ser decifrada

 
O caminho do trabalho até em casa era sempre o mesmo. Tomava um ônibus perto da escola onde lecionava, atravessando a cidade em meio ao trânsito metropolitano e descendo em um ponto a duzentos metros de onde morava, no Flamengo. O cansaço físico e mental da professora de literatura fazia Renata isolar-se na tela de seu celular durante todo esse percurso. O aparelho proporcionava-lhe as experiências mais satisfatórias do seu dia, um estado de controle absoluto que não conseguia em sala de aula, mesmo seus esforços exaurindo toda sua energia. Em suas redes sociais, Renata escolhia o que curtir, o que ler, quem acompanhar. Não precisava engolir desaforo, não precisava aturar bagunça; tudo estava organizado à sua maneira.

"Gostaria do poder de ordenar o trânsito, isso sim." De fato, o trajeto estava mais conturbado naquele dia. Buzinas de carros, motos, caminhões; táxis atravessando por entre os carros, em alta velocidade; xingamentos soltos ao vento, direcionados a todos e a ninguém. A professora, no entanto, não conseguia deixar de notar a estranha tranquilidade nas pessoas ao seu redor, todos dentro das campânulas de seus smartphones, ignorando propositalmente o mundo em que viviam. "Existe ordem no caos, com certeza." A frase, com trinta e três caracteres, o número divino de Pitágoras, agradava a Renata do Twitter, que tratou de colocá-la publicamente aos seus seguidores. Quando estudante de Letras, era entusiasta da Bíblia e o tempo apenas reforçou sua paixão literária pela obra. No momento pensava no Gênesis, no qual o nome de Deus foi curiosamente repetido trinta e três vezes. A conexão inesperada fervilhou sua mente. Pela janela do ônibus, a professora entendeu o motivo da confusão no trânsito, um acidente de moto obstruía uma das pistas. Ninguém, no entanto, parecia se importar com nada além do fato de que estariam perdendo tempo parados em seus veículos. A falta de compaixão e individualidade irritava a Renata do Facebook, que escreveu rapidamente um post de indignação, culpando os políticos, a polícia, os paramédicos e qualquer outro que estivesse no lugar e pudesse ser responsabilizado pelo transtorno. Ela, assim como os demais, apenas olhou de relance pela janela, e voltou ao celular.

Ao seu redor, todos pareciam em outras realidades. À direita, um senhor de meia idade trocava mensagens com futuras parceiras no Tinder; à esquerda, um rapaz capturava criaturas que se materializavam no chão do coletivo, visíveis apenas através da lente mágica do smartphone. Como se não bastasse a volatilidade do mundo real, os homens ainda criam seus próprios universos, da forma com que quisessem, para satisfazer seus desejos. Menos metafísicos, mais reais, mundos e mais mundos são projetados sobre o plano terreno, onde todos interagem, todos compartilham, mas só existem por que as pessoas de carne e osso acreditam em suas existências. Parada agora na Rua Frei Caneca, Renata do Instagram percebeu a oportunidade de um clique perfeito. Através da janela do ônibus destacava-se a arquitetura neomoderna ao fim da passarela do samba, o símbolo máximo da festa pagã mais famosa do país. "Irônico". A praça da Apoteose carregava um significado que a professora de linguística conhecia muito bem, ascensão. Tornar-se Deus. Na cabeça de Renata ficou claro que Deus fez o homem realmente à sua semelhança.

A internet e a sua suposta blindagem da realidade poderia ser considerada mística, principalmente a alguns anos. Renata era muitas dentro de sua bolha. Em cada website ela assumia um perfil distinto, seja ele fútil, politizado, indignado, confiante ou feliz. Era só uma questão do que publicar, do que curtir, do que compartilhar. Renata era dona da sua personalidade virtual, criava-se da forma que quisesse, de acordo com seu humor. No entanto, não era capaz de distinguir com clareza o que era real e o que era inventado. Os universos se misturavam, as realidades se confundiam. O homem criou seu próprio universo dentro do vazio da sua vida terrena. Aquilo fez Renata congelar por alguns minutos, pensativa e profundamente triste. Sua ordem havia quebrado e mergulhava novamente na correnteza da realidade.

Finalmente, ao chegar na margem do rio, levantou os olhos vermelhos e desceu do ônibus. Alguns minutos depois, estaria em casa. Como todas as noites, seu celular entrava na reserva de bateria. Suas energias estavam se esgotando. Tomou um banho, olhou-se no espelho do banheiro. A visão não a agradava. Deitou-se e enxergou-se na tela do celular, sentindo-se consolada com a imagem que agora via. Compartilhou uma frase bíblica em seu Snapchat e sorriu ao ver que tinha novos seguidores. 

Com as cortinas fechadas naquela noite clara, bloqueou a tela, pondo fim ao seu resto de luz e deixando a escuridão da noite guiá-la rumo à luz da manhã. Sob a lua, adormeceu pensando em si mesma, decidindo-se como renasceria no dia seguinte.

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Alguém, em um lugar distante abria seu Snapchat e passava pelo perfil não muito interessante de uma professora de português, sem entusiasmo algum. Curtiu uma frase compartilhada por ela, não muito original. Apagou a tela do celular, sem ao menos refletir sobre o que tinha acabado de ler. Com trinta a três caracteres, a dor de Renata era obscura, invisível e perdida no caos: Seja feita a vossa vontade. Amém!

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Uma sociedade de vitrine


Escrevo estas palavras do meu smartphone. Transcrevo meus pensamentos em palavras, como meu avô fazia em um guardanapo, no bar em que outrora frequentava. As deles morriam amassadas e jogadas no cesto de lixo, junto com algumas garrafas vazias de cerveja. As minhas transformam-se em bits, viajam a velocidade da luz, da palma da minha mão até algum lugar no globo, onde ficam armazenadas do servidor de alguma empresa especializada. Nem mesmo eu sei onde minhas frases foram repousar. Com alguns cliques, porém, posso recuperá-las novamente, bastando o acesso a essa gigantesca rede e sabendo quais palavras chaves digitar no topo do navegador. Navegamos de uma forma que os patronos da marinha nunca imaginaram antes ser possível: não apenas nas ondas eletromagnéticas dos sinais das telecomunicações, navegamos na liquidez da sociedade que nos cerca.

Flexibilidade é o termo que ocupa a cabeça dos grandes empresários e profissionais liberais mundo a fora. A grande tendência é ser capaz de adaptar os produtos e serviços oferecidos ao cada vez mais mutável mercado consumidor. O capitalismo que estamos submersos afasta-se dia após dia do megalomaníaco modelo fordista, tornando-se leve, enxuto, capaz de cruzar fronteiras como nunca antes visto, cada vez menos dependente dos espaços físicos e mais propício a aventurar-se em locais diferentes, sem medo de desaparecer subitamente. O capital abstraiu-se, desalocando suas forças do maquinário e mão de obra pesada, nas plantas industriais, para ações na bolsa e projetos de engenharia, dentro de escritórios em arranha-céus. Pela primeira vez na história da modernidade a relação de dependência mútua empresa-trabalhador parece estar caminhando ao seu epitáfio. Em seu lugar assume a grande nova dependência capital-consumo.

Por mais que Ford admitisse o contrário, sua estratégia de elevar os salários de seus operários era muito mais uma estratégia de manutenção da mão de obra altamente rotativa em suas fábricas do que torná-los consumidores de seus veículos. Passados cem anos, a lógica desdobrou-se ao avesso, com um intenso incentivo ao consumo que move a roda d'agua da economia mundial. O impacto dessa reviravolta é uma mudança completa de paradigma nas vidas humanas: passamos a ver o mundo com os olhos de consumidores, cada vez menos responsáveis pelas coisas que nos cercam.

O cerne da chamada liquefação da modernidade é a metamorfose de um mundo de produtores para uma sociedade de clientes e compradores. As relações entre as pessoas tornam-se cada vez mais descartáveis e frágeis; a relação com o público torna-se dia após dia mais distante, como se fôssemos apenas meros usuários desses serviços, não responsáveis pelo bem-estar coletivo; os interesses particulares ganham cada vez mais força, o individualismo cresce (o consumismo é uma satisfação solitária); a política torna-se um seriado de televisão, assistimos cada vez mais como espectadores, menos como cidadãos.

Enquanto digito esses caracteres, isolo-me na tela do meu celular, mas nunca estive tão conectado. Como o guardanapo do meu avô, o que escrevo pode se perder no limbo de informações da web e nunca ter um leitor. Mas a ilusão da conexão me incita a continuar digitando. A cada dia nos sentimos mais pertencentes ao virtual, mas menos existentes no plano físico. Passeamos pela vida como em um shopping center, julgando os momentos como vitrines, os acontecimentos como produtos e as pessoas como manequins, buscando aqueles que atendam unicamente as nossas necessidades individuais. Por esses corredores andamos solitários.

Cada vez mais solitários.

quarta-feira, 8 de março de 2017

MINIMUM - Libertação

Falsidades e artimanhas constroem castelos de cartas. O sopro da realidade abala sua estrutura. Trancamos em cofres, isolando-os da brisa que os podem desmantelar. Entre quatro paredes metálicas estamos restritos, enclausurados, isolados. Abrirão a tranca, pois, aqueles cujos atos são intimamente legítimos e as palavras carregadas da mais pura verdade. Substitui-se o papel por tijolos e concreto. Sem medo da tempestade, podemos sob a estrutura apoiarmos e, além do nunca antes visto, enxergarmos.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O justo e a justiça

 

O convívio em sociedade baseia-se em acordos interpessoais entre todos os indivíduos que a compõe. Sejam explicitamente concordados ou introjetados pela moral na qual estão imersos, conjuntos de regras, valores e punições são os pilares de agrupamentos humanos desde o princípio. Quando os sans-culottes se rebelaram contra a monarquia parisiense, contestavam-se os abusos de autoridade da nobreza e seu caráter de dominadora absoluta de seus súditos. O acordo em vigor até então representado pelo poder pleno dos descendentes do Rei Sol perdia espaço para a democracia livre, igualitária e fraterna dos revolucionários. A sociedade estava em transformação, portanto os grandes acordos intersubjetivos que a mantinha unida também sofria a metamorfose.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão serviu como farol guia das grandes constituições republicanas contemporâneas, a base dos Estados de Direito ocidentais. Assim como o código de Hamurabi na antiga Babilônia, grandes convenções de normas regem os países do mundo moderno, determinando os direitos e obrigações de suas populações assim como as punições legais para os que desviam suas condutas. Olho por olho, homicídio por reclusão. Foram os grandes processos revolucionários que substituíram o primeiro afronte pelo segundo.

No entanto, as pessoas constantemente esquecem que o sábado foi feito a elas e não o oposto. A lei garante a justiça até o ponto que ninguém é injustiçada por ela. Em outras palavras o limite do estado de direito é a soberania popular e subjugar a segunda em prol da primeira é como a luar miar para cada gato: uma inversão de valores que não faz sentido. A democracia, em uma interpretação contextual, é o regime que permite ao povo modificar as próprias regras que o rege, garantindo assim não apenas os direitos da maioria, mas promovendo a indiferença entre os cidadãos, ao ponto que nenhuma característica intrínseca ao indivíduo (cor da pele, opção religiosa etc.) pese em situações de julgamento legal.

Assim como o rei Babilônico defenderia suas regras como a única capaz de manter a ordem social, o mesmo acreditavam os reis franceses e os grandes positivistas modernos. Ao remover o zoom da lente da história nota-se algo muito curioso: desde a revolução cognitiva, passando pela agrícola, industrial, capitalista foi sempre a falta de ordem que nos trouxe algum progresso. Quando o povo clama por justiça e a soberania popular prospera, as grandes mudanças sociais insurgem. Um dos grandes questionamentos do nosso tempo remete-se novamente aos princípios da república platônica: nossa organização política realmente garante essa soberania?

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O grande sim



Sim. A vida é composta por uma babélica sucessão de "sims". Quando aqueles dois gametas se encontram, dentro nas infinitas possibilidades, um sim em um milésimo de segundo é necessário para que se dê início a uma nova existência. Mudamos nosso destino quando dizemos sim àquele outrora estranho que agora segura um anel em nossa frente, com os aflitos olhos esperando a simetria dos sentimentos. Sim após sim construímos os alicerces, erguemos e reformamos as paredes que dão forma e robustez à vida que ousamos fazer parte. Mas o que é essa vida se não uma preparação para o último e derradeiro sim, que todos insistem negar com tanto afinco.

O galope dos dias nos levam muitas vezes a caminhos distintos, na maior parte deles aqueles que não ousaríamos a trilhar se não fôssemos empurrados pelas grandes forças que nos guiam. Roda-se o relógio; claro, escuro e claro novamente; olhos se abrem e se fecham, somente para abrir mais uma vez. Seria nossa vida uma mera distração para o momento em que eles não voltarão a se abrir? Choramos quando os queridos se vão e sofremos em existência um sofrimento que apenas os que existem podem compartilhar. Ansiamos por momentos e experiências, nossos rostos se enrugam em preocupações, prezamos pela vida sem nos dar conta de que ela simplesmente é o agora. Hoje é hoje. A grande dádiva do presente é que ele simplesmente é. E não precisa de nada para ser. A cada momento dizemos sim ao presente enquanto somos arrastados pela correnteza do destino.

Pergunto-me se os nostálgicos não temem tanto o hoje quanto os pretensiosos. Afinal, a grande vantagem do futuro é que ele pode ser o que quiser, pois na realidade ele não é nada. O mesmo eu sinto do passado: uma mistura distorcida dos fatos e dos sentimentos que não mais nos pertencem. Seria o medo do Anjo de Vestes Negras um temor por não atingir a felicidade que o utópico futuro aparenta reservar? Ou ainda a nauseante possibilidade de ficar eternamente preso em um soturno agora? Não seria a aversão ao desaparecimento apenas uma forma com que expressamos o desprazer com um presente insípido?

Chegará, pois, o dia em que enfrentaremos o destino e pagaremos todas as dívidas que os viventes hão de quitar. Com o mais importante dos sims, o último fechará o ciclo: de onde viemos, partiremos. Abraçaremos a morte como um reencontro de velhos amigos, talvez amigável, talvez pouco pacífico. De qualquer forma, cabe a nós sob o véu da consciência aceitarmos ou não o inevitável. Colher o dia vai além de não esperar o amanhã; é antecipar o grande sim e deliciar-se, sem culpa nem remorso, dos pequenos grandes sims da vida terrena, um a um.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

MINUMUM - Fama

Movimentam-se milhões pela estorvadora curiosidade à vida alheia. Milhões em seus espelhos mágicos, contemplando através de lentes inquietas o enfadonho cotidiano de uma dúzia de caricaturas. Milhões em propaganda transitam sob eles. Porque nos importamos? Anônimos e famosos incitam multidões eloquentes de seguidores; demonstramos a eles o mais verdadeiro afeto e empatia, raramente exprimidos aos que compartilham nossas vidas. Porque tornamo-nos tão íntimos de quem nem nos conhece?

sábado, 28 de janeiro de 2017

Um mundo imaginário



Naquela manhã, acordei repentinamente de um pesadelo. Era cedo e as primeiras luzes da manhã ainda se esforçavam para adentrar o quarto, através das amplas venezianas da parede. A sensação de retorno a realidade daquela forma é estranha, uma mistura mal calibrada entre desorientação, hipersensibilidade e uma boa dose de náusea. Os míseros raios do sol pareciam grandes labaredas de fogo, prontas para se alastrarem sobre meu corpo anestesiado, que acabava de retornar de uma viagem. E que viagem! Normalmente meus pesadelos não se diferenciavam muito de cenas de filmes que assistia naqueles tempos. Quedas de arranha-céus no centro de Nova Iorque, perseguição por Serial Killers nas florestas de Sherwood, problemas com munição no meio de guerras, e por aí vai, sem nunca entrar muito no campo da criatividade. Mas naquele dia algo tinha realmente me incomodado.

Após alguns segundos de tortura sensorial, finalmente consegui reunir forças e me dirigir ao banheiro. Abri a porta, meio cambaleante, e debrucei-me sobre a pia. Ter sonhos lúcidos é raridade. Pesadelos lúcidos, certamente não lembro a última vez. Era o centro de uma grande cidade pré-moderna, certamente grandiosa como Londres na iminência da Revolução Industrial, mas com arquitetura que remetia-se aos grandes mercados árabes da idade das trevas. Peguei um punhado de água gelada e atirei em meu rosto, tentando eliminar o suor resultante daquela perturbadora experiência noturna. O espelho ajudou a recuperar parte da minha noção espacial, estava retornando lentamente a um estado de mínimo autocontrole. Camelos e cavalos estranhamente andavam lado a lado, carregando enormes árvores em seus lombos com um grande vigor. De todos os lados, homens, mulheres, macacos, cães, girafas formavam o caótico e bizarro ambiente, todos emitindo sons igualmente incompreensíveis.

Os problemas de desorientação matinal são prontamente resolvidos com café, o qual fiz questão de preparar com o dobro de pó naquele dia. O local parecia um mercado, porém não identificava nada que estava à venda. Neste ambiente tumultuado, todos pareciam se entender e se comunicar normalmente. Todos, menos eu. Andava de um lado para o outro, mas nada fazia sentido: não existiam placas nem um vestígio sequer de escrita; as vestimentas eram feitas de palha, e as construções, de ouro e carvão; os transeuntes se ajoelhavam quando algum rato ou inseto estava por perto, em um estranho gesto de reverência. Fui inundado por um sentimento de estranheza crescente, a medida que as pessoas começaram a se dirigir a mim, primeiro com os olhares, seguidos por aqueles ruídos estranhos. Corria o quanto podia, mas estavam por toda a volta. Meu coração acelerou. Tropecei e caí na escuridão de um buraco.

Nem mesmo o café mais forte estava surtindo efeito. Quanto mais eu despertava, mais claros ficavam os momentos desesperadores que frutificaram da minha imaginação alguns minutos atrás. Ao levantar do abismo, o mundo se transfigurou. Estava no centro financeiro de São Paulo, na Avenida Paulista. Tudo parecia normal, altos prédios, grande movimento de carros. Mas só me dei conta disso depois de despertado. Em meus devaneios, nada fazia sentido, novamente. As roupas pretas dos homens, os artefatos dourados nos pulsos das mulheres, aquelas luzes que faziam as pessoas pararem e se deslocarem, enormes veículos de aço que não colidiam, mesmo andando lado a lado. O que era tudo aquilo? O coração acelerou, o ar escapava dos meus pulmões, o mundo começou a girar. Caí de joelhos, sem ação e acordei com um solavanco.

Minha cabeça latejava sem parar, os detalhes daqueles momentos distópicos não paravam de ir e vir dos meus pensamentos. Tudo pareceu tão real, mas tão estranhamente caótico. Ou, pelo menos, para mim. O quão frágil é a ordem da nossa vida? Um gole após o outro e a amargura do café sem açúcar colidia com a acidez do meu estômago vazio, reforçando a náusea que ainda incomodava. Dirigi meu olhar com cautela ao relógio na parede. Os ponteiros giravam como sempre, seguindo o mesmo padrão de sempre. Um padrão que não faria sentido para mim, parado naquela avenida movimentada. Eu não o conhecia. Não conseguiria comprar uma mercadoria sequer naquele bazar, jamais aceitariam meu dinheiro e eu nunca o gastaria com o que quer que estivessem vendendo. Que valor o Real tem para quem não acredita nele? Que significado os sinais de trânsito têm para os que nunca pisaram em uma cidade contemporânea?

Fui até a varanda, precisava de algo mais forte. Duas doses de whisky depois e eu não sabia mais o que fazer. Minha mente pulsava a mil, mas meu corpo parecia não responder. E se todos os seres humanos simplesmente desaparecessem do planeta? Que destino teriam as leis, as regras, as religiões? O que aconteceria com as hierarquias da sociedade, com as empresas multinacionais ou com as joias em nossos cofres? O que seria do capitalismo, do comunismo, da política? Nada. Tudo se dissolveria junto, como se nunca tivessem sequer existido. Numa tentativa desesperada, terminei a última dose de café misturando-a com o destilado. Me sentia cada vez pior, em uma espécie de entorpecimento mental. Um baque de realidade. Ou um baque de imaginação. Nossa realidade não forma-se apenas de elementos físicos e objetivos. O que a faz ter sentido e ordem é intocável, faz parte de um imaginário coletivo. O pânico de estar fora dele é um sentimento jamais experimentado por mim. Me senti fraco, desamparado como nunca antes.

Novamente, sucumbi ao meu colchão. Dormiria até recuperar meu vigor novamente. Talvez conseguisse um atestado médico para abonar aquele dia no trabalho. Um pedaço de papel para me impedir de perder bits em minha conta bancária. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. Com este mantra, fui pouco a pouco desacelerando. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O efeito do café já cedia, o whisky me apagava, pouco a pouco. Nossa ordem é frágil, nada é verdade. O que é a realidade se não um conjunto de mentiras em que todos acreditam? Nada é verdade. Nada é verdade.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Mas o que é isso?

 

O fato mais curioso em relação ao inexplicável é que ele é impossível de explicar. Alguns tentam: olham em livros, nas estrelas, em baixo do sofá ou até em revistas de fofocas sobre sub-celebridades decadentes da web, mas a resposta não está em lugar nenhum. Primeiramente porque o inexplicável é tão inexplicavelmente irresponsível que não se sabe nem ao certo qual é a pergunta. Em segundo, mesmo que encontremos uma resposta minimamente convincente sobre uma pergunta que ninguém sabe qual é, ninguém vai se convencer, porque ninguém sabe ao certo qual é pergunta que estão tentando convencê-las de sua corretude. E o ciclo continua até que ele se rompe, do nada, quando alguém consegue uma explicação plausível.

Nada, ao contrário do que muitos pensam, pode representar uma infinidade de coisas. Quando sua esposa aparece do nada em casa e te surpreende com a amante, certamente ela veio de algum lugar concreto, com informações concretas sobre seus contatinhos e morrendo de vontade de despedaçar sua cabeça em uma parede de concreto. Quando uma pessoa desequilibrada responde que "tudo está bem, não aconteceu nada", muito provavelmente as coisas que lhe aconteceram transcendem uma capacidade racional de interpretação dos sentimentos alheios, por isso é mais fácil utilizar o "nada" como trunfo e escapar dessa situação constrangedora, voltando a um isolamento depressivo interno e com tendências mortalmente suicidas. Encontrar uma explicação do nada para um evento inexplicável pode significar, entre várias coisas, todas as coisas possíveis de terem algum significado conhecido, já que ela simplesmente veio do nada.

Basta uma explicação ser descoberta para que um fato deixe de ser inexplicável. Podemos dizer, sem muitas dificuldades de entendimento, que todos os fatos cuja explicação é conhecida já foram, em algum momento da sua existência, inexplicáveis. A não existência de um fato exatamente inexplicável remete-se a mania pouco divertida dos seres humanos de tentarem fazer com que tudo tenha sentido, desde coisas banais como uma lógica nos números da loteria até situações realmente relevantes, como o porquê da torrada cair sempre com a manteiga para baixo ou a origem do penteado do Trump. Se a explicação não existe basta criarmos uma qualquer, utilizando o mínimo de bom senso possível, espalharmos nas redes sociais que, do nada, milhares de pessoas estarão tornando-a verdade.

A verdade é, assim como o explicável, algo que sempre vai existir, inclusive e principalmente quando ninguém sabe ao certo sobre o que estão querendo explicar de fato. Atrás das explicações bizarras e das verdades esdrúxulas sempre existirá uma legião de fantoches humanos, que farão as portas se doerem em suas fibras de madeira por terem a capacidade cerebral comparada a desses homo sapiens que engolem qualquer asneira para, incrivelmente, não se acharem asnos dentro do seu mundinho onde tudo tem que fazer sentido, na maior parte das vezes de acordo com seus princípios preexistentes.

Estudiosos, do nada, surgem com explicações extremamente complexas e fatigantes sobre acontecimentos simples e cotidianos. Pseudo-estudiosos da internet, do nada, surgem com explicações surpreendentemente simples e fáceis para os acontecimentos mais complexos do universo (notemos que "do nada" apresenta significados extremamente distintos em ambos os contextos). Em ambos os contextos falamos de seres humanos: um deles com muita curiosidade e entusiasmo para quebrar esse ciclo; outro totalmente desconfortável por estar preso dentro dele e com medo do que está fora de sua aconchegante casinha de boneca. Inexplicavelmente, da mesma espécie animal. Inexplicavelmente, tão diferentes.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O sonho do Faraó




Em uma noite, o Faraó teve um sonho. Um sonho estranho, com um significado obscuro. Logo, recorreu a todos os sacerdotes e sábios do reino do Egito, mas ninguém soube explicar seus devaneios noturnos. Se Freud fosse chamado para prestar explicações ao Rei diria que seu sonho foi uma expressão do seu inconsciente, desvelando seus desejos e aspirações mais profundas. Se o Faraó tivesse contatado Jung, por outro lado, ele o aconselharia a prestar atenção nos sinais e nos símbolos que estavam presentes em suas visões. Para este outro, os sonhos mostram a realidade que o cercava, uma expressão do inconsciente coletivo, de forma simbólica. Infelizmente para o Rei do Egito, ele viveu muitos milênios antes dos psicanalistas. Teve, então, que recorrer, como sua última esperança, ao hebreu José, filho de Israel.

Deus age através dos fatos, dos acontecimentos. Eis a grande barreira da fé: a sensibilidade de vislumbrar a ação divina nas coisas mais corriqueiras do cotidiano. Aqueles que alcançam a plenitude da fé conseguem observar as situações terrenas com os olhos de Deus. José tinha este dom e usou-o para ganhar a confiança do Faraó e sair do encarceramento que o mantivera isolado por vários anos. Com uma visão que deixaria Jung orgulhoso, o hebreu observou os símbolos presentes nos sonhos do Rei e os analisou no contexto social do povo Egípcio. Com isso, José adotou uma política pública adequada, que salvou o povo da miséria e da fome iminente.

Para os antigos, os sonhos eram a forma com que Deus se comunicava diretamente com as pessoas. Utilizando uma abordagem junguiana, podemos entender os sonhos como uma expressão daquilo que nos permeia socialmente, mas não são ações deliberadas: o famoso inconsciente coletivo. Esta coletividade interfere no que cada um sente e deseja. Nossos sonhos são reflexos do que acontece em nossas vidas, do que entramos em contato dia após dia.

Somos permeados por milagres. Muitos deles, não somos capazes de compreender. Em alguns isso gera frustração, ódio. Mas, assim como José nos ensina, um dos objetivos da fé é a abertura ao inexplicável, não como algo misterioso ou obscuro, mas como um horizonte de possibilidades a serem exploradas sem medo, pois a trilha divina é uma estrada esburacada, com pedágios e sem retornos, mas que nos leva onde devemos chegar.

Talvez nos falte uma dose de humildade, para os ajoelharmos perante ao desconhecido e deixarmos que ele nos guie através de nossa caminhada. Ou talvez nos falte certa coragem para isso.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Um brilho que a todos pertence


Romper preconceitos é uma tarefa que demanda um grande esforço cognitivo. Isso se deve ao fato de termos, de maneira deliberada, que livrar-nos de uma primeira impressão construída de forma associativa por nosso inconsciente. Nossa visão do mundo é moldada, a princípio, por uma série de conexões e padrões que temos em nosso cérebro. Talvez isso seja o grande motivo de sucesso da raça humana: não precisamos de instintos naturais que nos guiem por toda a vida; nós construímos um próprio modelo do mundo que nos cerca, e tentamos encaixar as informações externas que recebemos a ele. E esse modelo se atualiza com o decorrer da nossa existência. Mesmo sendo fundamental para os seres humanos, esse sistema pode nos causar impressões incorretas do que está ao nosso redor, em alguns casos. Daí surgem os preconceitos; por isso ele demanda mais do nosso cérebro para ser desconstruído.

Estamos cada vez mais individualistas e solitários, um fruto da modernidade líquida em que imergimos. Isso faz com que interpretações pessoais do mundo ganhem força, em detrimento das coletivas. Basta nos unirmos com pessoas que pensam como nós em diversos pontos, com poucas divergências que favoreceriam algum tipo de debate, um enclausuramento social. Voilà! Temos o contexto menos ideal para eliminarmos os preconceitos, e o habitat perfeito para que eles se fortaleçam.

Rowling nos instiga a esse debate no seu romance Morte Súbita. A autora best-seller constrói, no pequeno e tradicional vilarejo de Pagford, uma trama costurada ao redor da personalidade de cada um que compõe a história. JK cria uma bolha: dentro dela os moradores mais antigos da vila lutam contra o crescimento de um bairro de periferia em suas fronteiras. O enredo é pleno de análises comportamentais, tratando desde problemas familiares até polarização política. Mas a grande lição que se tira é, nas palavras da própria autora, a dificuldade de "enxergar o brilho de Deus em todas as pessoas". O bloqueio de olhar através de um filtro que nos cerca e nos colocarmos no lugar dos outros, para assim entendermos como parte da sociedade chega nas situações mais marginais da vida humana.

No desenrolar dos acontecimentos, entramos em contato com um universo cheio de preconceitos e inflexões, regido por um reacionarismo cego, que acaba afetando negativamente a vida de todos que o compõe. Uma cegueira muito comum além da ficção das páginas de Rowling. Uma cegueira que elimina a humanidade daqueles que comentem atrocidades. Afinal, não nascemos pré-programados para matar, para roubar. Viemos todos ao mundo com o mesmo brilho. O que nos faz apagar?

A mensagem passada pela autora não é única, muito menos original. Mas é difícil de ser entendida: exige compaixão, caridade e ternura. Obviamente, muito mais árdua de ser colocada em prática. Romper preconceitos doí, estar errado doí, sair do conforto da bolha doí muito. Estamos prontos para suportar essa dor pelos outros?